Corleones em São Paulo

Chefes da máfia italiana nem disfarçaram identidade para viver e negociar drogas, por anos, no Brasil

Luís Adorno Do UOL, em São Paulo e Riccione (Itália) 08.jul.2019 - Nicola Assisi, ao ser preso, em SP - Jota Erre/Agência O Dia/Estadão Conteúdo

Desde o fim de 2015, Patrick Assisi, 36, é tido pelas polícias, promotoria e governo italiano como um dos principais narcotraficantes do mundo. Ele exerce função chave dentro da máfia calabresa 'Ndrangheta, considerada a maior organização criminosa do planeta em atividade, segundo investigações europeias.

Patrick figura na lista de procurados pela Interpol desde fevereiro de 2016, e seu pai, Nicola Assisi, 61, está foragido da Justiça italiana desde 2008. Eles foram presos pela Polícia Federal brasileira em julho de 2019, em um apartamento na Praia Grande, litoral de São Paulo. No presídio federal de Brasília, os dois aguardam se serão ou não extraditados para a Itália.

No pedido de extradição, o governo italiano afirma que os dois, entre outras acusações, são "promotores, chefes, organizadores e financiadores das atividades ilícitas" da máfia e que "cuidaram da compra de consideráveis quantidades de cocaína de organizações criminosas que operavam na América do Sul", sobretudo da facção paulista PCC (Primeiro Comando da Capital).

Investigação do UOL, baseada em documentos (alguns sigilosos) da polícia e promotoria brasileiras e italianas, aponta que ambos viviam no Brasil desde, pelo menos, 2013. Enquanto o pai tentou manter discrição em suas movimentações, o filho, sem se disfarçar, se casou em cartório, criou empresa e registrou dois filhos nascidos no hospital Albert Einstein: o menino, de 4 anos, tem o nome do avô Nicola; a menina, de 3, tem o segundo nome da avó, Rosalia.

Em depoimento cedido à Justiça federal, em setembro do ano passado, Patrick afirmou ser vítima de uma perseguição das autoridades italianas por "racismo", já que ele e seu pai são do sul do país, região mais pobre comparada ao norte. Ele afirma que a família não tem ligação com nenhuma máfia.

A reportagem a seguir liga os pontos entre as investigações das polícias italiana e brasileira.

Patrick Assisi, acusado de ser chefe da máfia 'Ndrangheta

Fantasmas da Calábria no paraíso chamado Brasil

Um ano antes de aparecer na lista de procurados da Interpol, Patrick Assisi e uma empresária paulistana de 27 anos decidiram se casar. O matrimônio foi registrado no cartório de Ferraz de Vasconcelos, com comunhão parcial de bens, em 10 de abril de 2015. Desde então, a mulher do italiano trocou o último sobrenome para Assisi.

À 0h31 de 10 de fevereiro de 2016, no Hospital Albert Eintein, nasceu o primeiro filho do casal. Às 8h49 de 30 de março de 2017, no mesmo hospital, nasceu uma menina, fruto do casal. As duas crianças têm nomes de familiares de Patrick. A pedido da defesa dos Assisi, após a publicação desta reportagem, os nomes das crianças foram preservados.

As crianças haviam sido matriculadas em um maternal privado no Anália Franco, zona leste de São Paulo, em 27 de agosto do ano passado. A mãe dos meninos diz que o pai, Patrick, é honesto, atencioso e amoroso e os filhos eram muito apegados a ele.

Reportagem do UOL de dezembro de 2018 mostrou que, segundo investigação feita durante dois anos, em quatro países europeus, os Assisi possivelmente estariam vivendo na região metropolitana de São Paulo. A informação foi investigada pela inteligência do governo federal brasileiro.

Nicola se dizia ser o argentino Javier Varela. O italiano de 61 anos abriu uma empresa de fachada na cidade de Ferraz de Vasconcelos, chamada "Poli Pat 9", que serviria para lavar dinheiro.

De acordo com a investigação europeia, vivendo no Brasil, eles tinham como principal negócio a compra de drogas do PCC e dos cartéis colombianos, sendo uma espécie de "correspondentes da máfia na América do Sul".

A suspeita da polícia italiana é de que o traficante viajava constantemente entre países sul-americanos para negociar compra de cocaína, conversando constantemente com as facções criminosas mais potentes de cada local.

