Fiocruz quer fim da patente de droga para hepatite C; SUS pouparia bilhões
O empresário Leonardo Amaral, 47, recorda com alegria do dia em que descobriu que estava curado da hepatite C. "Foi maravilhoso, uma vitória", diz. Em seu tratamento, usou o sofosbuvir, remédio recomendado pela OMS (Organização Mundial da Saúde) que virou motivo de disputa entre o Farmanguinhos (Instituto de Tecnologia em Fármacos da Fiocruz), organizações da sociedade civil e a farmacêutica norte-americana Gilead.
Desde 2015, quando o medicamento foi incorporado ao SUS, o governo compra os comprimidos exclusivamente da Gilead. Para isso, já pagou mais de R$ 1,3 bilhão.
Mas o Farmanguinhos afirma ter capacidade de produzir a versão genérica por um preço inferior e apresentou um documento ao Inpi (Instituto Nacional da Propriedade Industrial), argumentando que a patente não deve ser concedida à farmacêutica.
"Foram feitos todos os testes necessários para garantir que o medicamento de referência e o genérico têm efeitos iguais. Temos condições fabris de começar a produzir esse medicamento, estamos prontos", afirma Jorge Mendonça, diretor do Instituto da Fiocruz.
A questão foi tema de manifestações recentes em São Paulo e no Rio de Janeiro. Ativistas se reuniram na frente do prédio do Inpi para pedir que o órgão não forneça o registro à empresa. Procurado, o instituto diz que não há um prazo para a conclusão da análise do pedido de patente.
O Ministério da Saúde, por sua vez, alega que obedece aos trâmites burocráticos e segue a lei das licitações.
"É importante ressaltar que a própria lei já garante o princípio de seleção da proposta mais vantajosa e, quanto mais fornecedores participantes do processo de aquisição, maior concorrência”, afirma em nota.
Mais de R$ 250 por comprimido
Cada comprimido do sofosbuvir chegou a custar US$ 1 mil (cerca de R$ 4.190) para os pacientes norte-americanos, e o valor do medicamento virou tema de uma pesquisa publicada pela PLOS Medicine. No estudo, os pesquisadores apontaram que o custo no Brasil era inferior ao cobrado em países como Japão e Estados Unidos, mas superior aos de Egito, Índia e Mongólia, onde foram feitos acordos especiais ou havia presença de genéricos.
Em uma compra de 2015, o Ministério da Saúde pagou R$ 678,9 milhões por 2.684.304 comprimidos, o equivalente a R$ 253 por unidade. Considerando o tratamento padrão de 12 semanas, com 84 comprimidos, o custo por paciente ultrapassava R$ 21 mil.
Em outras duas aquisições em 2016 e 2017, novamente sem licitação, já que a Gilead é a única fabricante, foram pagos R$ 681,65 milhões, de acordo com extratos publicados no Diário Oficial da União.
"Com a produção por Farmanguinhos e empresas parceiras, cada comprimido sai a US$ 8,50 (R$ 36), enquanto o medicamento de referência custa no mínimo quatro vezes esse valor. Além disso, com a produção no Brasil, temos geração de empregos", defende Mendonça.
O diretor também diz que o remédio tem gerado resultados positivos quando usado em pesquisas para o combate à febre amarela e ao vírus da zika e que a produção nacional a custos reduzidos poderia, no futuro, viabilizar formas alternativas de tratar essas infecções.
Inovação
O Inpi afirma que o exame das solicitações de patente é feito de acordo com os critérios de novidade, atividade inventiva (a tecnologia não pode ser óbvia para um técnico no assunto) e aplicação industrial, e foi um desses pontos que gerou controvérsias.
No documento que entregou ao Inpi, Farmanguinhos argumenta que o pedido da Gilead não apresenta conteúdo inovador o suficiente para que haja exclusividade. Essa também é a análise do GTPI (Grupo de Trabalho sobre Propriedade Intelectual), entidade coordenada pela Abia (Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids) e criada para acompanhar negociações sobre patentes.
"Nem sempre que um medicamento muito bom surge é inovação. O desenvolvimento pode ser baseado em uma tecnologia já existente", explica Pedro Villardi, coordenador do GTPI.
Para ele, as patentes estão mais ligadas ao bloqueio da concorrência do que à inovação e a única forma de diminuir o preço é encerrando o monopólio. "Existem pessoas na fila de espera para receber o sofosbuvir e o aumento da oferta só vai acontecer se o genérico entrar no mercado. O Inpi tem a carta na manga", alega.
