Da favela à delegacia

Filho de porteiro, responsável por investigar tortura com chicote em jovem reprime violência policial

Alex Tajra e Luís Adorno Do UOL, em São Paulo 06.set.2019 - Simon Plestenjak/UOL

Recebi ligação até do jornal britânico The Guardian, você acredita?

O delegado Pedro Luis de Souza, 62, chamou a atenção pela sensibilidade com que se posicionou sobre a tortura de um jovem negro de 17 anos, que foi amordaçado e chicoteado por dois seguranças de um mercado da zona sul de São Paulo porque tentou furtar quatro barras de chocolate.

O adolescente foi amarrado, despido e agredido com fios elétricos. As imagens da tortura foram registradas pelos agressores e repercutiram nas redes sociais durante a última semana. O caso entrou em segredo de Justiça na tarde de ontem.

Titular do 80º DP (Distrito Policial), responsável pelas investigações, Souza foi o responsável por pedir a prisão temporária, válida por 30 dias, dos seguranças Davi de Oliveira Fernandes, 37, e Valdir Bispo dos Santos, 49, suspeitos de terem torturado o jovem. Fernandes foi preso na noite de ontem; Santos permanecia foragido até a publicação desta reportagem.

Além da investigação contra os funcionários do supermercado, a equipe da delegacia apura se os mesmos seguranças torturaram outro homem e uma criança que também tentaram furtar objetos do estabelecimento.

"Nunca investiguei algo parecido. Já estive em vários casos graves. Já atendi na delegacia de homicídios e vi corpos mutilados, sem cabeça. Pai que mata filho, filho que mata pai. Infelizmente, essas ocorrências existem. Mas, sobre o fato do menino torturado, talvez a maior gravidade seja que vivemos num país em que o período escravocrata vigorou durante anos. O Brasil foi o último país que aboliu a escravidão. E isso se reflete até os dias de hoje", afirmou o delegado ao UOL.

06.set.2019 - Simon Plestenjak/UOL
06.set.2019 - Simon Plestenjak/UOL

Insubordinado no Exército

Dos 42 anos dedicados à Polícia Civil, Souza ficou os últimos 30 como delegado. Ele até já poderia se aposentar, mas diz acreditar que ainda pode "fazer a diferença" nos bairros periféricos da cidade. Conhecedor das pontas da capital, foi criado na região do Jaguaré pelo pai porteiro e pela mãe dona de casa, chegando a morar em favela.

"Nasci num bairro bem pobre de São Paulo, na periferia, no Rio Pequeno. Morei em favela também, mas tive estrutura familiar: pai e mãe. Meu pai era porteiro, minha mãe era dona de casa. Estudei em escola pública a vida inteira. Fui para o Exército quando fiz 18 anos e logo depois entrei na Polícia Civil", diz. "Comecei na polícia como escriturário, que auxiliava na delegacia, e fui para a academia de polícia. Depois, fui carcereiro, escrivão, investigador e há 30 anos atuo como delegado", complementa.

Dos 18 aos 20, ainda durante a ditadura militar, Souza serviu ao Exército brasileiro. "Não quis seguir porque o regime militar era um tanto rígido demais. Eu era totalmente insubordinado [risos]. Eu não gostava daquele regime militar, nunca me dei bem. Isso foi em 1975. Então, quando eu saí, precisava de algum emprego. E fui para a Polícia Civil", relembra.

Como policial, passou por pelo menos nove delegacias das periferias de São Paulo, além das especializadas Deic (Departamento Estadual de Investigações Criminais) e DHPP (Departamento de Homicídios e de Proteção à Pessoa). "Não tem pior ou melhor lugar. Eu sempre trabalhei na periferia. A gente quer fazer um bom trabalho para quem precisa. E o pessoal da periferia é um povo muito sofrido. Falta infraestrutura, falta saneamento, falta tudo. E é onde estão os maiores problemas", afirma.

