Em sete anos, só 3,7% dos médicos punidos perderam registro profissional
Em 4 de junho de 2014, sentindo fortes dores abdominais, Noah Alexandre Palermo, então com 5 anos, foi levado para a Santa Casa de São Carlos (a 244 km de SP). Diagnosticado com apendicite, passou por cirurgia no dia seguinte. Logo após o procedimento, continuou com dores e, no dia 6, o médico responsável pela cirurgia, Luciano Barboza Sampaio, diagnosticou, por telefone, que a situação era provocada por gases, portanto normal, e receitou um complexo vitamínico e soro.
O garoto morreu horas depois de receber o medicamento em decorrência de uma parada cardíaca provocada, segundo alegam seus pais, por complicações do soro glicosado aplicado por Sampaio.
Eles sustentam que um exame de glicemia feito antes da cirurgia detectou um aumento excessivo da taxa de glicose no sangue, apontando diabetes, nunca então percebida pelo médico, que receitou medicamentos que levaram o garoto à morte.
Segundo dados do CFM (Conselho Federal de Medicina), de 2010 até abril deste ano, 94 médicos tiveram o registro cassado fruto de 80 investigações feitas –um mesmo caso pode ter mais de um médico envolvido. Eles integram um total de 2.186 profissionais (pouco mais de 0,5% dos cerca de 400 mil registros médicos existentes) que sofreram algum tipo de sanção no exercício de suas atividades.
Ou seja, só 3,7% dos que foram investigados em todas as instâncias administrativas da área médica foram impedidos de continuar a praticar a medicina definitivamente por imperícia, imprudência ou negligência, segundo dados obtidos pelo UOL via Lei de Acesso à Informação.
Quatro em cada dez (42%) foram por omissão de socorro. O Estado de São Paulo concentra mais de um terço das cassações (33), entretanto, possui mais de um quarto de todos os registros do país (117.995).
Desde a morte de Noah, seu pai, o empresário Marcos Antonio Palermo, luta para provar na Justiça e no Cremesp (Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo) a culpa de Sampaio, que, desde a data, nunca sofreu qualquer tipo de sanção. Palermo, porém, já foi condenado em uma ação proposta pelo médico por difamação.
Maioria das punições são apenas confidenciais
As punições a eventuais erros médicos estão previstas em uma lei que em setembro próximo completará 60 anos. Ela prevê desde penas brandas até o impedimento do profissional em continuar a exercer a medicina pelo resto da vida.
Nos últimos sete anos, 59,2% das punições foram sigilosas, ou seja a punição é de conhecimento apenas das partes envolvidas, como forma de punição moral --sem que o profissional tenha de se afastar de suas funções.
O terceiro tipo é a censura pública em publicação oficial – punição que visa tornar pública, mediante sua publicação nos Diários Oficiais dos Estados ou da União, a infração ética cometida pelo médico, sem, contudo, detalhar o erro cometido, mas apenas os artigos que ele infringiu. Foram condenados assim 634 médicos desde 2010.
No período, 179 médicos foram proibidos de exercer sua profissão por 30 dias. A última, e mais grave, é a cassação. Para que seja definitiva, porém, é necessária a confirmação do CFM.
Processo pode levar anos
O procedimento adotado no Código de Processo Ético-Profissional do CFM permite ampla possibilidade de defesa do acusado, o que faz com que uma denúncia possa levar anos sem ter um desfecho. Segundo tal código, ao receber uma denúncia, os conselhos regionais de todo país abrem uma sindicância que pode levar de seis meses a dois anos para ser concluída.
Neste período, irá coletar provas e documentos, receberá manifestação escrita, e, se for necessário, audiência com os envolvidos. Só depois disso é que a plenária do conselho pode se transformar em uma PEP (Processo Ético-Profissional). Esta é apenas a fase inicial.
A PEP terá um médico relator. Ele tem prazo de até 120 dias, prorrogáveis quantas vezes julgar necessário, para formular seu relatório. A partir daí o rito segue trâmites parecidos com a Justiça comum, em que tanto defesa quanto acusação irão apresentar suas testemunhas, com limite de cinco cada. Só depois disso terá início o julgamento no conselho. Se condenado às penas previstas na lei o médico poderá recorrer em outras instâncias do próprio conselho regional ou no CFM.
Justiça cega?
Apesar da farta legislação tanto cível quanto criminal para tentar provar um erro médico, é muito mais fácil alguém que alega ter sido vítima ser processado pelo médico por difamação do que o próprio médico autor o erro, mesmo este engano incluir procedimentos escabrosos como operar a perna errada, retirar um órgão sem necessidade, aplicar um medicamento inadequado ou se omitir de socorrer alguém, entre outros.
Isso ocorre, segundo o advogado Elton Fernandes, pela dificuldade em se comprovar o nexo de causalidade, jargão do meio jurídico que significa descobrir quais foram as condutas de qualquer acusado que levaram a provocar os efeitos previstos em lei. Ou seja, comprovação, por meio de documentações, qual foi a culpa de um réu, e este, por sua vez, da sua inocência.
