Sobrevivendo
ao egoísmo

Após um ano de celebração do acúmulo de capital em capa de revista, desafio será transpor ambições individuais

Vik Muniz (texto)

Yuri Lueskas (ilustrações)

A pandemia foi um balde cósmico de água fria na ilusão da eternidade. Ela nos despertou de um transe profundo que nos distraía do fim para uma gama imensa de vulnerabilidades físicas e psicológicas.

Uma experiência repleta de mortes solitárias, sem ritual nem pompa, sem eulogias, em covas coletivas, testemunhadas somente por anônimos, cobertos de plástico com perfume de desinfetante. Desumano! Eu escutei varias vezes, desumano! Porém, a pior das desumanidades não é a que a presença da morte proporciona, e sim a que nos faz ignorá-la, diariamente, a que nos distancia do conceito de espécie e nos faz, pelo culto da individualidade, crer que somos eternos e mais importantes uns do que os outros. Neste ano de 2021, somos todos sobreviventes.


Lembrei-me de um programa de televisão americano chamado "Survivor" (sobrevivente, em tradução livre), em que um grupo de desconhecidos era largado em um ambiente hostil e o ganhador era aquele que resistisse mais tempo às provações do inóspito lugar.


Os participantes passavam mais tempo, desencorajando de forma velada, os outros a permanecerem no jogo, como se a sua "sobrevivência" dependesse da ausência dos demais. O ganhador, muitas vezes um perito no assunto, era declarado por ser melhor do que os outros, mais resiliente e esperto, mesmo que mais chato e arrogante.

'Survivor' é o melhor exemplo da pior maneira de lidar com problemas que afetam um grupo e provavelmente foi inspirado pelos mesmos instintos que fizeram com que essa doença se alastrasse de forma tão avassaladora. Uma competição de egos, nomes e cargos, causando problemas que só um exército infinito de anônimos, médicos e profissionais de saúde, ainda insistem em resolver.

PUBLICIDADE

A politização criminosa de fatores que afetam a saúde geral é a principal razão pela qual ainda estamos vagando nesse mar de incertezas. A vida perdeu o sentido, e para recuperá-lo estamos elegendo o próximo "survivor".


O mesmo sentimento vazio que temos quando nos vemos nada mais do que corpos, permeáveis e vulneráveis a ataques de invisíveis agressores, deveria nesse momento de tamanha consciência biológica nos fazer despertar como espécie. Somos um organismo que, pela complexidade, é ineficiente contra a objetividade de seres mais simples e com mais consciência coletiva.


Uma pandemia é uma batalha entre espécies, e não um torneio para ver quem fica por último. O indivíduo nada mais é que um componente temporário da vida de uma espécie, e a individualidade tóxica que move a consciência da nossa passou a funcionar como uma disfunção autoimune.


2021 é também o ano que a revista "Time" elegeu Elon Musk como personalidade do ano. Os vírus não perdem tempo com tais frivolidades, principalmente quando o merecimento do eleito vem do acumulo exacerbado de capital e uma visão do futuro que obviamente não contempla a espécie como um todo.


Musk, com os seus alegados US$ 266 bilhões, é um exemplo perfeito da comunhão tacanha com que a biologia lida com a mitologia. Ele, no fim das contas, é o vencedor do "Survivor", festejando sozinho com a última garrafa de Don Perignon do universo, em uma cápsula de decoração minimalista, em algum lugar pitoresco de Marte. E o mais triste de tudo isso é que não haverá mais ninguém para ter inveja dele.


A evolução constata de forma inequívoca, que toda forma de vida é o resultado da percepção do ambiente físico seguida de alguma maneira de adaptação. O ser humano, pela facilidade que desenvolveu em se adaptar a todo tipo de impedância, acabou por deixar atrofiar os seus sentidos mais essenciais.


A empatia ou a percepção do outro tem sido uma de nossas piores deficiências. Sem ela, nada somos senão partes de uma máquina que esqueceu a sua função. O grande desafio da humanidade, o que nos garantirá imunidades a maioria de nossas aflições e ansiedades, será o de fomentar uma sensibilidade e uma consciência que transcenda as ambições do indivíduo.

Vik Muniz é um artista brasileiro, fotógrafo, desenhista, pintor e gravador. Trabalha com materiais inusitados como lixo, açúcar e chocolate. Tem obras em galerias de arte em San Francisco (EUA), Madri, Paris, Moscou e Tóquio, além de museus como Tate Modern e o Victoria & Albert Museum, em Londres, o Getty Institute, de Los Angeles, e o MAM, em São Paulo.


Em 2010, o documentário "Lixo Extraordinário" sobre o trabalho dele com catadores de materiais recicláveis no aterro de Jardim Gramacho, em Duque de Caxias (RJ), foi premiado no Festival de Sundance, nos EUA. No Festival de Berlim, no mesmo ano, levou o prêmio da Anistia Internacional e o do público na mostra Panorama.

Este é um capítulo da série

Cartas para 2022

Convidados escrevem sobre como momentos-chave de 2021 impactam no que vai acontecer no ano que vem

PUBLICIDADE

Publicado em 1º de janeiro de 2022.

Texto: Vik Muniz
Ilustrações: Yuri Lueskas
Produção: Marcela Leite
Edição de texto: Clarice Sá e Lúcia Valentim Rodrigues
Direção de arte: René Cardillo e Gisele Pungan