Vacinas brasileiras: o que o Brasil ganha tendo imunizantes nacionais contra a covid-19?
Enquanto o Brasil negocia a importação de vacinas estrangeiras contra covid-19, pesquisadores correm paralelamente atrás de recursos para produzir imunizantes 100% brasileiros.
Os projetos que parecem mais adiantados são o do Instituto Butantan, que anunciou na sexta-feira (26/3) que pretende começar testes em humanos em abril, se a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) autorizar, e da vacina desenvolvida pela Universidade de São Paulo (USP) em parceria com empresas e apoio do governo federal, que também pediu à agência para fazer pesquisas com voluntários.
Segundo o presidente do Butantan, Dimas Covas, a expectativa é produzir 40 milhões de doses da ButanVac para serem disponibilizados em julho para a população em geral, num processo de testes que levaria três meses.
Outros projetos de vacinas com tecnologia nacional estão andamento, a maioria ainda na fase de testes em animais. Um deles é conduzido pela microbiologista Ana Paula Fernandes, do Centro de Tecnologia em Vacinas e Diagnóstico da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
A vacina obteve bons resultados em camundongos e os pesquisadores aguardam investimentos e a preparação de um laboratório para iniciar testes em humanos.
Outro exemplo é a vacina via spray nasal de uma pesquisa liderada pelo professor da Universidade de São Paulo Jorge Kalil. Ele está fazendo testes em animais e tenta angariar recursos com empresas brasileiras para viabilizar a pesquisa em humanos.
O governo Bolsonaro também disse que dois outros projetos que receberam verbas federais avançaram e chegaram à fase de testes clínicos, além da vacina anunciada nesta sexta.
Mas o que o Brasil tem a ganhar com vacinas nacionais contra a covid-19? Não seria melhor importar?
Pesquisadores ouvidos pela BBC News Brasil citam 3 vantagens de curto e médio prazo:
- Menor dependência externa
- Rapidez na adaptação das vacinas a novas variantes
- Uso do conhecimento para criar vacinas contra outras doenças
Menor dependência de importações
Pesquisadores apontam que um dos principais benefícios de fabricar vacinas no Brasil é reduzir a dependência do país em insumos importados. Atualmente, o Brasil importa mais de 90% dos insumos farmacêuticos usados em medicamentos e vacinas, segundo dados da Associação Brasileira da Indústria de Insumos Farmacêuticos.
O problema de depender de outros países ficou mais evidente durante a pandemia. O calendário de vacinação contra a covid-19 sofreu diversos atrasos por dificuldades na entrega de produtos vindos da Ásia.
As duas vacinas usadas no país, a CoronaVac, distribuída pelo Butantan, e a Oxford-AstraZeneca, disponibilizada pela Fiocruz, hoje dependem de importações da China e da Índia.
Essa dependência externa também se aplica à fabricação de outras vacinas e medicamentos. Atualmente, só existem dois institutos capazes de produzir todas as etapas de uma vacina em território nacional: Butantan e Fiocruz.
E das 17 vacinas distribuídas por esses dois institutos, só quatro são feitas no Brasil, sem depender da importação do Ingrediente Farmacêutico Ativo (IFA), como é chamada a matéria-prima para produzir imunizantes.
O problema é que o baixo custo de produtos fabricados em países como China e Índia gera desincentivos para que o governo brasileiro invista em tecnologia nacional.
"China e Índia têm escala econômica e mão de obra mais barata que a nossa. Podem se dar o luxo de pagar menos e usar um exército de gente como mão de obra. Além disso, as leis ambientais são mais frouxas. Essa indústria, particularmente a química, é muito suja. Então, obter licença ambiental para uma fábrica que produz IFA (insumo farmacêutico ativo) representa custos", explicou à BBC News Brasil o sanitarista Gonzalo Vecina Neto, que fundou e foi o primeiro presidente da Anvisa.
"No Brasil temos uma preocupação maior com saúde do trabalhar e com o meio ambiente, então há um gasto maior de saída."
Por outro lado, depender totalmente da China e da Índia pode deixar o país em posição vulnerável quando precisar com urgência de vacinas e outros insumos farmacêuticos, como ocorreu no início do ano. Conflitos diplomáticos com países fornecedores podem resultar em retaliações e atrasos na entrega.