As pessoas da periferia não vêm à delegacia só para problema policial. Às vezes, para problemas sociais que você tem que procurar resolver. Porque não temos assistente social em plantão para resolver

Pedro Luis de Souza, delegado

03.set.2019 - Reprodução/TV Globo

"Não tem como dissociar com o período escravocrata"

O UOL não publicou o vídeo do jovem sendo torturado para preservar a vítima. Até o próprio delegado teve dificuldade para ver as imagens. Na primeira vez que assistiu, não chegou até o fim. "Não tem como dissociar a agressão sofrida por ele com o período escravocrata que vivemos no Brasil. Não tem como. A imagem associa diretamente a esse período. Você vendo ele pedindo pelo amor de Deus para que parassem com aquela agressão. Foi uma agressão covarde, uma violência desmedida", disse.

Não tem como não relacionar com o período em que os senhores de engenho açoitavam negros ou em praça pública ou nas fazendas de café e de cana-de-açúcar

De acordo com o delegado, o adolescente tem um problema grave relacionado ao consumo de crack. "Ele vem de uma família totalmente desestruturada, vive na rua, vive de pequenos furtos. Tem problema até para se comunicar. Fiquei com pena da situação dele. Lógico que nada justifica ele praticar o furto, não é isso, pelo amor de Deus. Não queremos justificar o injustificável. Não é lícito praticar furto. Só que a desproporção do ato punitivo imposto a ele ao ato infracional que ele praticou não tem parâmetro", afirmou.

"Como você vai pegar uma criança —eu chamo de criança porque ele não aparenta ter 17 anos, aparenta ter bem menos—, deixar numa sala e, depois de um certo tempo, faz o menino se despir, amordaça, amarra, deixa nu e dá chibatada nele? Não dá", avaliou.

O caso veio à tona na última segunda-feira (2), quando o estudante denunciou o caso na Polícia Civil. O jovem foi levado a uma sala dentro do estabelecimento, amordaçado, despido e chicoteado com fios elétricos. No depoimento à polícia, ele afirmou que o jovem não quis registrar a denúncia naquele momento, "pois temia pela sua vida".

No vídeo gravado pelos próprios seguranças, o jovem aparece quase inteiramente nu, com as calças abaixadas na altura do joelho, enquanto é agredido com uma espécie de chicote por um homem. No local onde o jovem foi torturado, é possível notar caixas lacradas e caixotes de plástico com frutas, no que aparenta ser um depósito.

O supermercado afastou os seguranças logo após a denúncia e se dispôs a ajudar nas investigações. Os dois seguranças eram funcionários de uma empresa terceirizada.

Em nota enviada à reportagem, a rede Ricoy afirmou que "repudia todos os casos de violência que ocorreram dentro e nos arredores de suas lojas por funcionários ou terceirizados."

"Todos os casos de agressão, discriminação ou violação dos direitos humanos devem ser punidos com o maior rigor da lei. Por isso o Ricoy está colaborando com as investigações de forma irrestrita e proativa", diz o texo.

06.set.2019 - Bairro da Vila Joaniza - Simon Plestenjak/UOL 06.set.2019 - Bairro da Vila Joaniza - Simon Plestenjak/UOL
Gabriel Alberto Tadeu Paiva, 16, morto em 20 de abril de 2017 após ser agredido por PM - Arquivo Pessoal

Tirou das ruas PM que agredia jovens com taco de madeira

Caso 'Negão da Madeira' terminou em condenação de PM

O caso do jovem torturado no mercado não é o primeiro que mexeu com os sentimentos do delegado Souza. Em abril de 2017, ele se empenhou para descobrir se a morte do jovem Gabriel Alberto Tadeu Paiva, 16, ocorreu porque ele fora agredido por um policial militar, como todas as testemunhas relataram. Na versão da PM, os policiais teriam encontrado Paiva já desacordado, no chão, sem saber quem o havia agredido.

