Coronavírus: o que deu errado no Reino Unido, 1º país europeu a passar dos 100 mil mortos por covid-19
O Reino Unido chegou à triste marca de 100 mil mortes por coronavírus — um vírus que, há apenas um ano, parecia uma ameaça estrangeira e distante para quem vivia na Grã-Bretanha.
Como um dos países mais ricos do mundo se tornou um dos que mais sofreram mortes?
Não há uma resposta rápida a essa pergunta, mas há muitas pistas que, juntas, ajudam a explicar por que o Reino Unido atingiu esse número devastador.
Em número absoluto de mortes, os Estados Unidos continuam como o país afetado (mais de 427 mil) e o Brasil segue em segundo, com mais de 220 mil mortes. Nesse critério, o Reino Unido aparece na quinta posição, depois também de Índia e México.
Na comparação do número de mortes em relação ao tamanho da população, no entanto, o Reino Unido aparece em primeiro lugar, com 150 mortes por 100 mil habitantes, segundo dados compilados pela Universidade Johns Hopkins. Em seguida, aparecem a República Tcheca (146), a Itália (143) e os Estados Unidos (129). O Brasil aparece na 12ª posição, com mais de 104 mortes por 100 mil habitantes.
A comparação do número de mortes é útil para ter uma dimensão da quantidade de vítimas em cada país, mas é preciso ter em mente que os métodos de contabilizar as mortes variam entre os países. É por isso que muitas vezes é preferível analisar as "mortes em excesso", que são as mortes acima da média histórica.
Uma análise feita pelo Financial Times mostra que o Reino Unido teve 18% de mortes em excesso ao longo de 2020 e o Brasil, 22%.
Os fatores
Para explicar o que se passa no Reino Unido, alguns apontarão o dedo para o governo e sua demora em promover medidas de confinamento em relação a grande parte da Europa Ocidental, a pouca eficiência em testes e rastreamento, e a falta de proteção oferecida aos residentes de casas de repouso.
Outros destacarão problemas mais enraizados na sociedade britânica, como o mau estado da saúde da população, com altos níveis de obesidade, por exemplo.
Outros, ainda, apontarão que alguns dos grandes pontos fortes do Reino Unido — como o fato de ser um centro importante para viagens aéreas internacionais, por exemplo; e suas populações urbanas etnicamente diversificadas e densamente povoadas — expuseram sua vulnerabilidade a um vírus que se espalha facilmente em ambientes fechados.
Aos olhos de algumas pessoas, o status de ilha do Reino Unido poderia ter ajudado. Outras nações insulares como a Nova Zelândia, Austrália e Taiwan conseguiram impedir o vírus de se estabelecer e as mortes foram reduzidas ao mínimo — a Austrália viu menos mortes durante a pandemia do que o Reino Unido registra todos os dias, em média.
Todos introduziram restrições estritas de fronteira imediatamente e bloqueios para conter o vírus antes que ele se propagasse. O Reino Unido, não.
Foi só em junho que as regras de quarentena para passageiros chegando ao Reino foram introduzidas, mas corredores de viagem foram logo instalados, relaxando as normas para viajantes de alguns países. Apenas neste mês isso mudou.
No início da pandemia, ministros e seus principais conselheiros foram acusados — de tentar promover uma estratégia de imunidade coletiva.
Isso mudou no final de março, quando o lockdown total finalmente ocorreu. Mas houve um atraso crucial de uma semana que, estima-se, custou mais de 20 mil vidas, de acordo com o então conselheiro do governo do Reino Unido, Neil Ferguson, por causa da rapidez com que as taxas de infecção estavam dobrando naquele momento.
Isso, é claro, é dito com o benefício de uma retrospectiva. Os próprios conselheiros do governo reconhecem que os dados eram "realmente muito ruins", o que tornava difícil tomar uma decisão que teria repercussões significativas. É um ponto defendido pelo professor Chris Whitty, o principal conselheiro médico do Reino Unido. No meio do ano, ele disse que havia "informações muito limitadas" no início de março.
Naquela época, o vírus estava se espalhando por casas de repouso. Cerca de 30% das mortes na primeira onda aconteceram em lares de idosos (ou 40% se você incluir residentes de lares que morreram no hospital).
Em maio, as restrições começaram a ser amenizadas. Mas foi cedo demais?
O governo aproveitou a relativa calmaria para se concentrar na construção do que o primeiro-ministro prometeu ser um sistema de teste e rastreamento "revolucionário". A ideia era que novos surtos pudessem ser eliminados pela raiz, com rastreamento abrangente por uma equipe centralizada de rastreamento.
O simples fato de que isso teve que ser desenvolvido alguns meses após o vírus chegar ilustra outro fator por trás do alto número de mortes: o Reino Unido não estava preparado para uma pandemia dessa natureza como algumas nações asiáticas estavam. Países como Coreia do Sul e Taiwan estabeleceram sistemas de teste e rastreamento que já tinham prontos para serem ativados.
No Reino Unido, houve problemas iniciais, com os rastreadores lutando para alcançar muitos contatos e a capacidade de teste diminuindo conforme a demanda aumentava.
E os baixos níveis de infecção durante o verão (meados do ano no hemisfério Norte) criaram uma falsa sensação de segurança.
