'Antes da pandemia, SUS estava invisível', diz um dos criadores do sistema
Aos 84 anos, o médico Nelson Rodrigues dos Santos, um dos criadores do SUS (Sistema Único de Saúde), afirmou, em entrevista ao jornal O Globo, que o sistema era "invisível" até a pandemia do novo coronavírus e sobreviveu por causa do comprometimento de profissionais de saúde e recursos de estados e municípios.
"De março para cá, o Brasil inteiro olhou para o SUS de uma maneira que nunca tinha enxergado antes. Antes da pandemia, o SUS estava invisível e se tornou visível agora por causa dessa energia e da solidariedade dos profissionais de saúde. Quando a pandemia estiver mais controlada, é o momento de o SUS passar a ser muito mais respeitado pelas autoridades federais, e de o governo finalmente valorizar e colocar mais dinheiro no SUS", afirmou.
Para ele, a atuação do SUS na pandemia "se dá basicamente através dos estados e municípios".
"O Brasil é um dos pouquíssimos países, ao lado dos Estados Unidos, em que o poder federal não assumiu as suas responsabilidades constitucionais. A lei que criou o SUS reconhece e obriga a igual responsabilidade para o poder federal, para os estados e os municípios, numa gestão tripartite. No caso da covid-19, estados e municípios pressionaram para que o SUS continuasse funcionando com a articulação entre as três esferas", avalia.
Para ele, isso aconteceu "em certa medida" até a saída de Luiz Henrique Mandetta, em abril, do ministério da Saúde. "Antes de o Mandetta ser demitido, a Presidência da República e o Ministério da Economia já vinham puxando a rédea do ministro, e ele, assim mesmo, conseguiu agir. Mas logo caiu, e o governo federal não é só um ministro, mas o conjunto. Então, mesmo com o Mandetta, o governo já agia a 10%. Com a queda dele, isso praticamente zerou", diz.
Rodrigues dos Santos avalia que a rapidez da disseminação do coronavírus pegou governos de todos os países "de calça curta" e que o Brasil teve janeiro e uma parte de fevereiro para se preparar.
"O governo federal teve culpa, porque retardou a resposta achando que seria uma gripezinha. Então, estados e municípios tiveram que arregaçar as mangas, fizeram das tripas coração e se puseram em campo para tentar atender, sem o governo federal, a crise da covid-19", afirma.
Questionado se a gestão tripartite permitiu que o SUS funcionasse mesmo sem um comando federal, o médico concordou. "Nos 30 anos do SUS, tiveram outros ministros da Saúde e outros presidentes, que não foram muito bonzinhos, não. O SUS é escaldado. Os ministros da Saúde sempre passaram muito apertado, porque os ministros da Economia nunca viram com bons olhos o SUS, sempre o espremeram e repassaram pouco dinheiro", critica.
"O governo federal nunca deixou o SUS se desenvolver como está na Constituição, mas, de qualquer maneira, nos outros governos se avançou um pouco mais do que agora. O governo atual radicalizou e cortou totalmente a relação do Ministério da Saúde com estados e municípios. Quanto ao financiamento, o governo federal sempre puxou o tapete e nunca cumpriu a parte dele. O financiamento do SUS só subiu às custas principalmente dos municípios", avalia.
Embora acredite que o SUS tenha chegado à pandemia enfraquecido, ele destacou um "outro lado surpreendente".
"Ainda assim, com todo esse prejuízo e tudo desabando nas costas deles, o que pode ser feito no Brasil contra a covid é às custas de grande esforço dos estados e municípios. A compra de equipamentos, por exemplo, cairia a um terço do preço se fosse feita em escala, pelo governo federal. Como o governo não queria prestigiar o combate à covid, ele se recusou a fazer essas compras. Então, os estados e os municípios correram para usar o que podiam das permissões legais para importar equipamento às pressas, porque o povo estava morrendo. O papel do governo federal é fazer uma estratégia combinada com estados e municípios."
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