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Vacinar primeiro quem pode pagar abre desafio ético e de saúde pública no Brasil

Enfermeira indiana aplica vacina - EPA
Enfermeira indiana aplica vacina Imagem: EPA

Letícia Mori - Da BBC News Brasil em São Paulo

08/01/2021 08h07

"Prezado cliente, sobre a vacina para a covid-19, informamos que não temos informação sobre eventual comercialização dessa vacina e não temos lista de espera". A mensagem automática de um grande laboratório privado para os clientes que ligam no número da clínica mostra que a procura por uma vacina contra o coronavírus na rede privada já começou.

Por enquanto, nenhuma vacina contra a covid-19 obteve registro da Anvisa no Brasil, o que significa que elas não podem ser oferecidas nem na rede privada nem no SUS (Sistema Único de Saúde). Mas a agência de vigilância sanitária estima que uma autorização para uso emergencial de vacinas pelo SUS saia em cerca de dez dias.

Enquanto o país não tem um plano nacional de vacinação em andamento, as clínicas privadas já estão de olho na possibilidade de compra de vacina Covaxin, do laboratório indiano Bharat Biotech, segundo a Associação Brasileira das Clínicas de Vacinas (ABCVAC).

As clínicas privadas divulgaram no domingo que estão negociando com a Bharat Biotech para compra de 5 milhões de doses da vacina indiana, ainda não aprovada em nenhum outro país além da Índia.

A possibilidade trouxe uma série de dúvidas sobre como funcionaria a distribuição de vacinas pela rede privada no Brasil: As clínicas teriam autorização para vender? Quem tem dinheiro passaria na frente dos outros para ser imunizado? Quem tomar vacina de uma marca poderia tomar outra de outra farmacêutica depois?

A BBC News Brasil ouviu especialistas para responder essas questões. Entenda a possibilidade de distribuição da vacina indiana - e de outras - na rede privada no Brasil.

Autorização para vender

Para que uma vacina possa ser oferecida à população - tanto na rede pública quanto na privada - é preciso que ela obtenha uma registro na Anvisa, explica o advogado e médico sanitarista Daniel Dourado, pesquisador da USP e da Universidade de Paris.

O registro funciona como uma espécie de autorização da agência de vigilância sanitária, e no processo são avaliados os dados de segurança e eficácia do imunizante.

Normalmente, o processo de registro de medicamentos na Anvisa costuma demorar alguns anos.

Mas, por causa da urgência gerada pela pandemia de covid-19, a Anvisa disse que vai agilizar os procedimentos para o registro das vacinas contra o coronavírus e criou em dezembro a possibilidade de emitir uma autorização emergencial para uso de algumas vacinas durante a pandemia.

"As regras criadas pela agência determinam que a autorização emergencial somente pode ser usada para o oferecimento de vacinas pelo SUS", explica Dourado. "Ou seja, a rede privada vai precisar esperar pelo registro, que pode demorar mais."

A autorização emergencial para a aplicação de uma vacina pode sair em até dez dias após a farmacêutica apresentar o pedido, segundo a diretora da área de vacinas da Anvisa, Meiruze Souza Freitas - única servidora de carreira entre os diretores da entidade.

Já o registro - que em tese permitiria a distribuição da vacina também pelas clínicas particulares - pode sair em questão de meses, disse Freitas em uma entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo no sábado (2).

Então, embora não possam vender vacinas apenas com a autorização emergencial que a Anvisa deve dar para o uso no SUS, daqui a alguns meses, quando uma ou mais vacinas tiverem sido registradas na Anvisa, as clínicas vão poder comprar uma vacina - como a indiana - e vendê-la na rede privada.

"Depois que houve registro na Anvisa vai vai haver nenhum impedimento regulatório que impeça as clínicas de importarem e venderem vacinas contra a covid-19", explica Dourado. "A não ser que se crie uma nova lei sobre isso."

Problemas políticos e de saúde pública

No entanto, diante de um cenário de escassez do imunizante no mundo, a possibilidade de haver vacina sendo vendida na rede privada em cerca de alguns meses - enquanto a maior parte da população ainda não vai ter tido acesso pelo SUS - gera problemas, como ampliar a desigualdade, explicam os sanitaristas.

"Se a vacina for comprada pela rede privada antes de estar amplamente disponível no SUS, você cria um problema político", afirma Dourado.

"Você gera uma enorme inequidade ao disponibilizar a vacina primeiro para quem tem recursos", afirma o médico sanitarista Adriano Massuda, professor da FGV (Fundação Getúlio Vargas).

Além de criar uma enorme desigualdade no acesso, a disponibilização pela rede privada não contribui para o combate à pandemia, porque apenas uma pequena parte da população tem acesso à rede privada.

