Bolsonaro perde um aliado

Se não mudar as ações, vitória de Biden pode jogar Brasil no isolamento diplomático

Carolina Marins Do UOL, em São Paulo Reuters

A vitória do democrata e ex-vice-presidente Joe Biden hoje na eleição para a Presidência dos EUA representa uma mudança drástica na condução ideológica da política externa norte-americana, o que pode causar, ao menos em um primeiro momento, uma situação de isolamento diplomático brasileiro.

Coordenada pelo chanceler Ernesto Araújo e por uma ala mais "olavista" do governo de Jair Bolsonaro (sem partido), a "nova política externa brasileira" é pautada no alinhamento automático aos EUA — o que já ocorreu outras vezes no Itamaraty.

Ao priorizar as vontades do atual presidente republicano frente a interesses nacionais, contudo, ela é também definida por especialistas e membros da diplomacia como um "alinhamento a Donald Trump".

Após a rejeição do eleitorado americano a Trump, será preciso uma mudança no discurso adotado atualmente pelo Brasil, avaliam especialistas ouvidos pelo UOL. Temas que uniam os presidentes brasileiro e americano, como saúde públicas, mudanças climáticas e direitos humanos, receberão outra abordagem pelo Partido Democrata.

Além disso, ao contrário do que ocorreu com a vitória do argentino Alberto Fernández em 2019 — quando Bolsonaro lamentou o resultado das eleições e não compareceu à posse —, o governo Bolsonaro deve logo adotar uma postura pragmática (com ações mais objetivas e afastadas de valores ideológicos). Até a definição dos resultados das urnas, o presidente brasileiro declarava "lealdade" a Trump e torcida por sua vitória.

A vitória de Biden exigirá que o governo brasileiro coloque a relação com os Estados Unidos para além do trumpismo e entenda que essa aliança está num patamar privilegiado e independente de Trump.

Felipe Loureiro, professor e coordenador do curso de Relações Internacionais da USP

Bolsonaro apostou todas as suas fichas na relação com Trump. Arrumou briga com Argentina, Alemanha, França e uma série de aliados tradicionais. É uma política externa totalmente baseada na amizade com Trump.

Carlos Gustavo Poggio, professor de Relações Internacionais da FAAP

Relações com os EUA

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Meio ambiente

Assim como Trump e ao contrário de Biden, o governo brasileiro se mostra negacionista ao falar de mudanças climáticas. Além disso, minimiza a extensão e a gravidade das queimadas nas florestas brasileiras. Durante debate com Trump, Biden chegou a citar o caso do Pantanal e já ameaçou sanções ao país por causa da devastação na Amazônia.

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Covid-19

Na saúde, mais especificamente sobre a pandemia do novo coronavírus, Bolsonaro repetiu o negacionismo de Trump, rechaçou o isolamento social e importou do colega norte-americano a ideia da cloroquina como remédio salvador. Biden, no entanto, se coloca ao lado de cientistas, é a favor do distanciamento e uso das máscaras e aposta na vacina.

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Direitos Humanos

Nas votações internacionais envolvendo direitos humanos, o Brasil será abandonado por seu maior aliado e ficará ao lado apenas de governos de extrema-direita e ditaduras islâmicas. Em temas como aborto, direitos da mulher, direitos LGBTQ+ e outros, o democratas se posicionam de maneira oposta ao governo brasileiro.

Imigração

Outra questão relevante para o Brasil tratada por Biden é a migração. Há mais de 1 milhão de brasileiros morando nos EUA, segundo estimativa do Itamaraty. É a maior comunidade de brasileiros fora do território nacional.

O democrata reconheceu os problemas na política migratória americana, que foram acentuados com Barack Obama, e afirma que vai mudá-la. "Biden promete uma mudança muito significativa no âmbito de criar um caminho para a cidadania de imigrantes ilegais. Isso certamente favoreceria a comunidade gigantesca de brasileiros que vivem ilegalmente nos Estados Unidos", avalia Loureiro.

Eu acho que os democratas estão abertos a lutar pelos direitos de todas as minorias e pela igualdade de direitos. Ter um republicano no poder é melhor para mim financeiramente, mas eu acredito que, se não há uma redistribuição melhor, se não há melhores hospitais e melhores escolas, o país inteiro quebra. E não adianta cuidar só de pessoas específicas, porque o país não sobrevive quando existe pobreza.

Fabiana Saba, modelo brasileira, vive há mais de dez anos em Nova York

Futuro da política externa

Drew Angerer/Getty Images

Superado um curto período de isolamento diplomático brasileiro, avalia Carlos Gustavo Poggio, professor de Relações Internacionais da FAAP, as relações entre os dois países tendem a voltar ao que sempre foram: nem muito próximas, nem muito distantes.

"Mesmo havendo questões em que o governo Bolsonaro avançou [com Trump], isso não vai radicalmente mudar as relações Brasil-EUA. O que demonstra um grau de incompetência do governo Bolsonaro, que não soube construir relações com a nação americana, com a sociedade americana, republicanos e democratas, e com o Congresso americano".