Segundo o governo italiano, as acusações sobre os Assisi são as seguintes:

  • Trataram da transferência da droga do Brasil e de outros países da América do Sul para a Itália;
  • Monitoraram o deslocamento do entorpecente colocado no interior de contêineres transportados a bordo de navios;
  • Comunicavam por celulares periodicamente substituídos, através de códigos encriptados, informações sobre o tráfico;
  • Concordaram os preços com os fornecedores e os compradores e mantiveram a contabilidade dos fluxos financeiros;
  • Coordenaram a compra e a contagem do dinheiro proveniente do tráfico internacional de drogas.
Navio de carga da MSC no porto de Santos

Transportadora MSC entre o PCC e a 'Ndrangheta

Tanto a polícia italiana quanto a Polícia Federal brasileira identificaram apreensões de cocaína, que seriam do PCC e da 'Ndrangheta, em Santos (Brasil), Valência (Espanha), Gioia Tauro (Itália) e Callao (Peru). No total, foi uma movimentação de quase uma tonelada de droga, em lapso inferior a um ano.

A maioria das viagens interrompidas tinha em comum a mesma transportadora: a MSC, conhecida no Brasil por cruzeiros marítimos luxuosos. Procurada, a MSC Cruzeiros do Brasil repassou o assunto para a MSC Mediterranean Shipping do Brasil, porque as investigações brasileiras e italianas mencionaram apenas navios de carga.

A MSC Mediterranean Shipping do Brasil afirmou que não irá se pronunciar sobre o assunto, mas disse que, "acima de tudo, o grupo MSC sempre coopera com as investigações instauradas pelas autoridades".

Segundo investigações brasileiras, André de Oliveira Macedo, o André do Rap, era o chefe do PCC na "célula porto" da facção, administrando a exportação da cocaína em Santos. De acordo com investigações italianas, Nicola e Patrick Assisi eram os responsáveis por negociar a compra da cocaína que partia de Santos para a Europa.

Apontou a investigação:

Em apenas quatro meses a organização enviou à Itália no total 919 quilos de cocaína, dos quais foram apreendidos 419 quilos. O entorpecente, escondido nos contêineres embarcados nos navios da MSC, para o porto de Gioia Tauro, e sucessivamente subdividido entre os clientes calabreses que administram o mercado de cocaína."

Confira a seguir onde, quando e quantas drogas transportadas em navios da MSC foram apreendidas entre 2013 e 2014.

  • 23/08/2013

    MSC Vigo, 55 kg, em Santos. Droga iria em carga de algoodão para Valência (Espanha)

  • 23/09/2013

    MSC Florentina, 55 kg, em Santos. Droga iria em carga de algoodão para Bremerhaven (Alemanha)

  • 24/11/2013

    MSC Vancouver, 282 kg, em Santos. Droga iria em carga de ração animal para Antuérpia (Bélgica)

  • 17/12/2013

    MSC Athos, 140 kg, em Santos. Droga iria em carga de carne para Las Palmas (Espanha)

  • 27/01/2014

    MSC Athens, 83 kg, em Santos. Droga iria em carga de açúcar para Conacri (Guiné)

  • 15/02/2014 e 17/02/2014

    MSC Abidjan e MSC Agadir, 32 kg e 105,6 kg, em Santos. Drogas iriam em carga de couro para Gioia Tauro (Itália)

  • 24/03/2014

    MSC Athes, 137 kg, em Santos. Droga iria em carga de açúcar para Las Palmas (Espanha)

  • 23/06/2014 e 23/07/2014

    MSC Abijan e MSC Alghero, 197,4 kg e 129 kg, em Valência (Espanha) e Gioia Tauro (Itália)

  • 14/08/2014

    MSC Tauro, 58 kg, em Gioia Tauro (Itália)

  • 01/09/2014 e 16/09/2014

    MSC Coruna e MSC Leanne, 88 kg e 110,7 kg, em Valência (Espanha)

As táticas do crime para levar drogas para a Europa

André do Rap, ao ser preso, em setembro de 2019

Transnacionalidade

Investigação chega até peças-chave; pandemia atrapalha os negócios

Para operar no Brasil, a 'Ndrangheta estabeleceu acordos com o PCC. Em dois anos, ao menos três homens com cargos de liderança na Itália estiveram com a organização brasileira. Existe a suspeita de que outros dois também estejam ou tenham passado por São Paulo com a mesma finalidade.

Segundo Gaetano Paci, procurador antimáfia da Calábria, "há muitas evidências de uma relação entre a 'Ndrangheta, que atua no cenário internacional, e narcotraficantes sul-americanos, porque muitas cargas de cocaína partem precisamente de portos brasileiros e muitas desembarcam em Gioia Tauro, um dos maiores portos do Mediterrâneo e que é controlado pela 'Ndrangheta".

Nicola e Patrick Assisi, segundo a investigação da polícia europeia, negociavam drogas junto a Gilberto Aparecido dos Santos, o Fuminho, preso em Moçambique em 13 de abril deste ano. Ele era considerado o criminoso mais procurado do Brasil. Segundo o MP (Ministério Público), apesar de não ser integrante do PCC, Fuminho é sócio e braço-direito de Marco Willians Herbas Camacho, o Marcola.