"Naquela época, tinha muito baile funk nessa região em uma comunidade. O PM, que ficou conhecido como 'Negão da Madeira', descia da viatura com uma madeira agredindo a todos. Numa dessas agressões, ele atingiu uma criança, que bateu a cabeça e morreu. Provocou uma revolta enorme por aqui. Nós investigamos esse caso. Ele foi condenado a 24 anos de prisão", relembra.

Segundo familiares, no dia da agressão, Gabriel estava reunido com seus amigos na rua Vila Missionária, no bairro Cidade Ademar, zona sul de São Paulo, próximo a um carro em que se ouvia funk. Pessoas que presenciaram o momento e prestaram depoimento à Polícia Civil contaram que, para dispersar os jovens do local, quatro PMs os ameaçaram, um deles com um pedaço de madeira.

Após a agressão, Gabriel Paiva foi internado com um coágulo no cérebro e morreu quatro dias depois. Os militares, em depoimento colhido à época na delegacia da Vila Joaniza, disseram que havia um baile funk na região e que a PM foi acionada para dispersar os jovens. Segundo eles, uma mulher avisou que Gabriel estava machucado e caído no chão, e eles foram socorrê-lo.

O policial em questão é Jefferson Alves de Souza. "Sinto que fiz o meu papel. Recebi uma comissão de moradores logo depois da condenação que veio aqui me agradecer pelo trabalho que nós fizemos. O inquérito foi tão bem feito que ele foi condenado. Esse é um dos motivos que me faz continuar como delegado", afirma.

"Eu já posso me aposentar. Mas eu vejo que ainda tenho alguma coisa a dar para a comunidade. Ao pessoal da Vila Joaniza, Jardim São Jorge, Vila Missionária, que são as comunidades mais carentes que temos aqui", complementa.

"A polícia retrata aquilo que é a sociedade"

06.set.2019 - Simon Plestenjak/UOL

Negro, o delegado Souza diz que trata todas as pessoas da mesma maneira, sem distinção de cor de pele. Ele afirma acreditar que a polícia não age de maneira racista, mas que pode haver comportamentos racistas e que não devem ser aceitos.

"A instituição policial tem um pouco de cada um da sociedade. A polícia retrata aquilo que é a sociedade. E a polícia, a instituição, não é racista. Tanto que tem vários negros. A polícia age contra aquele que transgride a lei. Havia uma visão sobre a polícia, algum tempo atrás, nesse sentido. Mas ela tem traçado uma linha de trabalhar em cima do que é o direito, do Código Penal", afirma.

Ele diz que, quando chega até ele um caso de violência policial, recebe a notícia com tristeza. "Quando nós entramos na polícia, há um juramento para seguir a lei, atender a comunidade, atender a população. Estamos aqui para ajudar. A pessoa já pode ser roubada, violada ou agredida... Não dá para aceitar violência policial. Violência policial não é admissível. Não é admissível."

Se alguém concorda que pessoas se arvorem no direito de fazer justiça com as próprias mãos, rasga a Constituição e joga fora. Nós temos leis para serem cumpridas

"Se a lei está ruim, mude-se a lei. Querem pena de morte? Mude-se a lei. Querem liberdade para a polícia executar? Mude-se a lei. Por enquanto, não temos lei para isso", relata. Para ele, é necessário o respeito aos direitos humanos. "Eu não vejo quem defende o direito humano como protetor de bandido. Nunca foi isso. Os direitos humanos têm que ser respeitados. Eu me considero defensor dos direitos humanos. Sempre. Sempre. Sempre."

Os meus policiais daqui, te digo com tranquilidade que nenhum agride ninguém. Se algum policial transgredir, é Corregedoria na hora, com toda certeza. A mim, basta a lei

Para o delegado, é possível combater o PCC (Primeiro Comando da Capital) sem violência policial. Que, por isso, esse tipo de violência não se justifica. "Para combater o PCC, é chegar ao financeiro. Acabar com o PCC financeiramente. No mundo todo foi assim. Não vai ser diferente aqui. Não há necessidade de se usar violência policial. Mas, claro, se estiverem armados de fuzil, obviamente, você também tem que usar o seu fuzil."

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