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Com chefes vindo a SP, máfia italiana usa ardis e aliado PCC para traficar

Nicola Assisi, de boné ao centro, é apontado como líder da máfia italiana "Ndrangheta e foi preso na Praia Grande (SP) - 08.jul.2019 - Jota Erre/Agência O Dia/Estadão Conteúdo
Nicola Assisi, de boné ao centro, é apontado como líder da máfia italiana 'Ndrangheta e foi preso na Praia Grande (SP)
Imagem: 08.jul.2019 - Jota Erre/Agência O Dia/Estadão Conteúdo

Luís Adorno

Do UOL, em São Paulo

18/07/2019 04h01

Resumo da notícia

  • Três líderes da 'Ndrangheta no Brasil estiveram pessoalmente em São Paulo
  • Após dois serem presos, investigações apontam que outros 2 podem estar em São Paulo
  • Parceria com PCC vai de compra de drogas à permissão para atuar no estado
  • Para driblar apreensões, mafiosos usam empresas de fachada e escondem drogas

Apontada por investigadores europeus como a principal organização mafiosa no mundo atualmente, a 'Ndrangheta, com sede no sul da Itália, tem utilizado São Paulo como base de negócios de sua principal função: o tráfico de drogas.

Para operar no Brasil, a máfia estabeleceu acordos com o PCC (Primeiro Comando da Capital), facção forte no estado de São Paulo, entre outros. Em dois anos, ao menos três homens com cargos de liderança na Itália estiveram com a organização brasileira, de acordo com investigações europeias às quais o UOL teve acesso. Existe a suspeita de que outros dois também estejam ou tenham passado por São Paulo com a mesma finalidade.

O interesse da 'Ndrangheta em São Paulo é negociar diretamente com o PCC -- a única organização criminosa brasileira que exporta cocaína para outros continentes. Desde Santos (SP) sai grande parte da droga importada pela máfia italiana, que lucra com a revenda na Europa.

"'Ndrangheta se infiltra no estado e no mercado financeiro internacional"

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Duas toneladas de droga, avaliadas em R$ 1 bilhão

Segundo as investigações europeias, entre 2017 e 2018, foram enviadas à Europa cerca de duas toneladas de cocaína, avaliadas em cerca de R$ 1 bilhão. Os principais portos do país de onde há interferência do crime organizado são os de Santos (São Paulo), Salvador (Bahia), Itajaí (Santa Catarina) e o da capital do Rio de Janeiro.

Para o desembargador José Laurindo de Souza Netto, professor e supervisor pedagógico na Escola da Magistratura do Paraná e que tem estudos sobre as máfias italianas, a presença de lideranças da 'Ndrangheta em São Paulo é uma "clara demonstração da atuação em rede das organizações".

A mais ativa e poderosa mafia italiana negocia diretamente com a maior facção brasileira buscando base logística, sobretudo nos portos.
Desembargador José Laurindo de Souza Netto

23.mar.2017- Movimentação no Porto de Santos (SP). O governo brasileiro decidiu proibir preventivamente a exportação de carne pelas 21 empresas investigadas na Operação Carne Fraca, da Polícia Federal - Marcos Silva/Futura Press/Estadão Conteúdo - Marcos Silva/Futura Press/Estadão Conteúdo
23.mar.2017- Movimentação no porto de Santos
Imagem: Marcos Silva/Futura Press/Estadão Conteúdo

O domínio da fronteira do Paraguai pelo PCC tornou-se um lucrativo negócio para a 'Ndrandheta, segundo o magistrado. Sobretudo na exportação de cocaína pelo porto de Paranaguá (PR).

"O elo entre as organizações não ocorre somente no tráfico de drogas, mas também na lavagem de dinheiro com a abertura de empresas fantasmas", afirma Netto. Além de vender drogas à máfia, o PCC estaria agindo como parceiro da 'Ndrangheta, permitindo que ela trabalhe em locais considerados como seu território, a exemplo do porto de Santos.

A reportagem questionou a SSP-SP (Secretaria da Segurança Pública de SP) sobre que medida que o estado teria em atividade contra o tráfico internacional de drogas e monitoramento de membros de máfias ou facções estrangeiras, mas a pasta informou que a competência é da PF (Polícia Federal). Questionada, a PF não se manifestou sobre o assunto até a publicação desta reportagem.

Correspondentes da máfia na América do Sul

Moraram em São Paulo, por pelo menos um ano, Nicola Assisi, considerado por fiscais antimáfia italianos como o principal integrante da 'Ndrangheta, e seu filho, Patrick Assisi. Na semana passada, eles foram presos em um apartamento na Praia Grande, litoral de São Paulo, área identificada por policiais brasileiros como domínio do PCC.

Nicola seria o responsável por coordenar negócios desde o porto santista, onde o tráfico internacional de drogas é controlado pela organização criminosa paulista.

O UOL tentou entrar em contato com o advogado de Nicola e Patrick Assisi no Brasil, mas não obteve retornos da defesa.

