Qual o legado?

Intervenção federal diminui roubos, mas não contém escalada de mortes e violência no Rio

Hanrrikson de Andrade e Taís Vilela Do UOL, no Rio Danilo Verpa/Folhapress

314 dias sob intervenção

São 314 dias, um orçamento de R$ 1,2 bilhão e todo o aparato das Forças Armadas para resolver uma das mais urgentes crises do Rio: o descontrole da segurança pública.

A intervenção foi decretada em 16 de fevereiro e, desde então, o Comando Conjunto realizou megaoperações de combate ao crime, licitações e compra de materiais, entre outros avanços burocráticos.

Na última semana, o Gabinete de Intervenção entregou 852 novas viaturas à Polícia Militar fluminense, além de coletes à prova de balas, fuzis e munições.

Apesar da presença ostensiva dos militares, da transferência de comando da Secretaria de Segurança e das aquisições de material, o estado termina o ano com o mesmo patamar de letalidade violenta observado em 2017. São 5.025 ocorrências de março a novembro (45 a mais do que o mesmo período do ano passado) --os índices de criminalidade relativos a dezembro ainda não foram divulgados.

Desde 2007 as polícias do Rio não matavam tanto como no ano da intervenção federal. Foram 1.185 vítimas de março a novembro (quase 40% a mais do que o ano passado) e tudo indica que, após dezembro, terá sido o recorde da série histórica do ISP (Instituto de Segurança Pública). Os dados são compilados pelo órgão desde 2003.

O número de policiais mortos no Estado, 91 até o início de dezembro, deve fechar em baixa em relação ao registrado em todo ano passado, quando 134 foram assassinados.

Além das estatísticas e da sensação de insegurança ainda presente nas ruas, casos marcantes como o assassinato da vereadora Marielle Franco (PSOL) e de seu motorista, Anderson Gomes, e a morte do estudante Marcos Vinicius da Silva, baleado durante ação policial no Complexo da Maré, geraram contestações quanto à eficácia da intervenção. Meses depois, as duas investigações continuam sem respostas.

Ricardo Moraes/Reuters

Elas sentiram na pele

Uma perdeu a irmã, vereadora militante dos direitos humanos, e a outra guarda até hoje a camisa ensanguentada do filho morto em uma ação policial. Para essas mulheres, a intervenção não deixará saudade

Sonhos interrompidos

Criados no Complexo da Maré, Marielle e Marcos Vinícius foram vítimas da violência em 2018

Divulgação/PSOL

Marielle Franco

Defensora de direitos humanos e 5ª vereadora mais votada do Rio em 2016, Marielle Franco, 38, negra, foi assassinada em 14 de março em uma emboscada na região central da capital fluminense. A polícia ainda não elucidou o caso. O crime gerou críticas à intervenção e também pressão interna para que a investigação fosse federalizada. De acordo com o secretário de Segurança, general Richard Nunes, a parlamentar foi morta por milicianos.

Arquivo Pessoal

Marcos Vinícius da Silva

Baleado durante operação em uma das favelas da Maré, Marcos Vinícius da Silva, 14, estava a caminho da escola quando percebeu a ação da Polícia Civil, em 14 de junho. Naquele dia, outras seis pessoas morreram na comunidade. Moradores relataram que agentes atiravam do helicóptero que sobrevoava o terreno. O uniforme sujo de sangue erguido pela mãe, Bruna da Silva, no enterro do jovem tornou-se uma das imagens mais marcantes do período da intervenção.

