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Damares não prova abuso sexual de bebês no PA: o que pode acontecer com ela

A ex-ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, Damares Alves - Fabio Rodrigues-Pozzebom/ Agência Brasil
A ex-ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, Damares Alves Imagem: Fabio Rodrigues-Pozzebom/ Agência Brasil

Marcela Schiavon

Colaboração para o UOL

22/11/2022 04h00Atualizada em 24/11/2022 15h50

O prazo venceu, e o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH) não apresentou quaisquer provas sobre as supostas denúncias feitas pela ex-ministra e agora senadora eleita Damares Alves (Republicanos) de tráfico de crianças, tortura e abuso infantil no Arquipélago do Marajó (PA).

Em outubro, em meio à campanha pela reeleição do presidente Jair Bolsonaro (PL), Damares fez um discurso para alarmar os presentes de um culto na igreja Assembleia de Deus Ministério Fama, em Goiânia, sobre o tráfico internacional e o estupro de crianças do Pará. Ela, na época, foi acusada formalmente no Supremo Tribunal Federal (STF) de prevaricação (quando um servidor público tem conhecimento de alguma irregularidade mas não leva o caso às autoridades).

Damares disse que o ministério que ela comandou até março deste ano teria imagens de crianças com oito dias de vida sendo estupradas. E que um vídeo com este conteúdo era vendido por valores entre R$ 50 mil e R$ 100 mil. No culto, ela afirmou também que crianças do Arquipélago do Marajó eram traficadas e seus dentes arrancados "para elas não morderem na hora do sexo oral".

O Ministério Público Federal do Pará exigiu que a pasta comandada por ela informasse com detalhes todos os casos dessas denúncias recebidas, em trâmite ou não, nos últimos sete anos. Mas isso não foi feito.

"Tratam-se de acusações de fatos gravíssimos e assombrosos que, se ocorridos, estão dentre os piores e mais escandalosos casos de violação a direitos humanos e de abusos infantis de todos os tempos", afirma a advogada Beatriz Lameira Carrico Nimer, especialista em estado de direito e professora da pós-graduação em direito administrativo da PUC-SP e em direito constitucional da EPD (Escola Paulista de Direito).

Por isso, Damares pode responder judicialmente por ter feito tal declaração.

Posteriormente, diante da repercussão do caso, a ex-ministra passou a dizer que suas denúncias eram baseadas em relatos "ouvidos nas ruas do Marajó, nas ruas da fronteira".

O que prevê a Constituição

Segundo a advogada, ao analisar o que diz o artigo 227 da Constituição Federal, é possível chegar a duas conclusões gerais iniciais:

1) Qualquer pessoa, ao tomar conhecimento de violações a direitos das crianças, tem o dever legal de, dentro de suas possibilidades de atuação, colaborar com o fim dessas atitudes. Assim, devem buscar as autoridades competentes para a apuração dos fatos e tomada das providências.

2) Membros do poder público, em especial aqueles que possuem competência funcional para atuar diretamente na apuração e adoção de medidas de combate à violação aos direitos das crianças, têm o dever legal de, tomando conhecimento de ilicitudes dessa natureza, agir de maneira rápida e eficaz. Isso para investigar adequadamente e resguardar pessoas em situação de risco e vulnerabilidade.

O artigo 227 diz que "é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão."

Além disso, o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/1990) institui comandos diretos ao Poder Público para promover políticas destinadas à proteção infantil. É o que consta de seus artigos 4º e 5º.

O que pode acontecer com Damares?

Sendo assim, agentes públicos que retardam ou deixam de praticar, indevidamente, atos de sua competência, estão sujeitos à responsabilização criminal pelo cometimento de prevaricação, prevista no artigo 319 do Código Penal.

"Isso significa, portanto, que se algum agente público —inclusive os de alto escalão— tomar conhecimento de violência e abusos sexuais contra crianças e adolescentes, não apenas poderá, como deverá agir de ofício, imediatamente", explica a advogada.