A exportação da droga comprada pela 'Ndrangheta partia para a Europa a partir do porto de Santos, com o aval do PCC. Após o assassinato de Rogério Jeremias de Simone, o Gegê do Mangue, em fevereiro de 2018, quem passou a controlar a região foi André de Oliveira Macedo, 42, o André do Rap. Ele e os Assisi teriam contatos diretos. Em setembro do ano passado, porém, André do Rap foi detido, em Angra dos Reis, no Rio de Janeiro.

Além dos Assisi, a investigação europeia apontou que Domenico Pelle, o principal chefe da máfia na Itália, esteve em São Paulo para negociar drogas pessoalmente com lideranças do PCC pelo menos duas vezes, entre 2016 e 2017. Suspeita-se, inclusive, que ele tenha se encontrado diretamente com Fuminho.

Pelle foi preso na Europa em dezembro de 2018. Ele nega em depoimentos as denúncias que o ligam ao PCC.

Coronavírus atrapalha

Além da queda de líderes importantes, tanto do PCC quanto da 'Ndrangheta, outro problema enfrentado por ambas as organizações criminosas é a pandemia do novo coronavírus.

Numa primeira etapa, o PCC está com dificuldade para importar droga, sobretudo maconha, dos países andinos, já que as fronteiras terrestres estão fechadas. A droga está entrando no Brasil por vias clandestinas aéreas e fluviais.

Uma vez exportada a cocaína para a Europa, Espanha e Itália estão em lockdown, ou seja, em isolamento total, sem a presença de pessoas nas ruas, o que dificulta a logística do tráfico local.

PCC a caminho de ser máfia

Antes da 'Ndrangheta, líderes do PCC presos em São Paulo já tiveram contato com integrantes de outra máfia italiana, a Camorra.

Os irmãos italianos Bruno e Renato Torsi, detidos na prisão de Taubaté, no interior paulista, deram ensinamentos aos até então conhecidos como principais ladrões de banco do estado. Os Torsi deram a ideia da criação de um estatuto com procedimentos a serem seguidos dentro e fora das cadeias. Três anos depois, o PCC surgiu naquele mesmo presídio.

Para o promotor de Justiça Lincoln Gakiya, considerado o principal investigador do país contra o crime organizado em São Paulo, a exemplo do que ocorreu no passado, quando o PCC aprendeu, com presos que tinham essa "expertise", a se organizar, roubar e sequestrar, o mesmo pode acontecer em breve para que a organização criminosa brasileira evolua no único ponto que a diferencia de uma máfia: a lavagem de dinheiro refinada.

"O PCC é uma autêntica organização criminosa. A lavagem de dinheiro do PCC ainda é embrionária. Mas isso tende a acabar. Os presos da Operação Lava Jato, por exemplo, aqueles operadores de crimes financeiros, já estão sendo condenados em segunda instância. Isso quer dizer que, daqui a pouco, eles vão se tornar réus comuns. Ainda que portadores de diploma universitário, vão parar nas principais penitenciárias do país. Inevitavelmente, vão ter contato com criminosos comuns, do PCC e do Comando Vermelho, por exemplo", afirmou o promotor.

Cocaína que chegaria às mãos de Patrick Assisi em 2013, vinda de Foz do Iguaçu

Nas mãos da polícia brasileira

O carro acima é um Ford F-1000. A foto, registrada pela Polícia Federal, retrata o veículo no interior de um hotel no Guarujá, no litoral paulista, em 25 de julho de 2013. Na carcaça dele, havia 61 kg de cocaína trazida de Foz do Iguaçu, no Paraná, e que chegaria às mãos de Patrick Assisi e, posteriormente, iria para a Europa.

Com interceptação da polícia, ele foi preso. Passou pouco mais de um ano entre as penitenciárias de São Vicente, no litoral, e Itaí, no interior paulista. Mas a polícia não conseguiu à época ligá-lo a nenhuma organização criminosa. Inclusive, na ocasião, Patrick mentiu para as autoridades, identificando o pai como Andrey, o que também passou batido em todos os processos do caso específico.

Naquela data, um caminhoneiro de 35 anos, que recebera R$ 15 mil para transportar a cocaína embalada em 55 tabletes envoltos em papel carbono roxo, chegou a um hotel no Guarujá na caminhonete. Lá, ele teria de esperar o contato de Assisi. Policiais, no entanto, observavam carros com placas de estados que fazem fronteira com Paraguai e Bolívia, numa investigação contra tráfico de drogas.

Ao perceber a placa do Paraná, os policiais federais detiveram o caminheiro, que confessou o crime. Enquanto questionavam o caminhoneiro, Assisi chegou à recepção do hotel perguntando sobre o dono do carro. Detido em flagrante, ele negou que tivesse perguntado sobre o caminhoneiro, mas, sim, sobre uma vaga de um quarto, com quem pretendia ficar com uma namorada.