Arte/UOL Arte/UOL
Arte/UOL Arte/UOL

Avanços, segundo as autoridades

Nossa intervenção foi de gestão, de atrair os policiais com maior senso de liderança para os postos chaves. (...) Com propósito muito mais de reestruturar os órgãos, do que de tratarmos do dia a dia da criminalidade

Richard Nunes, Secretário de Segurança Pública do Rio, ao jornal O Estado de S.Paulo

(Houve) integração entre os órgãos sob intervenção e parceiros para que a entrega (de equipamentos) fosse realizada com sucesso para as forças de segurança do estado

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General Braga Neto, Ao entregar viaturas e armamentos em dezembro à PM, Bombeiros e polícia civil

Na reta final da intervenção, assassinatos caíram 18% em relação a novembro de 2017. Maior redução foi em São Gonçalo: de 42 para 21 homicídios (comparando o 11º mês deste ano com anterior)

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ISP, Balanço divulgado em 18 de dezembro sobre a intervenção

Sob fogo cruzado

De fevereiro a dezembro, número de tiroteios cresceu 56%

Dados do aplicativo Fogo Cruzado compilados pelo Observatório da Intervenção, grupo de pesquisadores da Universidade Cândido Mendes, mostram que o número de tiroteios no Rio cresceu 56% durante a intervenção.

De fevereiro a dezembro, foram 8.193 registros de confrontos, quase 3.000 a mais em comparação com o mesmo período do ano passado. O Fogo Cruzado é um projeto que realiza um mapeamento não oficial de tiroteios no Rio.

O relatório do Observatório da Intervenção indica ainda que houve, neste ano, 53 chacinas, 213 mortes em chacinas, 1.203 mortos e 1.090 feridos em decorrência dos confrontos.

Foram monitoradas 668 operações de segurança pública realizadas pela intervenção federal no Rio, que mobilizaram 200 mil militares, policiais militares e civis, entre outros agentes. Nessas ações, 204 pessoas morreram e 715 armas foram apreendidas.

Márcia Foletto/Agência O Globo
Reprodução/Redes sociais

"Nem todo mundo que mora aqui é bandido"

O homem que aparece na imagem ao lado levando chutes de um soldado do Exército é Glauber Rosário da Silva, 28, morador da Cidade de Deus, favela da zona oeste carioca. Em julho, ele foi pivô de um dos vários relatos de agressões que, segundo denúncias, teriam sido cometidas por militares mobilizados pela intervenção.

Ao UOL, o jovem afirmou que, cinco meses depois, ainda se sente revoltado com o episódio.

Nem todo mundo que mora aqui é bandido. Aqui também tem gente que trabalha.

Glauber foi abordado pelos agentes fardados no momento em que tentava chegar à casa da namorada. Segundo ele, os membros da tropa disseram que ele não poderia passar pelo local e teria que percorrer um outro caminho muito mais longo. O morador teria então tentado argumentar, mas os militares alegaram desacato.

O caso veio à tona depois que vídeos feitos por moradores foram compartilhados no Facebook. As imagens mostravam Glauber sendo imobilizado com uma "gravata" e levando chutes, cercado de ao menos quatro agentes.

À época, ele relatou ao UOL que, após a agressão, ainda foi ameaçado. "Me tiraram da Cidade de Deus e falaram que iam me entregar para as milícias sumirem comigo."

O trauma pós-agressão

  • "Me sinto vulnerável"

    Glauber diz que abandonou o trabalho de camelô na Uruguaiana, tradicional centro de comércio popular do Rio, após ter sofrido as agressões. "Não vou porque tenho medo que possam fazer alguma coisa comigo", disse. Ele argumenta que o local de trabalho é distante da Cidade de Deus (quase 30 km). "Das vezes que fui, vi vários militares em comboio. Só fico em casa ou vou à padaria ou lugares próximos."

  • Dependência

    Sem trabalhar, Glauber diz depender da ajuda da namorada e dos familiares mais próximos para dar conta das despesas da família. "É uma situação que eu não pedi para acontecer", declarou.

  • Falta de respostas

    O jovem morador da Cidade de Deus diz que, logo após as agressões, foi chamado à Junta Militar para prestar esclarecimentos e ouviu que o Exército convocaria os agentes envolvidos para que eles se justificassem. Até hoje, no entanto, não houve resposta, segundo ele. "Estou esperando", disse.