A agenda do Partido Democrata de Joe Biden privilegia o aquecimento global, o acordo de Paris, a preservação da Amazônia, a proteção dos povos indígenas, os direitos humanos, é contra a guerra cultural e favorece políticas de gênero: tudo o que o governo Bolsonaro detesta.

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Rubens Ricupero, ex-embaixador do Brasil nos EUA durante entrevista ao colunista do UOL, Jamil Chade

Bolsonaro vai ter que mudar muito. Se ele tentar fazer o que tem feito até agora, que é invocar uma falsa noção de soberania, uma grande parte da elite brasileira que está tendo tolerância com ele até agora deixará de tê-la. Se tem uma coisa que a elite brasileira não suporta é brigar com os Estados Unidos.

Celso Amorim, Ex-ministro de Relações Exteriores nos governos Lula e Dilma

Não sabemos exatamente qual será a política externa se Biden vencer. É óbvio que haverá diferentes ênfases de um governo democrata em relação ao atual. Fala-se muito na preocupação que eles têm com a questão ambiental. O Brasil está pronto para ter essa conversa, para trabalhar junto, para cooperar. Não temos diferenças importantes nessa área.

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Nestor Forster, Atual Embaixador do Brasil nos EUA em entrevista ao UOL em outubro

China continuará central

Ju Peng/ Xinhua

Uma agenda do governo Trump que deve se manter, numa retórica menos agressiva, é a oposição à China. Com base na plataforma de campanha de Biden e em seus assessores, "é muito evidente que a questão chinesa será central", analisa Loureiro.

É possível, assim, que os EUA exerçam pressão sobre o continente latino-americano pelo isolamento do país asiático. Desse modo, o governo Biden pode até vir a tolerar certos discursos do governo brasileiro — como o da questão climática — em prol de um aliado contra o gigante asiático, afirma.

Nasci em uma das maiores democracias do mundo. Vim para outro país entre os mais democráticos do mundo, mas nunca tive a oportunidade de participar do processo a partir do voto. Meu primeiro voto foi contra o Trump. Não contra o Partido Republicano, mas contra o Trump e sua política polarizante.

Reginaldo Dias, nos EUA há mais de 20 anos, conseguiu cidadania em 2019 e votou nesta eleição

Vitória da rejeição

Win McNamee/Getty Images

A vitória de Biden foi também um reflexo da rejeição a Donald Trump. O empresário deixa a Casa Branca com uma reprovação maior que a aprovação ao seu governo (52,5% contra 45,9%, respectivamente, de acordo com o Real Clear Politics).

A forma como conduziu a pandemia do novo coronavírus, sua postura frente aos protestos do Black Lives Matter (Vidas Negras Importam) e a queda na economia foram determinantes para a sua derrota.

Durante a pandemia, um assunto que ganhou evidência e foi muito explorado pelos democratas foi o sistema de saúde americano. Quando apareceram os primeiros casos de infectados pelo novo coronavírus, americanos deixavam de procurar hospitais mesmo com sintomas graves por medo do quanto aquilo lhe custaria.

Esta situação, somada a falas do presidente que minimizavam a doença, colocou os EUA em primeiro lugar em casos e mortes por causa da doença. A discussão sobre uma cobertura de saúde mais ampla e acessível voltou à tona e foi bem aproveitada por Joe Biden.

Acho que até os republicanos estão de saco cheio, pelo menos os que conheci aqui na Geórgia. O meu marido tem alguns amigos que sempre foram republicanos, mas que não concordam com a forma como Trump tem governado. Atualmente eles estão se interessando pelo Biden e o meu marido votou no Biden também.

Nadhia Samo, brasileira que mora na Georgia, tradicional reduto republicano

TOBY MELVILLE/REUTERS

Ao longo da campanha, Trump manteve o discurso direcionado à sua base eleitoral, esquecendo-se de que, nesta eleição, ele não tinha seu elemento principal da campanha de 2016: se colocar como um "outsider" (alguém de fora da política, neste caso).

sobre os protestos antirracistas que explodiram no país após a morte de George Floyd, homem negro assassinado por um policial branco, Trump adotou uma abordagem agressiva e chegou a colocar a Força Nacional norte-americana para conter os manifestantes. Sua postura em não rechaçar supremacistas brancos também incomoda.

Embora seu discurso de ser o "presidente da lei e da ordem" ganhe adesão entre apoiadores mais conservadores, pesquisas mostraram que isso causou maior rejeição entre moderados e progressistas.

Nos últimos cem anos, houve três americanos que mudaram o país e o mundo, no sentido de ruptura radical com o que se fazia antes: Roosevelt, Ronald Reagan e Trump. Os demais podem ter sido bons presidentes como Obama, mas não inauguraram uma nova era.

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Rubens Ricupero, ex-embaixador do Brasil nos EUA durante entrevista ao colunista do UOL, Jamil Chade

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