Sem cubanos, cidade de área rural só vai ter médico uma vez por semana
A saída de três médicos cubanos da assistência ao Programa de Saúde da Família no município de Belo Monte, no sertão de Alagoas, tem deixado a população e as autoridades municipais apreensivas.
Desde o último dia 20, não há médicos atuando na cidade alagoana. Quem precisa de atendimento médico tem de ser levado para o município de Batalha, a 28 km de distância dali. Belo Monte não possui hospital nem transporte coletivo.
O trajeto é bem complicado: é necessário percorrer 25 km de estrada de terra até chegar ao trecho da AL-125 que é asfaltado. Em várias partes, só cabe um veículo por vez. Se há dois, em direções opostas, um dos motoristas é obrigado a subir no mato para o outro carro passar. Ou seja, as condições precárias da estrada restringem o socorro rápido.
Belo Monte é o único município de Alagoas que tinha 100% de cobertura do Mais Médicos feita por cubanos. Com a ordem do governo de Cuba para os profissionais retornarem ao país, agora o município só dispõe de um médico plantonista, que vai ao local aos sábados, até que aconteça o preenchimento das três vagas em aberto. Ao todo, Alagoas tinha 128 médicos cubanos.
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O edital de contratação estava previsto para ser concluído nesta sexta-feira (23), mas problemas no site oficial levaram o Ministério da Saúde a adiar a data de encerramento. Segundo o órgão, 92% das vagas foram preenchidas. Mas os médicos têm até o dia 14 de dezembro para assumir.
"Temos uma médica que dá plantão. Vamos ver se conseguimos outro. Mas esta não é a solução porque o trabalho do plantonista é diferente, é dentro da unidade de saúde. Precisamos de médicos todos os dias para dar continuidade ao Programa de Saúde da Família, que trabalha com a prevenção e controle de diversas doenças", diz o secretário municipal de Saúde, Rafael Soares.
Uma das preocupações, segundo ele, é a assistência a pacientes com câncer e o controle da hipertensão nos moradores. Segundo dados da secretaria, existem mil pessoas com problemas de hipertensão em Belo Monte.
"Acreditamos que este alto número de hipertensos é devido aos maus hábitos alimentares. As pessoas se acostumam a comer muito sal pela dificuldade de ter uma geladeira. Usam muito sal na carne para conservar o alimento fora de refrigeração. A população tem de receber orientação contínua para se prevenir", diz Soares.
"Médicos de temporada"
A ausência de médicos sempre foi um problema para a administração em Belo Monte. Sem atrativos de moradia e lazer, com uma rede de telefonia ruim, até hoje apenas os médicos cubanos se dispuseram a residir no município.
A cidade tem 7.030 habitantes, segundo o último Censo do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), realizado em 2010.
De acordo com a prefeitura, 76% da população reside na zona rural, muitos inclusive em áreas de difícil acesso. O município fica localizado às margens do rio São Francisco, na divisa de Alagoas com Sergipe.
Belo Monte tem uma população de baixa renda, com 84% que recebem o benefício do Bolsa Família. É a terceira maior taxa de dependência do país. A incidência de pobreza é de 48%, segundo dados do IBGE.
O índice de mortalidade infantil também é alto. Segundo o IBGE, são 52,8 óbitos por mil nascidos vivos. A média no Brasil é de 26,3 óbitos a cada mil nascidos vivos.
O secretário Rafael Soares afirma que a saída dos cubanos "abriu uma ferida crônica", pois não aparecem candidatos às vagas. Além do valor alto dos salários cobrados pelos médicos, a carga horária que eles se dispõem a fazer não atende a demanda dos pacientes e o trabalho de porta a porta do Programa de Saúde da Família.
"Antes da chegada dos médicos cubanos, o município sofria para conseguir médico que quisesse trabalhar aqui. Quando conseguíamos, o médico só ficava dois ou três dias por semana e a rotatividade era grande. Tínhamos médicos de temporada. Como existia essa dificuldade, o médico ditava os dias que poderia vir e não tinha horário para chegar", conta Soares.
"Muitas vezes, o médico marcava de vir aos sábados. As pessoas chegavam ao posto cedo e o médico só aparecia às 15h."
A prefeitura também reclama do salário cobrado pelos brasileiros. Os valores pagos pela prefeitura na contrapartida para manter os três médicos cubanos em Belo Monte não dá uma oferta atraente para um novo profissional.
"São cerca de R$ 4.000 que gastamos para manter cada médico cubano --com o aluguel de uma casa para cada um, auxílio-alimentação e uma empregada doméstica. Esse valor multiplicado por três não chega à oferta que teremos que fazer para contratar um médico caso o governo federal não envie mais profissionais do Mais Médicos", diz Soares.