Não se trata de escolha, mas de um dever funcional.

Por isso, ao deixar de apresentar provas de que agiu para coibir o crime, Damares pode ser denunciada por omissão e descumprimento de dever legal. O crime de prevaricação pode ser punido com prisão de três meses a um ano, além de multa.

Ministérios, secretarias ou demais entidades governamentais não passíveis de responsabilização direta, mas os atos ilícitos praticados pelos agentes públicos que os integram pode resultar em responsabilização civil do Estado.

Mas ela não tem imunidade?

Assim como os parlamentares, os ministros de Estado, ainda que não possuam imunidade absoluta no exercício da função, têm imunidade relativa, segundo o STF (Supremo Tribunal Federal). Mas ex-ministros ou pessoas eleitas que ainda não tenham dado início ao mandato não estarão sujeitos à imunidade.

Damares ainda não tomou posse como senadora e por isso não tem foro privilegiado.

Para que haja uma consequência, no entanto, é preciso que uma ação penal seja recebida pelo tribunal competente. Cabe ao MP dar andamento ao processo agora que o Ministério deixou de apresentar as provas pedidas. O ministro Ricardo Lewandowski (STF) enviou o pedido de investigação à Justiça do Pará.

Caso o Ministério deixe de fornecer o que o MP pediu, os agentes públicos responsáveis pelo órgão podem responder por descumprimento da determinação recebida. O crime de desobediência está previsto no artigo 330 do Código Penal.

Discurso pode ser enquadrado como fake news?

Como a notícia de abusos contra crianças veio a público por intermédio de uma agente do Estado, o discurso de Damares pode ser caracterizado como propagação ilegal de informação falsa —as fake news.

Isso também vale por ela ser uma figura pública, de forte peso político e presumida confiabilidade perante o meio social, diz a professora.

"A divulgação de mentiras por membros do governo, quer de forma dolosa [com intenção], quer por imprudência decorrente da ausência de adequada apuração prévia, é fato de extrema gravidade", diz Nimer.

Segundo ela, a informação fantasiosa ou infundada é traduzida como verdade pela sociedade que deposita confiança em seus governantes. Esse engano dos cidadãos e a indução a um imaginário falso pode até causar conflitos sociais, preconceitos contra determinadas pessoas, ideologias e regiões do país, além de temores desnecessários.

Quando as informações falsas são divulgadas ou replicadas durante a eleição, a fim de favorecer algum candidato ou partido político, o fato vira também desinformação no processo eleitoral, sujeito a multa caso não haja remoção do conteúdo de plataformas midiáticas e de redes sociais após eventual determinação judicial.

De acordo com o TSE (Tribunal Superior Eleitoral), o artigo 323 do Código Eleitoral (Lei nº 4.737/1965) proíbe expressamente qualquer pessoa de divulgar, na propaganda eleitoral ou durante o período de campanha, fatos sabidamente inverídicos em relação a partidos políticos ou a candidatos, capazes de exercer influência perante o eleitorado.

Ou seja, a legislação eleitoral brasileira contém dispositivos que punem criminalmente quem espalha notícias fraudulentas e mentirosas pela internet ou pelas mídias tradicionais.

Segundo o artigo do Código, a pena para o responsável pela prática dessa conduta ilegal é de detenção de dois meses a um ano, ou o pagamento de 120 a 150 dias-multa.

A punição é agravada se o crime for cometido pela imprensa, rádio ou televisão, ou por meio da internet, ou de rede social, ou se for transmitido em tempo real.

Assim, tanto o Código Eleitoral quanto as resoluções do TSE, que regulam as condutas de partidos, coligações, federações partidárias e candidatos e candidatas nas eleições, trazem dispositivos que vedam a propagação e o impulsionamento de conteúdos que se destinam a desinformar ou criar estados mentais ou emocionais lesivos no eleitorado.