Pó de estrela

Autonomia e liberdade do pensamento de Paulo Freire iluminam o olhar sobre mundos que se acabam

Jeferson Tenório (texto)
Yuri Lueskas (ilustrações)

A primeira vez que o mundo acabou, eu tinha 12 anos e estava na sexta série.

Ouvi o professor de ciência dizer que o Sol um dia iria explodir.

Disse, assim, sem pesar, sem tristeza e com naturalidade.

Primeiro ele desenhou o sistema solar no quadro, depois nos mostrou em detalhes como o Sol engoliria os planetas ao seu redor dali a 4 ou 5 bilhões anos. Disse ainda que o fim da humanidade seria bem antes e que talvez tivéssemos apenas mais alguns séculos sobre a Terra. Tudo o que existe um dia teria um fim para nós, ele disse. Mas não se preocupem, este é o ciclo natural do Universo. Voltaremos a ser o que fomos por milhares anos: pó de estrela.

Enquanto o professor continuava, eu olhei para a janela e vi o Sol entre as árvores e pensei como era possível aquilo. Como era possível que a vida inteira pudesse deixar de existir. O mundo era tão vasto para terminar, pensei. Uma espécie de desamparo tomou conta de mim. Eu tinha 12 anos e era jovem demais para sentir angústia, mas eu sentia. Lembro que minhas mãos suaram frio. Tive palpitações, enjoo, tontura e falta de ar. Desde aquele dia um certo mundo se apagou para mim. O mundo estável e eterno se perdeu e eu me descobrira finito.

Durante o recreio joguei bola, fiz um gol, tomei água e comi a merenda da escola. Mas sabia que algo havia mudado. E, antes de voltar para a sala de aula, olhei para o Sol. Pensei na sua força e na sua ternura ameaçadora. O calor e a distância me magoavam. Depois, em outra aula, a professora de matemática corrigiu alguns exercícios e eu até pensei em perguntar para ela se 5 bilhões de anos era muita coisa.

A segunda vez que o mundo acabou foi quando descobri que era diferente dos outros. Isso também foi na sexta série. Explico. Toda vida carrega uma fratura. A minha está relacionada à cor da pele. Certo dia, na escola uns meninos brancos faziam piadas sobre negros e apontavam para mim. No início, eu ria junto porque eu achava que deveria rir. No entanto, naquele dia em que meu corpo fora nomeado negro, naquele dia em que minha cor chegava primeiro, eu não sabia, mas um certo mundo se apagou. Às vezes, em minha memória, vasculho aquele mundo anterior à nomeação do meu corpo como negro. Mas este mundo vem aos pedaços. Lembrar é mais difícil que esquecer.

Outro dia, antes da pandemia, reencontrei aquele professor da sexta série. Caminhava pela rua com dificuldade acompanhado de sua filha. Parei e o cumprimentei. Ele fez um grande esforço para se lembrar de mim. Mas não conseguiu. Meses atrás o professor foi acometido de um derrame e a memória foi comprometida. Mesmo assim, lembrei-o sobre aquela aula. Disse-lhe o quanto me marcou. O professor olhava com atenção. Depois, disse: "Não lembro, mas, se você diz, eu acredito". Falou dando um tapinha no meu ombro. Logo em seguida, nos despedimos. Ele parecia cansado. Voltei para casa. O mundo em que talvez eu habitasse na memória desse professor também se foi. No entanto, ele está em minha memória. Sua aparência lembrava a de Paulo Freire, talvez não na forma física, mas no seu jeito de andar, de olhar para as coisas, de dar suas aulas. Ele nos ensinou sobre a liberdade, sobre autonomia, insurgências contra a opressão, e sobre como somos finitos e pequenos diante do universo.

Com a chegada da pandemia em 2020 e a necessidade do isolamento, vi em poucas semanas um certo mundo acabar novamente: o mundo dos encontros, dos cumprimentos e dos abraços se perdeu. Passamos a habitar o tempo da saudade de forma aguda e penosa. Nossas casas tornaram-se uma espécie de continente, e cada peça de nosso lar, um país.

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No início da pandemia, pareceu-me que a nomeação do corpo negro havia sido sustada. Acreditei que finalmente a ideia de igualdade havia chegado. Toda a humanidade acometida do mesmo mal. A solidariedade imperaria. Um esforço humanitário mundial se levantaria e então negros e brancos, ricos e pobres, homens e mulheres estariam juntos para salvar uns aos outros. Entretanto, não foi isso que vimos em 2020, pois o racismo e a indiferença reinaram, e vi corpos negros sendo mortos na frente das câmeras. E vi pessoas sem ar morrendo pelas ruas com covid-19. A morte tornou-se um espetáculo dantesco e cotidiano.


Em 2021, as vacinas chegaram e experimentamos um pouco de esperança. Voltamos a um certo convívio social. Ficamos talvez um pouco mais atentos aos sofrimentos dos outros. Lutamos contra a indiferença dos que sofreram com o racismo e a covid-19. A falta de ar foi o elo trágico entre o racismo e a pandemia. Pois o mundo não findou somente para as pessoas que sucumbiram de uma doença tão atroz. Findou também para aqueles que, por vezes, são impedidos de respirar, impedidos de caminhar, impedidos de existir desde o momento em que sua pele é nomeada e criminalizada. Um corpo negro é sempre um corpo em risco e a vida não dá tréguas.


Eu sei que estamos no final de 2021 e que as coisas estão um pouco melhores, eu deveria escrever um texto mais otimista, mais edificante, no entanto, a realidade é dura demais para mim. Evoco Paulo Freire nesta reflexão para iluminar nossa caminhada, embora a autonomia e a liberdade que ele tanto pregava sempre nos deem alegria, mas também um pouco de tristeza. Uma tristeza necessária para manter a lucidez diante de um mundo tão cruel. Em 2022, torço para que os encontros, os abraços e a solidariedade regressem com toda a sua força e beleza, sem esquecermos de onde viemos e para onde voltaremos todos, olhando para o céu. Pó de estrela.

Jeferson Tenório é um escritor carioca radicado em Porto Alegre. Ganhou o Prêmio Jabuti 2021 pelo romance "O Avesso da Pele"

Este é um capítulo da série

Cartas para 2022

Convidados escrevem sobre como momentos-chave de 2021 impactam no que vai acontecer no ano que vem

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Publicado em 23 de dezembro de 2021.

Texto: Jeferson Tenório
Ilustração: Yuri Lueskas
Produção: Marcela Leite
Edição de texto: Clarice Sá e Lúcia Valentim Rodrigues
Direção de arte: René Cardillo e Gisele Pungan