A corrida nos EUA para evitar que milhões de vacinas acabem no lixo enquanto mortes por covid-19 batem recorde
Quando a enfermeira Sandra Lindsay virou notícia como a primeira pessoa nos Estados Unidos a receber a vacina contra a covid-19, em 14 de dezembro, o plano do governo federal era imunizar 20 milhões de pessoas até o fim de 2020.
Quase um mês depois, 21,4 milhões de doses foram enviadas a hospitais e departamentos de saúde ao redor do país, mas somente 5,9 milhões pessoas já foram vacinadas, segundo dados do CDC (Centros de Controle e Prevenção de Doenças, agência de pesquisa em saúde pública ligada ao Departamento de Saúde).
Enquanto o país continua a registrar recordes diários no número de mortos pela doença, com um total de mais de 21 milhões de infectados e mais de 370 mil óbitos, atrasos e problemas de logística fazem com que milhões de doses corram o risco de expirar antes de serem distribuídas.
Apesar de o volume disponível até agora ser limitado, especialistas afirmam que o problema principal não é escassez, e sim dificuldades de distribuição.
O governo federal diz que a responsabilidade de distribuir a vacina é de cada Estado, mas autoridades estaduais e locais reclamam que precisam de mais apoio e não têm estrutura, mão de obra ou recursos financeiros para desempenhar a tarefa, especialmente quando já estão sobrecarregadas com casos e hospitalizações por covid-19.
As condições especiais de refrigeração exigidas para preservar as vacinas também representam um desafio. Além disso, problemas de planejamento, coordenação e comunicação fazem com que muitos hospitais nem saibam quando, qual ou quantas vacinas vão receber. Para a população, é muitas vezes difícil obter informações sobre quando e onde receber a vacina.
"Fazer a vacina chegar do fabricante até os Estados, isso está andando", diz à BBC News Brasil o especialista em doenças infecciosas e preparação para pandemias Amesh Adalja, do Centro para Segurança de Saúde da Universidade Johns Hopkins.
"Mas os Estados não estão conseguindo vacinar, colocar a agulha no braço das pessoas, de maneira rápida o suficiente", afirma.
Ritmo lento
O ritmo mais lento do que o esperado no que é considerada a maior campanha de vacinação na história dos Estados Unidos vem provocando frustração, principalmente depois de cientistas terem conseguido desenvolver vacinas contra a nova doença em tempo recorde.
Em dezembro, o país aprovou duas vacinas para uso emergencial, uma fabricada pela Pfizer-BioNTech e outra pela Moderna. Ambas exigem duas doses, com algumas semanas de intervalo. A vacina da Pfizer-BioNTech também precisa ser mantida em temperaturas extremamente baixas, de cerca de 70°C negativos, o que representa um maior desafio logístico.
Nas unidades de refrigeração disponíveis na maioria dos hospitais, as vacinas podem ser preservadas por no máximo 35 dias. Com isso, caso não sejam usadas a tempo, as primeiras remessas recebidas em dezembro podem expirar já neste mês.
Nesta fase inicial, os grupos prioritários para receber a vacina são trabalhadores do setor de saúde e residentes e funcionários de lares de idosos. Mas há casos ao redor do país de hospitais e locais de vacinação que tiveram de oferecer doses a pessoas aleatórias, fora dos grupos prioritários, em um esforço de última hora para evitar que vacinas acabassem no lixo.
Em um hospital na Califórnia, funcionários tiveram de correr contra o tempo depois de problemas no freezer onde as vacinas estavam armazenadas. Como todas as doses iriam estragar em duas horas, eles improvisaram locais de vacinação e recrutaram voluntários médicos para distribuir as vacinas a quem quisesse ser imunizado. Um caso semelhante foi registrado em Kentucky.
Na capital do país, Washington, um jovem relatou em um vídeo que viralizou no TikTok sua experiência ao ser abordado, ao lado de um amigo, pela funcionária de uma farmácia localizada em um supermercado.
Segundo ele, a funcionária disse que iria fechar em poucos minutos e tinha duas doses de vacina que iriam para o lixo caso não fossem aplicadas imediatamente, já que não poderiam ser preservadas em temperatura ambiente. As doses estavam reservadas originalmente para trabalhadores do setor de saúde que não compareceram ao local.
Há também relatos de sabotagem, como em Wisconsin, onde o funcionário de um hospital retirou frascos do sistema de refrigeração, fazendo com que 500 doses fossem estragadas.
Pressão
Diante dos atrasos, muitos governadores vêm pressionando hospitais a acelerarem a distribuição das vacinas.
"Uma porção significativa das vacinas no Texas está parada em prateleiras de hospitais, em vez de ser distribuída a texanos vulneráveis", tuitou no fim do ano o governador Greg Abbott.
Em Maryland, dados do início da semana indicavam que somente 34% das 163 mil doses enviadas a hospitais haviam sido usadas. O governador Larry Hogan ameaçou remover doses de hospitais que estão demorando demais na aplicação das vacinas e redirecioná-las para outros locais.
"Nenhuma dose vai ficar parada em um freezer enquanto houver outros esperando (pela vacina)", disse Hogan em entrevista coletiva, ao anunciar que iria acionar a Guarda Nacional para ajudar na vacinação.