"Não é só uma questão de custo e venda. Não é uma questão só econômica, é uma questão estratégica (fabricar vacinas no Brasil)", diz Tiago Rocca, gerente de parcerias estratégicas e novos negócios do Butantan.
"China e Índia viraram quase produtores únicos de alguns insumos. Se algo acontece com esses dois fornecedores, o mundo fica de joelhos", completa Vecina Neto.
Adaptação de vacinas contra variantes
Uma eventual autossuficiência do Brasil em vacinas contra a covid-19 também pode ser arma importante contra novas variantes do coronavírus.
Pesquisas indicam que as vacinas que existem no mercado têm eficácia reduzida contra a variante de Manaus, apelidada de P.1. E, enquanto houver circulação em larga escala do vírus, como ocorre atualmente no Brasil, novas mutações com maior capacidade de driblar vacinas podem surgir.
Pesquisadores dizem que, provavelmente, as vacinas contra covid-19 terão que ser atualizadas todo ano, como ocorre com as vacinas contra gripe, para serem adaptadas às variantes. Portanto, a vacinação de toda a população brasileira não deve encerrar a demanda por vacinas, já que doses de reforço podem ser necessárias.
"No início do ano passado, tínhamos só o vírus que surgiu em Wuhan, na China. Neste ano, já temos três variantes que causam preocupação. Nesse período do ano que vem, poderemos ter mais variantes. Então, é possível que a vacina tenha que ser atualizada todo ano para acompanhar esse ritmo", diz o virologista Julian Tang, da Universidade de Leicester, no Reino Unido.
Se o Brasil tiver vacinas 100% nacionais, poderá promover adaptações aos imunizantes mais rapidamente, sem depender da vontade de fabricantes estrangeiros e de novas negociações para a importação dos produtos.
Além disso, se novas variantes surgirem em diferentes partes do mundo, os fabricantes europeus podem dar mais urgência à adaptação das suas vacinas às mutações que circulam naquele continente. Ao ter a própria vacina, o Brasil poderá ter maior independência na estratégia de imunização contra covid.
O presidente do Butantan, Dimas Covas, disse que os pesquisadores do instituto estão utilizando os aspectos genéticos da variante de Manaus nas pesquisas para produzir a ButanVac.
Jorge Kalil e Ana Paula Fernandes também dizem que o processo de elaboração das suas vacinas contempla a variante de Manaus. Ou seja, a expectativa é que esses imunizantes brasileiros protejam contra a P1, que tende se espalhar por todo Brasil e se tornar o vírus prevalente, por ser mais transmissível que a cepa original.
Uso do conhecimento para fabricar outras vacinas
Os pesquisadores ouvidos pela BBC News Brasil dizem que o conhecimento e a infraestrutura criada para produzir vacinas contra a covid-19 no Brasil poderão ser utilizados, no futuro, em vacinas contra outras doenças.
A própria ButanVac é um exemplo de como o conhecimento desenvolvido para combater uma doença pode ser aplicada contra outra. Essa vacina contra a covid-19 vai utilizar a mesma tecnologia da vacina contra a gripe, que também é fabricada pelo Instituto Butantan.
O vetor usado é um vírus chamado Newcastle, que infecta aves. Os pesquisadores injetam nesse vírus os genes da spike do coronavírus, como é chamada a proteína que se encaixa nas células humanas para promover a infecção.
Depois de modificar o vírus Newcastle com a proteína do coronavírus, ele é introduzido em ovos de galinha, onde se multiplica. A vacina contra a gripe também é produzida com o uso de ovos.
Além disso, a vacina contra covid-19 vai ser feita na mesma fábrica usada para fazer imunizante contra gripe. Se outras fábricas pelo país forem construídas ou adaptadas para produzir vacinas contra covid-19, elas poderão eventualmente ser aproveitadas, no futuro, para produzir imunizantes contra outras doenças.
Ana Paula Fernandes, coordenadora do CT-Vacinas, da UFMG, diz que desenvolver esse conhecimento científico e infraestrutura vai possibilitar, por exemplo, que o Brasil produza vacinas contra doenças regionais que não despertam interesse de fabricantes estrangeiros.