A Gilead rebate essa visão. "Temos plena segurança do caráter inovador do medicamento Sovaldi [nome comercial do sofosbuvir] e possuímos todas as evidências comprobatórias dentro dos critérios exigidos pela lei brasileira e acordos internacionais", diz a empresa.
"A patente é o reconhecimento natural da inovação sem precedentes que o medicamento trouxe. Sovaldi foi responsável por uma verdadeira revolução no enfrentamento da hepatite C. Além de altas taxas de cura, ele possibilitou uma significativa redução do tratamento da doença, ampliando a segurança ao paciente por sua baixa incidência de efeitos adversos. Estes fatores levaram o medicamento a ter sua propriedade intelectual resguardada em diversos países que valorizam e respeitam a inovação. Hoje ele possui mais de 56 patentes concedidas na Europa, Estados Unidos e Índia", completa.
Por que não há concorrência?
A fase nacional do pedido de patente do sofosbuvir foi apresentada ao Inpi em 30 de novembro de 2005, anos antes da aprovação pelo FDA (Food and Drug Administration), órgão responsável pelo controle de alimentos e medicamentos nos Estados Unidos, obtida em 2013, e pela Anvisa, em 2015.
A antecipação, argumenta a empresa Dannemann Siemsen, que representa a Gilead no pedido, é uma forma de preservar o requisito de novidade. "Entre o desenvolvimento de uma nova molécula até o produto final chegar ao mercado são necessários vários estudos e testes pré-clínicos e clínicos, que levam vários anos para sua realização. Só depois disso o pedido de registro de medicamento pode ser realizado nos órgãos regulatórios", explica.
Como a lei prevê que o titular da patente tem direito de obter indenização pela exploração indevida de seu produto inclusive quando ela ocorre entre a data da publicação do pedido e a da concessão, Farmanguinhos não inicia a produção e a farmacêutica é a única a oferecer o sofosbuvir.
A Gilead afirma que tem adotado medidas para ampliar o acesso de pacientes brasileiros ao tratamento, com reduções significativas de preços, e que licenciará a tecnologia de fabricação para uma versão genérica do produto em parceria com o laboratório público Lafepe (Laboratório Farmacêutico de Pernambuco). A cooperação técnica tem vigência de cinco a dez anos e, pela chamada pública que originou o acordo, o Lafepe deve repassar à farmacêutica até 90% da receita relativa às vendas do medicamento ao Ministério da Saúde, com diminuição dessa porcentagem ao longo da incorporação da tecnologia.
Mais de 90% de chance de cura
Apesar das divergências quanto à comercialização, todos os entrevistados têm a mesma opinião quando o assunto é a eficácia do remédio no combate à hepatite C.
"O sofosbuvir faz parte de uma nova classe de medicamentos, chamados de antivirais de ação direta (em inglês DAA), e é sempre usado em associação com algum outro remédio, como daclatasvir ou simeprevir. As vantagens de usar esses medicamentos são a alta taxa de resposta ao tratamento — em geral mais de 90% de chance de cura — e a baixa taxa de efeitos colaterais. E isso vale para todas as combinações, sendo que em alguns casos a cura pode chegar a 100%", afirma a médica Cristiane Valle Tovo, coordenadora do curso de pós-graduação em Hepatologia da UFCSPA (Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre).
Ela esclarece que pessoas diagnosticadas com a fase mais avançada da doença são tratadas por 24 semanas e que as novas diretrizes do Ministério da Saúde, relacionadas à meta de erradicar a hepatite C até 2030, liberam o uso de DAA para todos os portadores do vírus, mas afirma que nota problemas no processo de entrega.
"Teoricamente não é difícil de conseguir. Entretanto, por ter sofrido diversas modificações e atualizações, a dinâmica de abertura do processo para obtenção dos medicamentos pode ser trabalhosa e os medicamentos demoram a chegar, em média, de seis a 12 meses”.
No caso de Amaral, diagnosticado em 2015, a espera foi de oito meses. "Ia buscar e diziam que não havia chegado. Falavam 'na semana que vem chega' e não chegava. Emagreci 10 kg enquanto aguardava, foi muito angustiante", conta.
Para evitar que outros pacientes tenham de passar pelo mesmo, ele defende a redução no preço do medicamento para que o SUS possa comprar mais unidades. “É preciso fomentar o interesse da indústria na busca por novos medicamentos, mas acho que há exageros. Não sou contrário ao investimento, mas há alguma coisa fora da ordem, precisamos buscar um equilíbrio. A vida tem que vir em primeiro lugar", opina o empresário.
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