"Isso não tem impacto sanitário, coletivo, significativo, porque o objetivo da vacinação não é vacinar uma pessoa aqui e outra ali. Para acabar com a pandemia e a vida voltar ao normal é preciso ter uma boa cobertura vacinal na população", explica ele.

Defensores da venda de vacina na rede privada argumentam que a venda vacinas na rede particular poderia ajudar a desafogar o SUS, tirando do sistema os custos de vacinar essas pessoas que vão pagar do próprio bolso.

Dourado, no entanto, afirma que a disponibilização "não ia desafogar suficientemente a rede porque o acesso à rede privada no Brasil é muito pequeno" diz.

"Ações de saúde pública exigem coordenação de Estado, e quando ele não age a sociedade acaba buscando formas de responder. Mas pensar na disponibilização da vacina na rede privada como solução é um erro, porque é o Estado que deveria organizar isso. Essa falta de ação do Estado contribui para uma epidemia mais alongada e eventualmente para lucros para determinados grupos. Não dá para colocar o interesse econômico na frente do interesse de saúde pública", afirma Massuda.

A importância da ação do governo

Segundo Massuda, o problema não é a presença da vacina na rede privada em si, mas a falta de uma ação coordenada do governo federal - e a ideia de que a rede privada poderia "substituir a ação do poder público."

"Temos dois problemas: um presidente que desacredita a vacinação como estratégia e um Ministério da Saúde que tem reduzido sua capacidade sanitária e capacidade de coordenação", diz ele. "E com a falta de ação do governo federal, os Estados e Municípios - e também a rede privada - tentam preencher a lacuna. Mas não é bom, não é o ideal."

"Isso faz com que a epidemia seja mais prolongada, trazendo mais mortes que poderiam ser evitadas", diz o médico.

Individualmente, se apenas uma pessoa tomar, nenhuma vacina tem 100% de eficácia, e isso vale também para as contra a covid-19. A vacina da Pfizer, por exemplo, tem 95% eficácia, de acordo com os resultados da terceira fase de testes. Isso significa que, de cada 100 pessoas que tomarem a vacina, 5 não vão desenvolver imunidade contra o coronavírus.

Por isso é importante que haja uma ampla cobertura vacinal. Como o vírus passa de pessoa para pessoa, para conseguir se propagar ele precisa achar pessoas suscetíveis à doença. Mas a cobertura vacinal ampla diminui o número de pessoas suscetíveis, de forma tão significativa que o vírus não consegue encontrar mais circular e é contido. É um conceito chamado imunidade de rebanho. Ele é importante não apenas por causa da eficácia das vacinas não ser de 100%, mas porque há muitas pessoas que nem sequer podem tomar o imunizante - como pessoas com doenças que afetam o sistema imunológico e crianças.

Por causa disso, explica Massuda, a resposta à pandemia é algo que precisa ser feito pelo Estado.

"O que todos os países estão fazendo, mesmo quem tem sistema privado, é o governo assumir a compra. E isso sempre aconteceu (no Brasil) com relação às vacinas", diz ele.

Nos EUA, por exemplo, - onde o sistema de saúde é majoritariamente privado, com uma pequena parte da população utilizando o seguro saúde do governo - é o Estado quem está coordenando a vacinação.

No entanto houve críticas ao governo Trump por ter deixado boa parte da logística a cargo dos Estados e de governos locais. O governo previa que 20 milhões de pessoas teriam sido vacinadas até o fim de dezembro, e o total de pessoas que receberam a primeira dose ficou em cerca de 5 milhões

Israel, onde o governo federal tomou a frente da vacinação, conseguiu vacinar 15% da sua população em alguns dias, trabalhando em um ritmo dez vezes mais rápido que os EUA. Países como Reino Unido, Rússia, China, Canadá, Dinamarca, Emirados Árabes e Alemanha também já começaram a vacinação, coordenada pelo Estado em todos eles.

Um país que não excluiu a possibilidade de venda da vacina pelo setor privado é a Austrália, mas o Estado está coordenando amplamente o plano de vacinação e investiu mais de 300 milhões de dólares em apoio à pesquisa - e outros 3,3 bilhões em acordos com imunizantes candidatos à vacinação no país.

Na Índia, que se prepara para começar a vacinação, a ação também será coordenada pelo Estado, que aprovou o uso da vacina de Oxford e a vacina nacional, da Bharat Biotech. Por lá, uma das principais questões tem sido a desconfiança sobre a aprovação da vacina da Bharat Biotech sem que todos os dados de eficácia estivessem publicados. A entidade independente de vigilância em saúde All India Drug Action Network disse que há falta de transparência e "preocupações significativas por causa da ausência de dados de dados de eficácia da vacina".