Passaporte falso utilizado por Nicola Assisi, considerado com o principal integrante da máfia 'Ndrangheta em liberdade - Reprodução/OCCRP - Reprodução/OCCRP
Passaporte falso utilizado por Nicola Assisi
Imagem: Reprodução/OCCRP

O mafioso ficou conhecido na Itália sob a alcunha de "O Sobrinho" ou de "Fantasma da Calábria", região do sul da Itália de onde surgiu a 'Ndrangheta.

Há registros de seu envolvimento com o tráfico de drogas nesse local desde 1997. Além do negócio de compra de drogas com o PCC, os Assisi também são investigados por comprar drogas de cartéis colombianos, sendo uma espécie de "correspondentes da máfia na América do Sul".

Em uma interceptação telefônica realizada no ano passado, Assisi disse a um de seus sócios, que estava em Turim, no norte da Itália, que estava no Paraguai "para o trabalho".

A suspeita da polícia italiana é de que ele viajava constantemente entre os países da América do Sul para negociar compra de cocaína, conversando constantemente com as facções criminosas mais potentes de cada local.

Negociação com lideranças do PCC

Além dos Assisi, a investigação apontou que Domenico Pelle, apontado como o principal chefe da máfia na Itália, esteve em São Paulo para negociar drogas pessoalmente com lideranças do PCC pelo menos duas vezes, entre 2016 e 2017. Ele foi preso na Europa em dezembro de 2018.

A suspeita é de que ele tenha se encontrado com Gilberto Aparecido dos Santos, o Fuminho, considerado o principal criminoso em liberdade do Brasil. Ele é braço direito de Marco Willians Herbas Camacho, o Marcola, e estima-se que esteja morando na Bolívia e coordenando o tráfico internacional de drogas do PCC.

Detido na Europa, Pelle nega em depoimentos as denúncias que o ligam ao PCC.

Domenico Pelle, 26, suspeito de ser líder na máfia italiana 'Ndrangheta, foi preso em dezembro de 2018 - Divulgação/Polícia da Itália - Divulgação/Polícia da Itália
Domenico Pelle, suspeito de ser líder da 'Ndrangheta, ao ser preso, em dezembro de 2018
Imagem: Divulgação/Polícia da Itália

"O rei da cocaína de Milão"

Além dos Assisi e de Pelle, policiais e procuradores europeus e de países da América do Sul suspeitam de que outros dois líderes da 'Ndrangheta possam estar ou tenham passado por São Paulo. Rocco Morabito, conhecido como "o rei da cocaína de Milão", que fugiu de um presídio do Uruguai no fim do mês passado, é um deles. Ele fugiu juntamente com dois brasileiros e um argentino. Morabito estava prestes a ser extraditado do Uruguai para a Itália.

No final dos anos 80, o traficante, considerado como "o mais violento" da máfia, comandava a logística da exportação de drogas de São Paulo a Milão. Ele havia sido preso no Uruguai, em setembro de 2017, depois de 23 anos foragido.

Rocco Morabito após ser preso no Uruguai - 04.set.2017 - Divulgação - 04.set.2017 - Divulgação
Rocco Morabito após ser preso no Uruguai, em 2017
Imagem: 04.set.2017 - Divulgação

No início de janeiro de 2017, um membro da máfia, identificado como Gianni, teria organizado o encontro entre Pelle e líderes do PCC em São Paulo. Policiais europeus relataram que ele se apresenta no Brasil como empresário e teria uma loja de toalhas na capital paulista, que seria utilizada como fachada. Ele seria o quinto membro do alto escalão da máfia no estado paulista.

A reportagem não localizou as defesas de Rocco Morabito, que está foragido, e de Gianni, que ainda não foi identificado pela investigação.

1,2 tonelada de cocaína escondido em máquina

Três anos atrás, Patrick Assisi registrou em Ferraz de Vasconcelos uma empresa chamada "Poli Pat 9". A polícia italiana acredita que se trata de uma empresa de fachada, que serviria para lavar dinheiro do PCC.

A empresa havia sido um dos últimos rastros deixado pelos Assisi no país, até que a PF (Polícia Federal) apreendeu, em setembro do ano passado, 1,2 tonelada de cocaína escondida em máquinas rolo-compressoras no Porto de Santos. A droga seria levada para a Costa do Marfim, no continente africano.

Droga foi encontrada dentro de máquina prestes a ser exportada para África, desde o Porto de Santos - 18.set.2018 - Divulgação/Polícia Federal - 18.set.2018 - Divulgação/Polícia Federal
Droga foi encontrada dentro de máquina prestes a ser exportada para África, desde o Porto de Santos
Imagem: 18.set.2018 - Divulgação/Polícia Federal

Com auxílio de polícias europeias e africanas, a PF conseguiu identificar que essa tonelada era comprada pela 'Ndrangheta. Na Costa do Marfim, o maquinário era levado para uma empresa de construção de fachada. De lá, a droga era levada para a Itália de maneira fracionada.

A PF estima que a cocaína apreendida em Santos foi comprada por cerca de R$ 10 milhões e iria ser revendida na Europa por aproximadamente R$ 1 bilhão. Fiscais europeus apontam que Assisi era o coordenador da ação. Oficialmente, a investigação federal tenta confirmar a suspeita.