Comando Conjunto / CML

Relatório aponta abusos de policiais e militares

Documento produzido pela Defensoria cita 30 tipos de violações, incluindo estupro e agressões

"Eles entraram numa casa que era ocupada pelo tráfico. Lá tinham dois garotos e três meninas. As meninas eram namoradas de traficantes. Era para ser todo mundo preso, mas o que aconteceu é que os policiais ficaram horas na casa. Estupraram as três meninas e espancaram os garotos. Isso não pode estar certo."

O relato acima foi colhido pela Defensoria Pública do Estado de forma espontânea para o relatório "Circuito Favelas por Direitos", cuja última atualização foi divulgada no dia 18 deste mês. Foram mais de 500 depoimentos de moradores de 25 comunidades afetadas direta ou indiretamente pela intervenção federal. O monitoramento das violações é feito pela Defensoria desde abril.

De acordo com o documento, foram identificados 30 tipos de abusos cometidos por policiais ou por homens das Forças Armadas, que vão de roubos e invasões de casas a agressões físicas e estupros.

"Eles vêm revistar a gente já gritando, chamando a gente de piranha, mulher de bandido, drogada. Vem empurrando e mexendo na gente. Eu sei que só mulher que pode revistar mulher, mas se a gente não deixar, leva tapa na cara", descreve outra testemunha.

A gente acompanhou na Rocinha o caso de um rapaz que foi morto com o filho no colo. (...) Estávamos na varanda [local onde a vítima foi atingida] e uma senhorinha chegou preocupada em nos dar suco e bolo. De repente, ela vira e fala: 'Ele caiu bem aí onde o senhor está. Se o senhor olhar, abaixo do seu pé ainda tem marca de sangue. Não consegui tirar tudo'. É uma dureza na fala dessas pessoas que, por mais que a gente saiba como funcionam essas coisas, é uma coisa muito difícil.

Thales Arcoverde Treiger, Defensor público da União

Divulgação

O 'outro lado' da dor

A angústia ininterrupta de famílias de policiais militares do Rio

De acordo com relatório do Observatório da Intervenção, 103 agentes de segurança (entre policiais e homens das Forças Armadas) morreram de fevereiro a dezembro. O registro oficial da Polícia Militar, que contempla de janeiro a dezembro, contabiliza 91 PMs assassinados em ações violentas no estado --sendo 24 em serviço, 54 quando estavam de folga e 13 que eram reformados ou estavam em reserva remunerada. Em todo o ano passado, foram 134.

Líder do grupo Somos Todos Sangue Azul, que reúne mulheres e familiares de PMs do Rio, Rogéria Quaresma afirmou ao UOL não ter visto avanços em relação à situação dos policiais em 2018. Isso porque, segundo ela, muitos agentes da corporação ficam feridos nas operações e acabam não entrando para as estatísticas oficiais.

"Nossos policiais continuam morrendo. São um ou dois por semana. Às vezes são três por semana. E, quando não morre, ele fica ferido. São policiais que saem de casa a pé e retornam em cadeiras ou amputados. Continuamos com o mesmo sofrimento de ver o policial sair para trabalhar e ter medo de ele não retornar", disse ela.

Crítica da intervenção, Rogéria afirma não ter tido "sossego na cabeça" como se imaginava após a transferência da gestão da segurança pública para as forças federais.

"Meu medo de ser a próxima viúva continua o mesmo que eu tenho há 22 anos como esposa. (...) Hoje é até maior porque eu sei que a criminalidade é muito grande", pontuou ela, argumentando que o número de tiroteios aumentou. "Eles dizem que a gente inventa tiroteio. Não existe isso de inventar tiroteio."

Para a gente, a intervenção não adiantou muita coisa. A gente continua perdendo. Não a vida, mas perde o policial, o companheiro. É ele que retorna para a casa amputado, na cadeira de rodas ou tetraplégico. Nosso medo de perder é o mesmo.

