Análise: Indício de rachadinha mostra desvios como método do clã Bolsonaro
Os indícios de que um suposto esquema de rachadinha ocorria não apenas no gabinete do então deputado estadual Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ), mas também nos gabinetes do então deputado federal Jair Bolsonaro (sem partido) e do vereador Carlos Bolsonaro (Republicanos-RJ), mostram que o desvio de recurso público era utilizado como método pela família Bolsonaro.
A avaliação é de especialistas que participaram do UOL Debate na manhã de hoje para analisar a série de reportagens publicadas pelo UOL com base na análise de dados relacionados à quebra dos sigilos bancário e fiscal de pessoas e empresas ligadas ao senador Flávio Bolsonaro.
As reportagens revelam, por exemplo, que assessores de Jair Bolsonaro na Câmara dos Deputados retiraram 72% dos salários em dinheiro vivo e que Ana Cristina Siqueira Valle, uma das ex-mulheres do presidente, ficou com R$ 54 mil da conta de uma ex-assessora do gabinete do então deputado.
"Rachadinha é desvio de recursos públicos. Tirar parte do salário do funcionário público e mover para outros fins é desvio de recursos públicos, e o desvio de recurso público como método de família é algo que vem sendo consolidado pela reportagem", afirmou Leonardo Sakamoto, colunista do UOL.
"[Há] Indícios de que a prática da rachadinha não era exclusiva ao gabinete do Flávio Bolsonaro", disse a repórter Amanda Rossi, uma das autoras das reportagens. Ela explicou que, com base nos dados relacionados à quebra do sigilo de Flávio, foi possível identificar um "trânsito" entre funcionários dos gabinetes da família Bolsonaro —o que permitiu, então, analisar informações de funcionários que trabalharam também para os gabinetes de Jair e de Carlos Bolsonaro.
"Uma mesma pessoa que, por um determinado período, trabalhou com o Flávio, depois ia trabalhar com o Jair, com o Carlos. Havia essa circulação de funcionários", afirmou.
O UOL teve acesso às quebras de sigilo em setembro de 2020 —antes, portanto, de uma decisão do STJ (Superior Tribunal de Justiça) que contesta a legalidade das quebras de sigilo do caso Flávio. A equipe de reportagem analisou meticulosamente 607.552 operações bancárias distribuídas em cem planilhas —uma para cada um dos suspeitos.
"Como a gente teve acesso a esse grande volume [de dados], conseguimos fazer essa seleção de quem eram os funcionários que trabalharam para Jair e para Carlos, nesse período da quebra do sigilo, que vai de 2007 até o fim de 2018", explicou Rossi.
Investigação e papel da PGR
Durante o debate, o colunista do UOL Tales Faria afirmou que parlamentares, entre eles o senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP), já se movimentam para pedir uma investigação dos fatos revelados pelo UOL à PGR (Procuradoria-Geral da República), comandada hoje por Augusto Aras.
Heloisa Estellita, professora de Direito Penal Econômico na FGV Direito, explicou que, para que haja de fato uma investigação com base nos dados relacionados à quebra do sigilo, a Procuradoria precisaria solicitar ao STF (Supremo Tribunal Federal) a autorização para compartilhamento dessas provas.
"Conhecendo a boa vontade que o Aras tem com o Bolsonaro, é pouco provável que peça", avaliou Faria. "Estamos aprendendo, a duras penas, a importância de ter um Ministério Público independente", concordou Estellita, lembrando que Bolsonaro desprezou a lista tríplice ao indicar o nome de Aras para o cargo.
Sequestro de instituições
O presidente, vale lembrar, não pode ser investigado enquanto estiver no cargo por acusações anteriores ao seu mandato. Ainda assim, o colunista Leonardo Sakamoto analisou que, ao longo dos últimos dois anos, Bolsonaro vem agindo de forma a blindar a si mesmo e pessoas próximas de seu círculo de eventuais investigações e fiscalizações.
"Desde o início do mandato dele, em 2019, Bolsonaro teve uma tentativa muito forte de sequestro de instituições", afirmou Sakamoto, fazendo referência à transferência do Coaf (Conselho de Controle de Atividades Financeiras) do Ministério da Economia para o Banco Central e às acusações de interferência no comando da PF (Polícia Federal), que culminaram na saída de Sergio Moro do Ministério da Justiça e Segurança Pública.
"Isso sem contar outras instituições, como o Ibama, ICMBio, para beneficiar a base dele. Foi inteligente da parte dele, porque ele hackeia esse instrumento de controle, até sabendo o que pode vir", pontuou.
Desdobramentos
Para Estellita, as reportagens mostram que "há muito para ser investigado". "A decisão do STJ não impede que os dados sejam obtidos de forma regular e que, portanto, a investigação se amplie. Pela minha experiência isso vai acontecer, há muito material. Mas temos que aguardar as entidades públicas agirem dentro da lei", afirmou.
No espectro político, para os especialistas, ainda não é possível medir se haverá impacto imediato na popularidade do presidente, que deve buscar a reeleição no ano que vem. Mesmo assim, Faria avaliou que a tendência é que Bolsonaro chegue a 2022 "bastante desgastado".
Nesse momento, segundo ele, a estratégia de Bolsonaro está sendo "silenciar ao máximo" —segundo Faria, ministros e auxiliares ligados ao governo estão evitando comentar as reportagens quando procurados por repórteres do UOL em Brasília.
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