"Ele foi assassinado", diz filha após pai morrer sem oxigênio no Amazonas
Francisco Pereira da Silva, 67, era um dos pacientes internados no hospital de campanha de Manacapuru, a 70 quilômetros de Manaus, quando faltou oxigênio por duas vezes entre quinta e sexta-feira da semana passada. Antes do colapso no Amazonas, ele já havia apresentado melhoras significativas, teve alta da UCI (Unidade de Cuidados Intermediários) e vinha tomando banho e se alimentando sozinho. Porém, sem oxigênio, seu caso piorou, levando-o à morte.
Assassinato. Ele foi assassinado! Morreu porque deixaram faltar oxigênio no hospital."
Sabriane Guedes, filha de Francisco
Segundo sua filha, a servidora pública Sabriane Guedes, 36, o quadro do pai piorou após um primeiro momento de falta de oxigênio e, ele não resistiu ao segundo colapso do sistema, que ocorreu na madrugada de quinta para sexta-feira da semana passada. A família pediu para não ter sua imagem divulgada.
Num primeiro momento, os médicos não admitiram o colapso para todos os pacientes. "Mas percebi que meu pai piorou (a partir de então)."
Na segunda vez em que faltou oxigênio no hospital, no mesmo dia, os acompanhantes foram informados da situação e da quantidade de cilindros de que o hospital ainda dispunha. "Havia uns 40 pacientes e escolheram uns dez. Os mais jovens que tinham um quadro melhor para enfrentar a doença", afirmou.
Na falta de oxigênio, aplicaram sedativo no pai. Ele aparentava calma por causa do sedativo."
Sabriane Guedes
A crise do desabastecimento de oxigênio no Amazonas se espalhou pelo interior do estado, e já na região metropolitana de Manaus deixa rastro de mortes, colapso e correria atrás de cilindros que garantam a cada momento o insumo para que os pacientes em leitos de hospitais tenham chance de sobreviver à covid-19.
O MP-AM (Ministério Público do Estado do Amazonas) apresentou ações, acatadas pela justiça estadual, para obrigar o estado e prefeituras a reverter a situação em alguns municípios, como Itacoatiara, Macapururu e Tefé.
No entanto, a fonte de abastecimento para todo o estado, centralizada em Manaus, continua a receber menos oxigênio do que atualmente a rede necessita. Em outra ação judicial, que ainda não foi efetivada, o MP-AM pretende solicitar transparência total nos números da demanda e reserva de cada uma das unidades hospitalares do estado.
O caos atingiu a todos e sucumbiu também a rede particular. A rede hospitalar do Amazonas precisa hoje de duas vezes e meio mais oxigênio do que a empresa fornecedora do estado é capaz de entregar. Na semana passada, o secretário de Atenção Especial à Saúde do Ministério da Saúde, Franco Duarte, afirmou que a explosão de casos de covid-19 no estado elevou a demanda diária por oxigênio para 76 mil metros cúbicos, enquanto a produção diária da Manaus White Martins é de 28.200 metros cúbicos.
Família inteiras internadas
A dona de casa 33, ficou cerca de uma semana no hospital acompanhando o pai Francisco Vieira, de 77 anos, que precisava de um leito de UTI. Apenas no domingo conseguiu transferência para Manaus, uma hora antes de ele ter um ataque cardíaco e morrer.
Maria Aparecida, que também pediu para não ter a foto divulgada, afirma que não faltou oxigênio durante a internação do pai.
Ao falar sobre o que sente diante da falta de UTI, Aparecida respirou fundo e esperou alguns segundos até responder, segurando o choro: "É angustiante, quando uma pessoa da sua família precisa de um atendimento e não tem onde conseguir. O hospital de Itacoatiara não tem UTI, não tem tomografia, tem pouco profissional e em Manaus não tem vaga".