Três militares mortos em ação

Em agosto, 2 soldados e 1 cabo foram baleados durante operação nos complexos da Penha, Alemão e Maré

Reprodução/Facebook

Fabiano de Oliveira Santos

O cabo Fabiano de Oliveira Santos, 36, foi o primeiro militar morto na intervenção. Baleado no ombro no decorrer de uma ação no Complexo da Penha, ele ainda chegou a ser socorrido, mas não resistiu ao ferimento. O UOL tentou contato, por telefone, com o pai de Fabiano, Jorge Santos, mas ele não atendeu às ligações. No enterro, Jorge disse acreditar que o filho "morreu para fazer um Brasil melhor". "Espero que a morte dele não seja em vão."

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Arquivo pessoal

João Viktor da Silva

O aspirante a paraquedista João Viktor da Silva foi morto na mesma operação, mas em local diferente: ele estava em incursão no Complexo do Alemão, conjunto de comunidades vizinhas ao da Penha, quando foi baleado na cabeça por criminosos. O UOL entrou em contato com Mara Lima, ex-cunhada da vítima, e solicitou uma entrevista. Ela disse que checaria a disponibilidade da família, mas não retornou o contato.

Reprodução/Facebook

Marcus Vinicius Viana Ribeiro

A terceira vítima da mesma operação foi o soldado Marcus Vinicius Viana Ribeiro. Atingido por disparo de arma de fogo na perna, ele ainda chegou a ficar dois dias internado no Hospital Municipal Salgado Filho, no Méier, na zona norte carioca, mas houve agravamento do quadro clínico. A reportagem não conseguiu localizar a família Ribeiro.

O que diz a intervenção

A reportagem solicitou entrevistas com os porta-vozes do Gabinete de Intervenção Federal e da Secretaria de Segurança, porém ambos os órgãos informaram que não seria possível.

Caso Marielle

Na última terça-feira (18), policiais civis prenderam um homem suspeito de ser miliciano e estar envolvido com a morte de Marielle Franco e de seu motorista, Anderson Gomes. Renato Nascimento dos Santos, conhecido como "Renatinho Problema", foi localizado e detido em Guapimirim, na Baixada Fluminense. A possível participação dele na emboscada contra a vereadora ainda não foi esclarecida. A defesa de Renatinho não foi localizada pela reportagem.

Nas últimas semanas, a investigação do caso tem demonstrado pequenos avanços. Além da prisão de Renatinho Problema, a polícia cumpriu dias antes mandados de busca e apreensão na casa e no gabinete do vereador Marcello Siciliano (PHS). Colega de Marielle na Câmara Municipal, o parlamentar nega qualquer envolvimento com o crime.

Em 14 de dezembro, em entrevista ao jornal "O Estado de S.Paulo", o secretário de Segurança Pública, general Richard Nunes, afirmou que Marielle foi assassinada porque interferiu em interesses de milicianos sobre loteamento de terras em regiões periféricas da capital do Rio. "O que entendo hoje é que os criminosos superestimaram o papel que a vereadora poderia desempenhar", disse o militar.

As declarações de Nunes foram publicadas no dia seguinte a uma série de cumprimentos de mandados judiciais contra suspeitos de envolvimento na morte de Marielle e no mesmo dia em que a polícia cumpriu mandados em endereços ligados a Sicilliano.

Caso Glauber

Em julho, o CML (Comando Militar do Leste) informou à imprensa que havia instaurado um IPM (Inquérito Policial Militar) para apurar as circunstâncias das agressões e que reconhecia a autenticidade do vídeo que revelou o caso.

O UOL procurou novamente o CML, que, na última sexta-feira (21), informou que o inquérito continuava em andamento. "Portanto, o Comando Conjunto [órgão central da intervenção] não comenta até o término do processo".

Aumento de mortes

Em relação aos índices de criminalidade, a Secretaria de Segurança afirmou que análises iniciais dos dados do ISP "apontam que o aumento [do número de mortes] está relacionado à recuperação da capacidade operacional das polícias, à atuação das forças de segurança na mancha criminal e ao comportamento irracional dos criminosos quando escolhem o enfrentamento".

A reportagem também encaminhou à pasta outros questionamentos, que foram repassados para o Gabinete de Intervenção e para as polícias Civil e Militar. Até o momento, não houve retorno.

Bruno Kelly/Reuters
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