Segunda onda
No fim de agosto, cerca de mil pessoas por dia testavam positivo ao coronavírus. Em meados de setembro, esse valor havia triplicado e, a partir daí, aumentou cinco vezes para 15.000 em meados de outubro. Os números com teste positivo nunca voltaram a ficar abaixo de uma média de 10.000 por dia desde então.
Quando um lockdown foi decretado na Inglaterra em novembro, a previsão era de que duraria quatro semanas.
No entanto, antes do fim desse segundo lockdown, novos casos começaram a surgir no sudeste da Inglaterra. Em poucas semanas, ficou claro o que estava acontecendo: o vírus havia sofrido mutação e uma nova variante de disseminação mais rápida estava em ascensão.
Em meados de dezembro, a pressão por lockdown estava crescendo novamente, mas o plano para um relaxamento das restrições no Natal já havia sido anunciado. Em todas as nações do Reino Unido, os ministros esperaram.
No início de 2021, com as internações hospitalares crescendo rapidamente, os quatro diretores médicos do Reino Unido emitiram uma declaração conjunta alertando que o NHS estava em "risco material" de ser sobrecarregado. Em poucas horas, o Reino Unido estava novamente em lockdown.
Causas mais profundas
Mas também é preciso reconhecer que existem fatores fora do controle do governo que contribuíram para o alto número de mortes.
Uma das razões pelas quais o vírus conseguiu se estabelecer e se espalhar tão rapidamente foi devido à geografia e o fato de o Reino Unido (e Londres em particular) ser um centro global. A análise genética mostrou que o vírus foi levado para o Reino Unido em pelo menos 1.300 ocasiões diferentes, principalmente da França, Espanha e Itália, até o fim de março.
A densidade da população também é um fator. O Reino Unido está entre as 10 grandes nações mais densamente povoadas (aquelas com população de mais de 20 milhões). Além disso, as cidades britânicas estão mais interconectadas do que em muitos lugares.
O envelhecimento da população também deve ser levado em consideração. Depois de fazer isso, e ajustar o tamanho da população (a chamada mortalidade padronizada para a idade), as mortes aumentaram, mas não tanto quanto alguns sugerem.
A saúde da população também foi um fator. O Reino Unido tem uma das maiores taxas de obesidade do mundo.
A obesidade aumenta o risco de hospitalização e morte, de acordo com a Public Health England. Um estudo apontou que o risco de morte era quase o dobro para aqueles que são gravemente obesos.
Condições como diabetes, doença renal e problemas respiratórios também aumentam o risco - um quinto das mortes por covid-19 listava diabetes no atestado de óbito. E o Reino Unido tem taxas relativamente altas dessas doenças.
Muitos argumentaram que esses altos níveis de problemas de saúde foram agravados pelos níveis de desigualdade no Reino Unido. Os níveis de problemas de saúde e expectativa de vida sempre foram piores nas áreas mais pobres, mas a pandemia exacerbou isso.
Como o Reino Unido se compara globalmente?
O Reino Unido foi um dos países mais atingidos no mundo na última primavera. Mas é mais difícil comparar as experiências ou o desempenho dos países na segunda onda, uma vez que a epidemia segue padrões tão diferentes em todo o mundo.
Países como a Austrália, sem dúvida, tiveram mais sucesso com primeira e segunda ondas.
Mas esse não é o caso de alguns países que se saíram melhor do que o Reino Unido no primeiro semestre do ano passado.
Os EUA não reduziram a taxa de mortalidade durante o verão da maneira que o Reino Unido fez e seu número de mortos está aumentando.
E países como Alemanha ou Polônia, que tiveram muito poucas mortes na primeira onda, agora estão vendo picos com as taxas de mortalidade geral correndo muito acima dos níveis normais.
E com o número de mortes ainda aumentando e as vacinações ainda em andamento, é muito cedo para começar a compilar a tabela definitiva dos países mais atingidos na segunda onda.
Mas o professor Devi Sridhar, especialista em saúde pública da Universidade de Edimburgo, é um dos que criticou a abordagem adotada pelo Reino Unido desde o início.
Ela diz que o Reino Unido, como grande parte da Europa, foi "complacente" com a ameaça de doenças infecciosas, escolhendo tratar o novo coronavírus "como uma gripe" e permitindo o espalhamento.
O que impressiona alguns é o quão semelhantes são os erros em termos de lockdown tardio. "Levará anos para descobrir por que (o combate à) covid-19 está indo tão mal no Reino Unido", disse o especialista em doenças infecciosas da University College London, Neil Stone. "Mas se destaca o fracasso em aprender com a primeira onda."
Muitos outros compartilham desse sentimento.
Algumas lições, no entanto, foram aprendidas.
Na comparação da primeira e segunda onda, há um impacto da redução nas mortes em casas de repouso. Mais testes e melhor disponibilidade de equipamento de proteção individual reduziram a proporção de mortes relacionadas a lares de idosos.
Claro, tudo isso é mais fácil de se avaliar posteriormente. Em uma entrevista recente, o principal conselheiro científico, Patrick Vallance, disse: "A lição é (agir) mais cedo do que você deseja, ir mais longe do que você pensa que deseja e ir um pouco além do que você pensa que deseja em termos de aplicação de restrições."
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