No Estado de Nova York, o governador Andrew Cuomo ameaçou com multa de até US$ 100 mil (cerca de R$ 540 mil) os hospitais que não distribuíssem suas doses até o fim da semana.
Enquanto Cuomo pressionava hospitais e municípios, o prefeito de Nova York, Bill de Blasio, apelava para que o Estado ampliasse a vacinação para além dos grupos prioritários, passando a incluir qualquer pessoa com 75 anos ou mais e trabalhadores essenciais.
Apesar da orientação federal sobre grupos prioritários, os Estados têm autonomia para decidir seus planos de imunização, e alguns já estão ampliando a distribuição.
A Flórida foi um dos que começaram a oferecer a vacina a todos com mais de 65 anos e a pessoas de qualquer idade com comorbidades, mas o esforço tem enfrentado problemas. Nesta semana, circularam pelo país imagens de idosos acampados em longas filas no Estado, esperando por horas e noite adentro, na rua, por uma chance de serem imunizados.
Rejeição
Ao mesmo tempo em que muitos americanos esperam ansiosos por sua dose, inclusive com relatos de que milionários e pessoas influentes estariam tentando pagar para serem imunizados antes, vários Estados registram altos índices de rejeição por parte daqueles que já têm acesso garantido à vacina.
Nesta semana, o governador de Ohio lamentou que 60% dos funcionários de lares de idosos no Estado, incluídos no grupo prioritário, se recusaram a receber a vacina. Em Nova York, calcula-se que esse número seja de 30%.
Diante de relatos como esses, o cirurgião-geral dos Estados Unidos, Jerome Adams, principal porta-voz do governo federal para assuntos de saúde pública, disse que, se trabalhadores do setor de saúde não quiserem ser imunizados, os Estados devem rapidamente passar para outros grupos prioritários, como pessoas com mais de 75 anos e trabalhadores essenciais.
"Nós já estávamos vendo pesquisas, antes mesmo do desenvolvimento da vacina, indicando que haveria hesitação. E acho que isso vai se tornar um problema à medida que mais pessoas fora dos primeiros grupos prioritários começarem a ser vacinadas", observa Adalja.
"É preciso educar as pessoas sobre os riscos e benefícios da vacina. Ser transparente em relação aos dados sobre a vacina. E não permitir que o movimento antivacina defina os termos do debate", ressalta.
Os Estados Unidos não são o único país a enfrentar um início caótico em seu esforço de vacinação contra a covid-19. Enquanto alguns países, como Israel, têm sido apontados como exemplo de sucesso, outros, como França, Espanha, Itália, Grécia, Holanda e Polônia registraram vários problemas, desde atrasos até falta de treinamento para equipes médicas e escassez de seringas.
Mas o desafio nos Estados Unidos é agravado por um sistema de saúde sobrecarregado e uma campanha fragmentada. Como cada Estado pode definir seus planos de imunização, há grandes disparidades.
"O problema é que os departamentos de saúde estaduais não estão recebendo apoio (suficiente) do governo federal. Não é questão de o governo federal assumir o controle (da distribuição), mas sim oferecer apoio aos Estados que precisarem", ressalta Adalja.
Há relatos de Estados convocando trabalhadores médicos aposentados, dentistas e veterinários para ajudar a aplicar as vacinas.
Desafios
Apesar de o principal desafio atual ser a distribuição, o volume limitado de vacinas também gera preocupação. A orientação inicial é aplicar somente metade das doses disponíveis. Como são necessárias duas doses para que uma pessoa seja imunizada, a outra metade do estoque fica reservada para quando quem já recebeu a primeira dose precisar do reforço.
Alguns apelam para que mais doses sejam aplicadas imediatamente, aumentando o número de pessoas vacinadas, mesmo que a segunda dose seja atrasada. Mas propostas do tipo também enfrentam resistência, diante da falta de estudos que comprovem a eficácia de atrasar a segunda dose.
Os problemas na distribuição das vacinas ocorrem depois de falhas em várias etapas da resposta ao coronavírus nos Estados Unidos, incluindo atrasos no desenvolvimento e distribuição de testes, rastreamento de contatos e isolamento de possíveis infectados e escassez de equipamentos de proteção individual nos primeiros meses da pandemia.
O governo federal diz que, passados os feriados de fim de ano e as dificuldades iniciais, a expectativa é de que a distribuição seja acelerada. O presidente eleito, Joe Biden, que toma posse no dia 20 deste mês, prometeu reforçar apoio e financiamento aos Estados e distribuir 100 milhões de vacinas nos 100 primeiros dias de seu governo.
Mas o desafio é complexo. Na última quinta-feira (7/01) o país ultrapassou pela primeira vez a marca de 4 mil mortos por covid-19 em um único dia. Segundo o CDC, o número total de mortes poderá ultrapassar 430 mil até o fim de janeiro.
"Não importa quem esteja no comando, será um processo difícil vacinar basicamente a população adulta inteira dos Estados Unidos contra este vírus, com uma nova vacina, e fazer isso rapidamente", ressalta Adalja.
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