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OPINIÃO

Depoimento: Crise no AM é coleção de tragédias envoltas em luto e revolta

Repórter Carlos Madeiro durante cobertura de crise sanitária em Manaus - Arquivo pessoal
Repórter Carlos Madeiro durante cobertura de crise sanitária em Manaus Imagem: Arquivo pessoal

Carlos Madeiro

Colaboração para o UOL, em Manaus

21/01/2021 04h00

Do quarto de um hotel no bairro Adrianópolis, região centro-sul de Manaus, o som das sirenes das ambulâncias é o mais ouvido em uma cidade ferida.

Próximo ao maior pronto-socorro da capital —o hospital 28 de Agosto—, não há uma hora em que não passe uma. Ou duas. Ou várias, transferindo pacientes a outros estados.

A repetição sonora é angustiante. Mas cobrir a crise sanitária e humana em Manaus dói muito mais do que o incômodo de um barulho. Abrange uma série de missões duras, como o medo de se contaminar com um vírus que, conforme dizem os médicos, está mais letal. Ou falar com uma família com uma perda profunda. Mas é necessário.

Manaus está sitiada por um vírus. É uma guerra contra um inimigo invisível. Ninguém o vê, mas os olhos tensos (e com lágrimas, muitas vezes) não escondem a dor do manauara. A tragédia na capital do Amazonas é coletiva e, ao mesmo tempo, individual.

Não há comparação na crise enfrentada agora e na primeira onda do vírus na cidade. Antes, também havia carência de leitos, mas agora eles estão esgotados, em meio a uma demanda ainda crescente. Tampouco havia, no começo, a carência do mais vital dos insumos para a sobrevivência: o oxigênio.

Homem carrega cilindro de oxigênio a hospital de Manaus - Carlos Madeiro/UOL - Carlos Madeiro/UOL
Homem carrega cilindro de oxigênio a hospital de Manaus: item mais precioso
Imagem: Carlos Madeiro/UOL
Em 19 anos de carreira, nunca pensei ouvir tantos relatos tristes. Contam ainda em choque sobre a morte sem assistência. "Ninguém fora da saúde vai saber o que é um parente pegar seus braços com força, chorando, e implorar: 'Não deixe meu pai morrer'. Ou um paciente sem ar clamando com olhos desesperados", relatou-me o médico Noaldo Lucena.

Não foi só ele. Os relatos são semelhantes entre os profissionais de saúde e parentes. Nada foi pior que a madrugada do horror (no dia 14 de janeiro), quando faltou oxigênio quase que sincronizadamente nos hospitais da Grande Manaus.

A crise no Amazonas é uma coleção de tragédias humanas, que se repetem. Escrevo este texto ainda no avião, de volta para casa. Mas, na porta dos hospitais, famílias ficaram chorando. Vi muitas, aliás, receberem notícia da morte do paciente e se abraçarem ali. Uma dor que mistura luto, revolta e uma sensação de que poderia ser diferente.

Vi filas de pessoas para comprar oxigênio e salvar aqueles que não conseguiam vagas em hospitais. Pessoas ricas, em seus carros luxuosos, também sucumbiram e passaram horas em espera, sem certeza do atendimento.

Mortes por covid-19 ganham apenas datas e nome em uma cruz pintada na hora do sepultamento em Manaus - Carlos Madeiro/UOL - Carlos Madeiro/UOL
20.01.21 - Apenas datas e nome em uma cruz pintada na hora do sepultamento por covid em Manaus
Imagem: Carlos Madeiro/UOL

No cemitério, os enterros viraram algo mecânico. Coveiros não dão mais conta. Corpos viraram datas e nome em uma cruz pintada na hora do sepultamento pelo funcionário apressado. A tinta ainda é fresca para quem será lembrado pela morte por covid-19.

No meio de tudo ainda há uma brutal desinformação. Ouvi de gente de boa-fé frases absurdas como "fizeram esse vírus na China para adoecer o resto do mundo", ou "não vou tomar a vacina porque ninguém pula de um paraquedas com 50% de chance de abrir". Sinto que eles não são culpados, mas vítimas.

Fui questionado por uma senhora com a irmã internada, enquanto aguardava notícias: "Como pôde chegar a uma situação dessas?". Confesso que não soube responder. Não sei exatamente ainda. Constatei que Manaus é, hoje, algo diferente do mundo civilizado. É tudo mais trágico do que textos e imagens conseguem mostrar. É preciso sentir para dimensionar.

Manaus é diferente de outras cidades, tem uma rede de saúde precária. Mas no fundo é igual a toda metrópole brasileira com trânsito, aglomerações e muita gente apressada e teimosa nas ruas, sem máscara. Queria acreditar também que essa tragédia não pode ocorrer fora do Amazonas.

Queria, mas não consigo.

Coveiro durante o trabalho pesado em Manaus; nem toda a proteção é suficiente - Carlos Madeiro/UOL - Carlos Madeiro/UOL
Coveiro durante o trabalho pesado em Manaus; nem toda a proteção é suficiente
Imagem: Carlos Madeiro/UOL

De todas as lições, uma que trago encoraja: o exército de populares que foram às ruas ajudar. Pessoas de todos os credos —ou sem— doaram comida, bebida, álcool, máscara...

Cantaram para aliviar a dor, oraram juntos, deram assistência psicológica. Mais do que doar, fizeram todos ali se sentir importantes ao menos uma vez, já que o poder público parece tê-los abandonado.

Como sempre, os heróis nas histórias mais difíceis são aqueles que menos aparecem. E a vida segue em meio à morte em Manaus. Infelizmente.