"Por exemplo, tem um tipo de malária que é comum no Brasil, mas não em outros países. Temos dengue, zika, chikungunya... Fabricar vacinas eficazes contra doenças que predominam aqui é importante para proteger a população", diz a pesquisadora.
Principal desvantagem é custo
Apesar das vantagens mencionadas pelos cientistas, investir em tecnologia nacional de vacinas gera custos elevados e demanda vontade política. No final da década de 1980 e 1990, o Brasil chegou a ter pelo menos cinco institutos com capacidade de produção de vacinas: Bio-Manguinhos, Instituto Butatan, Fundação Ezequiel Dias, Instituto Vital Brasil e Fundação Ataulpho de Paiva
Na época, o regime militar investiu em produção nacional por considerar estratégico não depender de importações de insumos farmacêuticos. Mas desde a abertura econômica no governo de Fernando Collor o Brasil vive um processo de desinvestimento progressivo do setor de vacinas, diz Gonzalo Vecina Neto, que foi o primeiro presidente da Anvisa, no governo Fernando Henrique Cardoso.
Atualmente, só Butantan e Fiocruz fabricam vacinas, do início ao fim do processo, no Brasil.
"O boom das commodities estimulou os governos a navegar em águas tranquilas e se fiar na exportação de produtos agrícolas. Por que FHC e Lula não investiram na autossuficiência em vacinas? Falta de visão de longo prazo. Nenhum dos dois tirou o pé do curto prazo, do populismo local, da reeleição no quarto ano."
Atualmente, o déficit na balança comercial brasileira de insumos farmacêuticos é de R$ 2,1 bilhões (dado de 2019), segundo a Associação Brasileira da Indústria de Insumos Farmacêuticos (Abiquifi).
Como o Brasil passou por mais de 30 anos de desinvestimentos no setor, seria preciso um investimento pesado do poder público para reverter esse cenário.
'Vale da morte'
Os cientistas brasileiros até criaram uma expressão para caracterizar o abismo que eles enxergam entre a descoberta científica e a transformação dela em produto final: "vale da morte".
Ana Paula Fernandes, que é professora da UFMG, diz que o Brasil tem conhecimento científico para produzir vacinas com tecnologia de ponta, mas falta dinheiro para testar em humanos e fábricas para produzir em larga escala.
"Temos capacidade técnica, pesquisadores de ponta, mas existem gargalos que impedem que as descobertas se transformem em vacina. Temos conhecimento técnico para fazer vacinas como a da Pfizer e Moderna contra a covid-19, mas não temos matéria-prima, investimentos e fábricas para produzir", resume.
"Nós temos uma ciência de excelência no Brasil, mas precisamos atravessar o vale da morte, que é ir da descoberta científica nos laboratórios acadêmicos para a fase final, da industrialização", completa Kalil, que também é diretor do Laboratório Incor de Imunologia e ex-presidente do Instituto Butantan.
Se o Brasil conseguir transpor esse abismo, alguns pesquisadores enxergam uma possibilidade de conquista de mercados na América Latina e países pobres. O presidente do Butantan disse, ao anunciar a ButanVac, que a intenção é exportar a vacina para países de renda média e baixa, depois que os brasileiros tiverem sido imunizados.
A produção da ButanVac vai ser feita num consórcio que inclui uma fabricante vietnamita e outra tailandesa, embora 85% da participação nesse grupo seja do Butantan. Portanto, esses dois países deverão receber doses da vacina fabricada no Brasil.
"O Butatan tem o compromisso de fornecer essa vacina para países de renda baixa e média. Se o mundo rico combate o (coronavírus) porque tem recursos e vai ficar relativamente livre do vírus, os países de renda baixa e média poderão manter a pandemia. Então, temos que ter vacina para esses países, para globalmente sermos bem-sucedidos", defendeu.
Gonzalo Vecina Neto, ex-presidente da Anvisa, também enxerga a possibilidade de o Brasil exportar vacinas, mas ressalta que isso vai depender muito da capacidade de gestão e diplomacia do país, já que Índia e China também competem por mercados na América do Sul, África e Ásia.
"Vamos ter um produto mais caro que Índia e China, mas vamos gerar emprego internamente e reduzir a dependência externa. E, dependendo da política compensatória, podemos conquistar alguns mercados. Mas, lógico que vamos ter que brigar com cachorro grande."
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