Falha de comunicação de SP põe em xeque "vacina boa" contra covid
A comunidade científica não tem dúvida em dizer que a CoronaVac é uma boa vacina contra a covid-19, ainda mais em um momento em que a pandemia mata mais de 1.000 pessoas por dia no Brasil. Mas a estratégia de comunicação do governo de São Paulo pode ter gerado uma onda de desconfiança a respeito do imunizante difícil de reverter a curto prazo, às vésperas do provável início da vacinação.
"O processo de pesquisa foi muito bem feito. E a vacina em si é muito boa", diz João Henrique Rafael, analisa do Instituto de Estudos Avançados da USP (Universidade de São Paulo) e idealizador da União Pró-Vacina. "Agora, a questão da estratégia de comunicação traz uma série de problemas. Isso é inegável."
A CoronaVac é desenvolvida pelo laboratório chinês Sinovac, em parceria com o Instituto Butantan, ligado ao governo paulista. Até chegar ao anúncio da eficácia geral de 50,38%, na última terça-feira (12), houve um périplo que contou com dois adiamentos, em 15 e 23 de dezembro, e um anúncio parcial, em 7 de janeiro.
Nesta ocasião, em um evento em que discursos de teor político tiveram mais protagonismo do que explicações técnicas, foi anunciada uma eficácia de 78% para casos leves e 100% para casos moderados e graves, um recorte secundário do estudo do Instituto Butantan. No mesmo dia, teve início um intenso questionamento sobre a eficácia geral, que não foi divulgada.
"A comunicação sempre tem que ser transparente", diz Juarez Cunha, presidente da SBIm (Sociedade Brasileira de Imunizações). "Não foi mentira, não foi errado o que foi comunicado [a taxa de 78%], mas a forma que aquilo foi passado dá essa impressão."
Para o epidemiologista Pedro Hallal, da Universidade Federal de Pelotas e coordenador do estudo Epicovid19-BR, a falha na comunicação "traz a confusão da opinião pública e se torna um prato cheio para os negacionistas, que ficam com essa campanha de desestímulo à vacinação". É, por exemplo, o que promove o presidente Jair Bolsonaro (sem partido), que além de já ter declarado que não quer ser imunizado, ironizou a CoronaVac.
"Esses adiamentos trouxeram mais munição ou pseudo-argumentos para esses grupos criarem mais teorias", lembra Rafael. "Isso deixou instituições, como a nossa, que fazem a defesa da ciência, sem munição, sem argumentos para fazer contraponto, porque a informação não estava acessível."
Agora, que foram divulgados três números, cabe a nós, da comunicação científica, explicar que não é o índice que está se transformando. São recortes diferentes.
João Henrique Rafael, idealizador da União Pró-Vacina
Para o microbiologista Luis Gustavo Almeida, coordenador do IQC (Instituto Questão de Ciência), "seria muito mais lógico eles [governo paulista] virem à público e falarem: 'olha, a nossa vacina vai fazer com que você tenha o dobro de chance a menos de pegar a doença do que uma pessoa não vacinada'".
Procurada para comentar as falhas de comunicação, a Secretaria Estadual da Saúde não indicou porta-voz nem enviou nota. Antes dos anúncios da eficácia, membros do Centro de Contigência do Coronavírus, do governo paulista, disseram ao UOL acreditar que as desconfianças geradas pelos adiamentos seriam dirimidas pelo início da vacinação.
Influência política
Mesmo antes das falhas de comunicação, a disputa política em torno da vacina contra a covid-19 já tinha influência no que se dizia sobre a CoronaVac. Bolsonaro e João Doria (PSDB), adversários políticos de olho nas eleições de 2022, travam discussões em torno do imunizante desde outubro.
"Essa ligação muito estreita do Instituto Butantan com o governo de São Paulo foi uma aproximação desnecessária do ponto de vista da ciência", opina a infectologista Raquel Stucchi, professora da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) e consultora da SBI (Sociedade Brasileira de Infectologia). "Porque você acaba associando um instituto sério, competente, de renome internacional, com questões políticas."
O anúncio da eficácia de 78% para casos leves foi feito pelo governador João Doria. Já a divulgação da taxa de eficácia geral, de 50,38%, foi feita por Ricardo Palácios, responsável pelo estudo da CoronaVac no Butantan. Doria não esteve presente no anúncio do dia 12.
Isso já traz uma desconfiança e leva um assunto que não é para ser de correntes políticas para uma discussão político-ideológica. E vacina deveria estar muito distante de tudo isso.
Raquel Stucchi, infectologista, professora da Unicamp e consultora da SBI
A única por enquanto
A situação se agrava em razão de a CoronaVac ser, até agora, a única vacina já pronta para uso no Brasil. O Butantan aguarda a aprovação da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) para uso emergencial —que deve sair neste domingo (17). Ainda não há doses, aqui, do outro imunizante que passa pelo mesmo processo, o da universidade de Oxford.
"Em vez de olhar o copo meio vazio, temos que olhar o copo meio cheio", alerta Rachel Stucchi. "Temos vacina que vai impedir quase 80% das hospitalizações, o que é fantástico."
A eficácia geral da CoronaVac é mais baixa que a de outras vacinas, como a da Pfizer, de 95%, e a da Oxford, de 62%. Mas pesquisadores acreditaram que a taxa pode chegar aos 65%, como as anunciadas por Indonésia e Turquia, onde o imunizante também foi testado. A diferença é que, no Brasil, o estudo utilizou apenas profissionais da saúde.
"É um dado bem interessante porque a gente sabe que profissionais da saúde são pessoas de bem mais risco", diz o presidente da SBIm, que acredita que as outras vacinas também teriam uma eficácia geral menor caso utilizassem o mesmo critério da CoronaVac. "Nesse grupo de profissionais de saúde, se faz mais exames. A qualquer tipo de sintoma, eles procuram atendimento."
Eficácia, um debate inédito
Os especialistas destacam que "eficácia de uma vacina nunca entrou em debate público". E citam como exemplo a da gripe, que os brasileiros recebem todo ano. Sua eficácia varia entre 40% e 60%. "Todo mundo tomou vacina a vida inteira, sem saber de que laboratório era, de que país vinha, qual a eficácia", comenta a consultora da SBI.
O microbiologista Almeida lembra que "isso [desenvolvimento das vacinas] que está sendo feito aos holofotes era sempre feito com estudo científico, mostrando só para a Anvisa".
A partir do momento em que a população se interessou por isso, a gente precisaria ter um preparo melhor para comunicar de forma exata.
Luiz Gustavo de Almeida, microbiologista e coordenador do IQC
Cunha, da SBIm, destaca que o foco não deve ser nos números de eficácia. "Não temos que pensar no 50, no 78, temos que pensar nos casos mais graves [que a vacina vai evitar]", diz.
Isso é uma coisa que tem acontecido com a covid, que é a infodemia, uma quantidade muito grande de informação. Isso nunca aconteceu antes na ciência. A gente sempre tinha todos os resultados publicados. Aí depois se discutia, inclusive as críticas. Atualmente, as críticas estão vindo inclusive por leigos.
Juarez Cunha, presidente da SBIm
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