Em depoimento à polícia, Assisi afirmou que já havia sido preso na Itália e condenado a três anos porque "estava em um carro em que uma pessoa transportava meio quilo de cocaína. Essa pessoa se chamava Doriano Storino".

Documentos de investigações italianas apontam que Storino "é executor de todas as disposições dadas através de meios de comunicação indicados pelos Assisi, inclusive as organizativas e logísticas de toda a família".

Em 1º de setembro de 2014, a juíza de Direito Denise Gomes Bezerra Mota condenou o caminhoneiro que confessou ter levado a droga e absolveu Assisi. "Não existem provas suficientes de sua autoria. De fato, os indícios do caderno inquisitorial não se transformaram em prova apta a ensejar decreto condenatório. Não foi produzida em juízo prova segura a demonstrar o seu envolvimento com o delito narrado nos autos", escreveu. Assim, o italiano foi liberado pelas portas da frente da prisão.

Uma carta ao ministro Fachin

Mulher de Patrick escreveu no ano passado:

Excelentíssimo Sr. Ministro Luiz Edson Fachin,

Venho através desta carta lhe fazer um pedido, um apelo como mãe, esposa e cidadã brasileira. Sou esposa do Patrick Assisi, um homem generoso, honesto, batalhador, um pai carinhoso, responsável, presente, um marido amoroso e companheiro fiel com quem criei uma família linda e, mesmo ele sendo italiano, escolheu viver e trabalhar no Brasil. Abrimos uma empresa para ficar e sustentar a nossa família aqui.

Sabíamos que ele estava sofrendo esse processo na Itália, até porque ele garantia que ganharia, pois é inocente e sofre perseguição por esse país, uma vez que o acusam de cometer um fato enquanto ele estava preso no Brasil, desacreditando assim da nossa Justiça brasileira.

Excelentíssimo senhor, nós temos endereço fixo, trabalho e filhos, eu suplico que mesmo se o meu marido errou, que ele pague essa pena no nosso país, pois não seria justo ter que expulsar mesmo que involuntariamente uma família inteira do seu país por uma pessoa que responde a um processo injusto.

Nossos filhos, G., que tem 2 anos, e N., de 3 anos, que eram muito apegados ao pai, uma pessoa muito presente na vida deles, e eles que são tão pequenos para entender esse separação tão brusca e repentina, que diante disso estão sofrendo emocionalmente e afetando a saúde, pois choram muito, não querem comer e chamam pelo pai todos os dias, o procuram pelos cômodos da casa.

Vossa excelência, que representa o nosso país, um homem justo e respeitado pela nossa sociedade, imposto por Deus para exercer essa função tão importante, que eu sei que julga conforme as leis, mas que também julga a favor da família.

Peço que julgue esse caso com atenção e carinho, pois não é só a vida de Patrick que está em suas mãos, e sim a de uma família inteira, que terá que ficar longe do seu país e de seus familiares.

Se o senhor dedicou o seu tempo e leu essa carta, eu já sou muito agradecida, mas peço que, por favor, mantenha o meu marido aqui perto dos seus filhos e da sua esposa, pois eu não tenho condições psicológicas para ficar longe da minha família num momento tão delicado como esse.

Desde já, te agradeço.

Passaporte falso utilizado por Nicola Assisi no Brasil

O futuro dos mafiosos

A carta da mulher de Patrick Assisi está nos autos, mas os processos de extradição dos dois italianos permanecem sob avaliação.

Por meio de nota, o Depen (Departamento Penitenciário Nacional) confirmou que Nicola Assisi e Patrick Assisi estão presos no sistema penitenciário federal. "Por motivos de segurança, este departamento não informará a localização dos mesmos", afirmou.

No entanto, a reportagem apurou, tendo acesso a documentos sigilosos, que os dois italianos aguardam extradição na unidade federal de Brasília, a mesma que também abriga os principais chefes do PCC (Primeiro Comando da Capital), entre eles, Marco Willians Herbas Camacho, o Marcola, apontado como principal líder da facção.

Autoridades italianas, ao pedir extradição de Patrick Assisi, enfatizaram "a importância de adotar medidas de segurança compatíveis com o perfil do nominado, considerando o nível de ligação com o crime organizado e os recursos que dispõe".

O advogado que prestou serviços a Nicola e Patrick Assisi após a prisão de ambos, Eugênio Malavasi, afirmou à época que a defesa não iria se manifestar sobre a situação processual dos dois. Agora, disse que o caso está nas mãos de Antônio Carlos de Almeida Castro, o Kakay, acostumado a defender políticos poderosos no Brasil. Ele afirmou à reportagem cuidar, basicamente, da questão da extradição de ambos.

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