Eu passei esses dias no hospital e foi horrível. Você vira as costas e um morre. Depois outro. Logo mais é o seu. É um sentimento ruim e, ao mesmo tempo, você vê pessoas em situação pior. Vi famílias inteiras internadas."
Maria Aparecida Rodrigues
Viagens de hora em hora atrás de oxigênio
Segundo Rodrigo Balbi, secretário de Saúde de Manacapuru — onde vive Sabriane — o município já perdeu ao menos 11 pacientes por conta do desabastecimento de oxigênio. O número ainda será confirmado, consolidado e enviado ao Ministério Público.
Com a falta de cilindros, a força administrativa da cidade tem trabalhado desde a última quinta em uma logística para tentar garantir oxigênio para o tratamento dos 65 pacientes internados com covid-19.
A cada uma hora, um carro sai da cidade para enfrentar uma hora de estrada na AM-070 e garimpar em Manaus fornecedores ou doadores de oxigênio para abastecer os cilindros avulsos. O esforço tem feito com que a cidade tenha reserva de oxigênio para quatro horas.
Foi pior no dia que faltou. Mas também não dormimos mais. Estamos de dia, de noite e de madrugada em Manaus tentando de todos os lados trazer oxigênio para Manacapuru."
Rodrigo Balbi, secretário de Saúde de Manacapuru
Em Iranduba, cidade de Maria Aparecida, a 19 quilômetros da capital do Amazonas, o prefeito Augusto Ferraz (DEM) relata a mesma correria por abastecer cilindros de oxigênio. Ainda assim, Ferraz relata que, desde a crise do desabastecimento, 22 pessoas morreram na cidade, que tem contado com doações de empresas e cantores sertanejos.
A prefeitura comprou 20 usinas portáteis que ficam nos leitos e tem pequena capacidade de produção, cada uma pelo valor de R$ 11.200, para auxiliar no tratamento.
Estamos levando como Deus permite. Mas estamos à mercê da sorte."
Augusto Ferraz (DEM), prefeito de Iranduba
"Às 18h, fazemos a ronda na cidade, botando todo mundo para dentro de casa. Quem está sem máscara, a gente faz pôr a máscara. A gente está trabalhando nesta linha aí. Coloquei uma câmera frigorífica lá no hospital para botar mais medo ainda. Espero que isso melhore", diz.
Sem UTI
No município de Itacoatiara, a secretária de Saúde e médica Rogéria Peixoto relata que a rotina virou de extrema tensão para buscar cilindros e balas de oxigênio em Manaus. Além da busca pelos gás medicinal, é essencial retornar a tempo para não perder as vidas.
A ida e volta são feitas por uma estrada com má manutenção que torna cada percurso ainda mais demorado: são cerca de seis horas para ir voltar de Manaus.
Sem UTI, Itacoatiara ainda recebe transferências de cinco municípios do seu entorno, que não conseguem vagas em Manaus.
O tanque de oxigênio do hospital tem capacidade para 350 metros cúbicos e dura cerca de 24 horas, mas não é reabastecido desde o dia 13 de janeiro. "O abastecimento deste tanque diminuiria nossa corrida frenética. Não é fácil sustentar em balas de dez litros 96 pacientes. Dependendo da gravidade uns precisam mais que os outros", disse.
Apesar da crise do desabastecimento, Rogéria nega ter perdido pacientes por falta de oxigênio. Moradores da cidade dizem que mortes ocorreram por asfixia no hospital desde o início da crise. A secretária rebate e diz que o hospital está perdendo vidas pela gravidade com que os pacientes chegam na rede e por não conseguir transferir casos graves para UTIS em Manaus.
Não temos UTI. Só para se ter uma ideia, tenho uma grávida há quatro dias esperando por leito de UTI. Acabei de receber ligação de um município vizinho pedindo para transferir para cá um paciente saturando 25%, imagine."
Rogéria Peixoto, secretária de Saúde de Itacoatiara
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