Antes da chegada dos cubanos ao município, os brasileiros que trabalharam pela prefeitura recebiam entre R$ 12 mil e R$ 16 mil. Atualizando esses valores, a prefeitura estima que, para contratar um médico, o valor será de R$ 20 mil. A arrecadação do município com taxas fiscais é quase zero e a administração se mantém com recursos do governo federal oriundos do FPM (Fundo de Participação dos Municípios).
Salário menor em Cuba
Há um ano e nove meses, o povoado de Riacho de Jacobina, na zona rural de Belo Monte (AL), passou a ser moradia do médico cubano Omar Palomino, 54. Ele veio de Havana para trabalhar no Brasil e, no currículo, tinha missões humanitárias na Venezuela e quase 30 anos atuando em emergências em Cuba.
Rapidamente se familiarizou com a língua portuguesa e entende os relatos dos pacientes. A enfermeira Ofélia diz que vai sentir falta do colega: "Tivemos bons resultados com o trabalho em equipe e elogiamos o trabalho humano do doutor Omar. A saída dele vai ser uma grande perda para todos nós, principalmente para a comunidade carente".
Mesmo adaptado ao Brasil, Palomino vai deixar a companheira e a criação de animais. "Vou retornar com meu irmão, também médico. Em nenhum momento pensei em ficar no Brasil, pois viemos para cá sabendo que estávamos em missão, que iriamos voltar quando o contrato acabasse", diz ele.
"Infelizmente, por essa falta de respeito ao nosso trabalho com as declarações do presidente eleito, Jair Bolsonaro, de que não temos capacidade de atuar, estamos voltando antes do tempo previsto. Isso é humilhante para o Brasil que vai deixar os pobres desassistidos. Nós temos dignidade em Cuba e voltarei ao meu trabalho como médico."
Ele se preocupa com os moradores de Belo Monte. "Sou de origem pobre e sei o quanto as pessoas daqui necessitam de ações humanistas para diminuir a desigualdade social. Quem está perdendo tudo é o pobre", afirma o médico. Ele critica que o Brasil não dá educação de qualidade à população e que "somente o filho de rico pode ser médico".
Ele também rebate as frases de Bolsonaro de que os médicos cubanos são escravizados porque recebem R$ 2.500 dos R$ 11.800 repassados pelo governo brasileiro para Cuba. Palomino disse que o salário que ele recebia trabalhando em um hospital de Havana era de R$ 1.700.
"Viemos sabendo o quanto íamos ganhar e com quanto o governo de Cuba ia ficar para dar assistência aos pobres. Não veio ninguém obrigado e enganado, tinha tudo no contrato", afirma.
O médico viaja para Brasília no dia 11 de dezembro de onde pega um voo direto para Havana. Seu contrato inicialmente iria até o final de 2020.
"Estava feliz e o que vou levar na mala é a saudade no peito e a vontade de um dia voltar. Quem sabe o governo brasileiro não convoca a gente novamente? A vida é de quem persevera e nunca poderemos deixar de lutar", diz o médico, emocionando.
"E se eu precisar de atendimento e não tiver médico?"
O UOL esteve nos três postos de saúde de Belo Monte na última quinta-feira (22) e encontrou as unidades de saúde vazias. Já se sabia que não havia médico.
A agricultora Marluce de Farias Santos, 54, esteve na UBS de Olho D'Água Novo, povoado em que reside há mais de 30 anos, para se submeter a exames de prevenção ao câncer de colo de útero. A coleta iria ser feita por uma enfermeira.
"Meu filho tinha me dito que ouviu no rádio que os médicos cubanos estavam voltando para o país deles, mas eu não acreditei. Me preocupa não ter médico aqui porque somos pobres, não temos como pagar uma consulta. A médica que atendia aqui era muito delicada, atenciosa", afirma.
Moradora do povoado de Riacho de Jacobina, a dona de casa Rosimaria Maria da Conceição dos Santos, 29, está com quatro meses de gestação. Ela foi até o posto de saúde para vacinar o filho de 2 anos e queria aproveitar para tirar dúvidas sobre a gravidez. "Fico receosa de precisar de atendimento de urgência e não ter médico."
É o mesmo medo da agricultora Maria Aparecida Tenório de Holanda, 41, que é hipertensa, diabética e tem problemas respiratórios. "Pode ser cubano ou brasileiro. O que não pode é a gente ficar sem atendimento", diz.
Na terça-feira (20), a ausência de médicos já causou transtornos, com pacientes em risco sendo levados a Batalha.
"Se o médico estivesse aqui, resolveria a situação. Os cubanos que trabalharam aqui conosco são competentes e somente em casos mais complexos os pacientes eram transferidos para uma unidade hospitalar fora do município", diz a enfermeira Ofélia Lima Silva.
A enfermeira Márcia Valéria Correia completa: "Um caso simples pode ocasionar uma doença grave, como um infarto, um AVC (Acidente Vascular Cerebral)".
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