Bolsonaro ironizou autogolpe ao ser indiciado, mas Brasil já teve tentativa
Maurício Businari
Colaboração para o UOL
30/11/2024 05h30
O ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) ironizou a possibilidade de um autogolpe ao se defender depois de ser indiciado sob suspeita dos crimes de abolição violenta do Estado democrático de Direito, golpe de Estado e organização criminosa. Ele alegou que, como Lula não havia tomado posse, o golpe só poderia ter sido "em cima" dele próprio. Casos no Brasil e no mundo, porém, mostram que essa medida é possível e não seria inédita.
O que aconteceu
Bolsonaro ironizou a possibilidade de um golpe contra Lula antes da posse presidencial. Ele afirmou que "golpe existe em cima de uma autoridade constituída, que já tomou posse. O Lula já tinha tomado posse? Só se fosse em cima de mim o golpe", disse em entrevista coletiva na segunda-feira (25).
A ideia de autogolpe, no entanto, é uma estratégia documentada historicamente no Brasil e no mundo. O conceito não é novo e já foi visto em diferentes contextos históricos. No Brasil, Getúlio Vargas, em 1937, dissolveu o Congresso e instaurou o Estado Novo, concentrando poderes e rompendo com a democracia. Da mesma forma, Jânio Quadros, em 1961, tentou um autogolpe ao renunciar e esperar ser reconduzido ao poder com mais força, mas fracassou.
No cenário internacional, o caso de Alberto Fujimori no Peru é emblemático. Em 1992, ele dissolveu o Congresso e assumiu poderes extraordinários, justificando suas ações como necessárias para combater crises internas. Com o apoio das Forças Armadas, ele consolidou um regime autoritário que perdurou até 2000. Durante esse período, seu governo foi marcado por escândalos de corrupção e graves violações dos direitos humanos que culminaram em sua fuga para o Japão naquele mesmo ano.
Casos mais recentes, como o de Donald Trump nos Estados Unidos em 2020, também trazem paralelos, diz advogado. João Valença, especialista em direito constitucional, observa que o então presidente tentou deslegitimar o resultado das eleições, questionando repetidamente a legalidade dos votos e alegando, sem provas, que o sistema permitia fraudes. Essas acusações foram intensificadas após a derrota nas urnas para Joe Biden.
Várias auditorias e investigações não encontraram evidências significativas de irregularidades. Essa estratégia de deslegitimar o processo eleitoral teve como consequência a polarização política nos Estados Unidos e culminou nos eventos violentos de 6 de janeiro de 2021, quando apoiadores do republicano invadiram o Capitólio em uma tentativa de reverter os resultados da eleição.
Especialistas veem paralelos entre as ações de Bolsonaro e esses episódios históricos. Antonio Celso Baeta Minhoto, doutor em direito público e constitucional, destaca que "se confirmadas as evidências, Bolsonaro parece ter seguido um caminho semelhante ao de Jânio e Vargas, tentando romper a ordem democrática para se perpetuar no poder".
Fala busca moldar narrativa, diz especialista
A fala do ex-presidente é vista por especialistas como uma tentativa de desqualificar as acusações. Antônio Carlos Souza de Carvalho, cientista político, afirma que "ao dizer que um golpe não seria contra Lula, Bolsonaro busca moldar a narrativa e evitar ser enquadrado no Artigo 359-M do Código Penal, que criminaliza tentativas de golpe. No entanto, as evidências da Polícia Federal mostram ações articuladas para romper com a ordem democrática".
Discurso revela confusão proposital entre a figura do governante e as regras democráticas, diz especialista em direito constitucional. Antonio Carlos de Freitas Jr., da USP, explica que "golpe não é apenas contra uma pessoa ou autoridade. É uma ruptura com as regras do jogo democrático. Mesmo estando no governo, um governante pode dar um golpe ao mudar as regras para se perpetuar no poder".
A definição de autogolpe encaixa-se nas ações atribuídas ao ex-presidente. Valença reforça que "um autogolpe ocorre quando o governante utiliza os aparatos estatais para concentrar poderes e romper as regras democráticas. A fala de Bolsonaro sugere que sua permanência no poder era o objetivo principal".
A viabilidade de um autogolpe dependeria de apoio das Forças Armadas, da elite econômica e da sociedade. Freitas Jr. aponta que "sem respaldo popular e com resistência das instituições, seria impossível consolidar um golpe no contexto atual. Mesmo em 1964, com uma democracia frágil, foi necessário amplo apoio civil e militar para o sucesso do golpe".
A retórica das "quatro linhas da Constituição" foi usada como uma tentativa de legitimar ações, segundo Valença. Para o especialista, "essa expressão serviu como uma fachada para justificar iniciativas que contrariam os princípios constitucionais, ao ampliar indevidamente os poderes presidenciais".