Vacinas no setor privado

Segundo Massuda, a presença de vacinas para outras doenças na rede privada no Brasil é um fenômeno recente, que tem crescido nos últimos 5 anos e não é um problema porque se tratam de vacinas que também existem no SUS, com algumas exceções.

"O mercado explora outros tipos de vacinas para as mesmas doenças e outras vacinas menos essenciais - como as para alguns tipo de meningite. A convivência entre o público e o privado não é um problema, não é um problema quando o privado é complementar. O problema é quando se tenta substituir o público pelo privado, isso é péssimo pra saúde pública", diz Massuda.

"Vacinas são vendidas na rede privada desde sempre - isso virou um problema (no caso da covid-19) porque a gente não tem um plano nacional andando", afirma o médico sanitarista Daniel Dourado.

Sobre o assunto, o presidente Jair Bolsonaro afirmou que "se as clínicas querem vender, vão ter que correr atrás do registro". O plano nacional de vacinação anunciado pelo governo em dezembro não tem datas previstas para o início da vacinação.

Governo pode requisitar vacinas

No caso da vacina contra a covid-19, mesmo com muitos laboratórios produzindo vacinas diferentes, o imunizante ainda é um produto escasso - por enquanto não há doses suficientes para vacinar toda a população mundial e os países estão competindo por contratos com as farmacêuticas, especialmente pelas vacinas que tiveram melhores resultados nas pesquisas.

Nesse cenário, caso o registro da Anvisa saia e as clínicas privadas comecem a negociar vacinas com mais sucesso do que o Ministério da Saúde, é possível que o governo requisite essas doses para distribuição no SUS mediante uma indenização para as clínicas, explica Daniel Dourado.

Tanto o Ministério da Saúde quanto os governos estaduais e municipais podem fazer essa chamada "requisição administrativa", prevista em lei - há inclusive precedente durante a pandemia, com governos que requisitaram máscaras e equipamentos hospitalares.

"Na prática o governo pega as vacinas e indeniza depois. Mas não é o ideal, sai mais caro. Se houver vontade política, o Ministério da Saúde tem muito mais condições de negociar vacinas com melhores preços, com uma entrega melhor, do que as clínicas privadas", afirma Dourado. "O que falta é o cenário político para isso, o interesse do Ministério da Saúde em comprar."

Controle de doses e pessoas imunizadas

No SUS, existe uma ordem de prioridade para a vacinação, com trabalhadores de saúde e pessoas com maior risco recebendo as vacinas primeiro.

Mas no caso do registro sair e as clínicas privadas começarem a vender vacinas daqui a alguns meses - e o governo não fazer a requisição delas - a forma como as clínicas e laboratórios vão organizar a vacinação vai depender individualmente de cada clínica.

"No momento não existe nenhuma regulação sobre como seria a distribuição, porque seria algo inédito você ter uma vacina tão essencial na rede privada sem ter na rede pública", afirma Dourado.

Ou seja, em tese, nesse cenário de venda particular de vacina, quem tivesse dinheiro poderia tomar a vacina antes de ela estar disponível para o seu perfil demográfico no SUS. E a forma como as clínicas organizariam as filas também dependeria de cada local.

"Seria assim a não ser que se criasse uma legislação específica para isso, que não existe no momento", afirma Dourado.

Os médicos apontam que há também um outro risco: maior parte das vacinas só tem a eficácia esperada com duas doses, e pode ser difícil conseguir garantir uma segunda dose no setor privado - e qualquer atraso em tomar a segunda dose ou diferença no tipo de vacina pode afetar o resultado.

Quem escolhesse tomar uma primeira dose na rede particular, precisaria tomar a segunda dose da mesma vacina também na rede particular, senão o efeito no corpo não seria o esperado, explica Massuda. "Você não pode tomar a primeira dose da indiana e a segunda da Pfizer, não funcionaria direito", afirma o médico.

Não há estudos que atestem se há perigo ou vantagem em tomar duas vacinas contra a covid-19 de marcas diferentes, mas a existência dessa possibilidade criaria um problema para o SUS, explica o médico sanitarista.

"O Ministério da Saúde faz o controle de quem tomou a vacina no SUS, não no sistema particular. Se uma pessoa tomar a vacina no particular e depois tomar de novo no SUS, seria um enorme desperdício de recurso Não há justificativa pra isso, porque não faria mais efeito tomar duas vacinas e você desperdiça doses que poderiam ir para uma pessoa que ainda não tomou. E seria mais difícil fazer esse controle se a vacinação for feita por clínicas particulares", afirma Massuda.