Emendas para comunidades terapêuticas crescem mesmo sem resultado atestado
O envio de recursos de emendas parlamentares a comunidades terapêuticas aumentou mais de 90% desde 2020 — mesmo sem comprovações científicas sobre a eficácia do modelo e com denúncias de violações de direitos humanos.
O que aconteceu
Do início do ano até maio, foram destinados R$ 53,6 milhões em emendas para as comunidades terapêuticas. O valor é quase o dobro do total destinado em 2020 — que foi de R$ 27,8 milhões. Os dados são do MDS (Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome) e foram obtidos em um requerimento de informação pedido pelos deputados Pastor Henrique Vieira (PSOL-RJ) e Sâmia Bomfim (PSOL-SP).
Estudo publicado no ano passado mostrou que as emendas financiam compra de carros, vans e micro-ônibus, apoio direto à manutenção das comunidades — conhecidas como CTs — e material para oficinas. O levantamento foi feito pela Conectas, ONG voltada aos direitos humanos.
O deputado Eros Biondini (PL-MG) foi identificado como o parlamentar que mais teve emendas pagas para comunidades. De 2017 a 2020, foram R$ 3,3 milhões. O UOL procurou a assessoria dele três vezes desde 14 de junho, mas não teve retorno.
Em audiência sobre o tema em maio deste ano, Biondini classificou as comunidades como "fundamentais para a sociedade" e "exemplo de recuperação de dependentes químicos".
Especialistas afirmam que falta transparência nos repasses. Embora os dados sobre os parlamentares que fizeram emendas estejam disponíveis, não se sabe para quais delas o dinheiro vai.
Eu usei drogas alguns anos e ai de nós se não fossem as comunidades terapêuticas. Eu sei o que é uma mãe sofrer, uma mãe chorar (...) As comunidades terapêuticas são o melhor caminho para recuperar uma pessoa das drogas.
Eros Biondini em audiência na Câmara em 17 de maio de 2023
Pedimos para o ministério descrever por atividade essas destinações e eles falam que não é possível fazer isso. Se não existe esse tipo de acompanhamento, além de um problema político é um problema técnico também, porque você não consegue acompanhar a política pública, avaliar, tem um problema de transparência importante.
Dayana Rosa, especialista de Relações Institucionais do IEPS (Instituto de Estudos para Políticas de Saúde)
Governo Lula mantém dinheiro para CTs
O dinheiro enviado diretamente pelo governo a essas estruturas também teve um salto nos últimos anos, segundo levantamento da reportagem.
Em 2018, último ano do governo Temer (MDB), foram gastos R$ 39,3 milhões, de acordo com a Conectas. Em 2021, foram R$ 135,8 milhões, conforme informado pelo Ministério da Cidadania, via LAI (Lei de Acesso à Informação).
Só este ano, já foram repassados R$ 53 milhões. A pasta chefiada por Wellington Dias destina cerca de R$ 272 milhões do orçamento inicial de 2023 para a área de "redução da demanda de drogas" — dinheiro que, na prática, vai para as comunidades terapêuticas.
Existem cerca de 3 mil unidades no país, das quais 611 recebem recursos do governo federal, segundo dados do ministério. Apesar do financiamento público, elas não integram o SUS (Sistema Único de Saúde).
Comunidades violam direitos humanos, diz Conselho de Psicologia
As comunidades terapêuticas, em geral, baseiam seus tratamentos em abstinência das drogas e práticas espirituais. São residências coletivas temporárias onde usuários de drogas ficam meses isolados de relações, exceto da família.
O método usado é criticado. Uma inspeção realizada em 2017 em 28 entidades de 11 estados revelou violações aos direitos humanos, como tortura, sequestro, cárcere privado e trabalho forçado. O relatório foi divulgado pelo MPF (Ministério Público Federal), que realizou as vistorias junto com o CFP (Conselho Federal de Psicologia) e o Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura.
Por outro lado, as CTs são citadas como alternativa para tratamento a pacientes com dependência grave que não têm emprego, moradia ou suporte familiar.
A Confenact (Confederação Nacional das Comunidades Terapêuticas) diz que o relatório do MPF não representa o segmento todo. "Uma amostragem de 0,08% de um segmento, com abrangência de menos de 50% do território nacional e com menos de 50% das instituições serem de fato ou de direito identificadas como comunidade terapêutica, compromete todo o conteúdo desse relatório", diz o presidente da entidade, Edson Costa.
Constatamos uma série de possíveis violações aos direitos humanos. As inspeções que fizemos deixaram muito evidente que as comunidades terapêuticas, assim como manicômios, não são apenas para pessoas com uso abusivo de drogas, mas para pessoas consideradas 'indesejáveis' da sociedade, pessoas homossexuais para serem supostamente 'curadas', pobres e pretas.
Pedro Paulo Bicalho, presidente do CFP
Temos dezenas de milhares de pessoas recuperadas, inclusive parte dos recuperados são colaboradores, profissionais contratados das entidades, bem como tem suas próprias instituições.
Edson Costa, presidente da Confenact
Dinheiro público para entidade religiosa
Estudo do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) de 2017 apontou que 82% das CTs disseram ter ligação com igrejas e organizações religiosas. No entanto, a leitura da Bíblia é uma atividade diária em 89% dos locais e a participação em cultos e cerimônias religiosas é obrigatória em 55%.
O deputado Pastor Henrique Vieira disse ser contra o repasse de recursos públicos para comunidades. "Uma escola particular pode funcionar, mas ela tem que estar atrelada ao MEC, com profissionais competentes. As CTs podem existir sob parâmetros clínicos, sob fiscalização, mas sem dinheiro público", compara.
Especialistas defendem que uma possível solução seria concentrar o tratamento dos dependentes no SUS. "No SUS, a gente consegue controle social, transparência, consegue observar os direitos humanos", defende Dayana.
Questionado sobre a fiscalização das comunidades terapêuticas, o MDS disse que ela "cabe ao órgão gestor da política pública sobre drogas do governo federal, bem como aos órgãos estaduais de políticas sobre drogas, aos conselhos estaduais e municipais de políticas sobre drogas e ainda aos órgãos de controle interno e externo".
A reportagem procurou o Ministério da Saúde, mas não obteve retorno.
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