Especializado em direito de saúde, Fernandes recentemente entrou na Justiça contra um dos maiores hospitais da América Latina devido a um erro médico em uma cirurgia que deixou uma criança com sequelas pelo resto da vida.
“Essa criança, após a cirurgia, teve três paradas cardiorrespiratórias, um AVC (Acidente Vascular Cerebral) e agora não fala, não tem coordenação motora, não consegue andar e tem convulsões”, afirma. O único meio que ele tentará provar que de fato o profissional errou é uma gravação do dirigente do hospital, obtida pela família, em que tal dirigente admite e detalha quais foram as falhas cometidas.
Essa é a impunidade. A médica repetiria o mantra pelo resto da vida de que foi inocente e não teria como comprovar, a não ser agora essa gravação.”
Elton Fernandes, advogado
Condenado, mas com direito a exercer medicina
Outro fator que faz o número de denúncias ser pequeno nos conselhos de classe profissional é que nem sempre uma ação na Justiça comum, seja ela na área civil ou criminal, são encaminhadas para a esfera administrativa, no caso, os conselhos.
Por isso é comum ver casos de médicos condenados judicialmente até por homicídio ou outros crimes graves no exercício da profissão. “As classes mais pobres são as que mais sofrem. Contudo, as pessoas estão muito mais bem informadas hoje em dia e a Justiça receberá muito mais processos”, afirma o advogado.
Desde que criou a Associação de Vítimas do Estado de São Paulo, em 2011, Luiz Carlos Soares da Silveira deu informações e orientações a mais de duas mil pessoas sobre formas de procurar a Justiça para requerer seus direitos devido a problemas com atendimento médico, incluindo erros. Ele afirma que muitas denúncias nem chegam ao conhecimento público, já que ficam apenas nas esferas da Justiça e administrativa.
“O conselho (de medicina) é muito corporativista. Para qualquer tipo de informação, só se entrar com pedido via Lei de Acesso. Os conselhos não funcionam da forma como se imagina”, afirmou.
Batalha judicial
Luciano Barboza Sampaio, médico que atendeu o garoto Noah em São Carlos, foi condenado em 2008 a um ano e quatro meses de detenção pela 2ª Vara Criminal de Nova Iguaçu, no Estado do Rio de Janeiro, por atestar a morte de uma mulher que foi levada para o necrotério ainda com vida.
Ao reconhecer o corpo de Maria José Neves, a família percebeu sinais vitais e ela foi levada para a sala de ressuscitação do hospital, onde acabou morrendo.
No caso de Noah, o pai do menino, o empresário Marcos Antonio, entrou com processo civil, criminal e com representação no Cremesp.
A investigação no conselho resultou em uma PEP (Processo Ético-Profissional) ainda sem data para ser concluída. No caso do processo civil, tanto defesa quanto acusação aguardam o resultado de um exame do Imesc (Instituto de Medicina Social e de Criminologia do Estado de São Paulo) para atestar se houve ou não erro médico. Em novembro deste ano será feita uma audiência na Justiça criminal para determinar se o médico irá a júri popular ou não pela morte do garoto.
A defesa de Sampaio teve rejeitado um pedido que, se aceito, trancaria o processo na esfera criminal. Procurada, a defesa do médico informou somente não haver erro médico conforme atesta o exame do Imesc requerido pela própria Justiça. Entretanto, até a última sexta-feira (7) tal exame não teve seu teor revelado nem tão pouco foi anexado ao processo.
CFM nega corporativismo
Procurado, o Conselho Federal de Medicina nega haver corporativismo e defende o rito processual adotado. Desde 1957, segundo o CFM, os 27 conselhos têm “cumprido seus papéis de forma isenta e sempre em benefício da sociedade, fundamentando suas decisões na análise concreta dos fatos e dentro das normas processuais, ficando claro que não há corporativismo nessas decisões, que obedecem o estrito respeito às normas vigentes”.
Ainda segundo o CFM, as mudanças na legislação sexagenária dependem de uma nova lei proposta pelo Congresso Nacional.
“Atualmente, no Senado Federal, há três projetos de lei que estão em tramitação, sendo analisados em diferentes comissões. O Conselho Federal de Medicina tem acompanhado esse processo e se coloca à disposição para contribuir com o aprimoramento das propostas, sempre que solicitado”, informou o órgão, em nota.
Questionado sobre o número de cassações, o conselho relativizou afirmando ser uma “pena perpétua não prevista em nenhuma outra legislação do país” alegando afetar mais de um médico por mês no período.
É preciso considerar que o volume de denúncias, processos e punições aplicados contra médicos pelos Conselhos de Medicina é infinitamente menor que o total de consultas, cirurgias e outros procedimentos realizados no país.”
Para o CFM, os prazos legais devem ser seguidos para evitar questionamentos futuros na Justiça comum que venham a ser questionados ou até anulados. “Destaque-se que os tempos previstos são similares aos do Código de Processo Civil, o qual pode ser alterado também apenas por meio de lei”, informa. Ainda segundo a nota, apesar do extenso prazo previsto em lei, as denúncias, ao chegar no CFM, tramitam, em média, de seis a oito meses. “Trata-se de um tempo muito menor do que o praticado por outras instâncias judicantes”.
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