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Depoimento: "É uma roleta russa", diz médica sobre risco de intubação

MISTER SHADOW/ASI/ESTADÃO CONTEÚDO
Imagem: MISTER SHADOW/ASI/ESTADÃO CONTEÚDO

Carlos Madeiro

Colaboração para o UOL, em Maceió

11/03/2021 04h00

Resumo da notícia

  • Médica plantonista fala sobre o dia a dia de um hospital particular do Recife
  • Exausta, sem folga, com crises de ansiedade, relata cada vez mais pacientes
  • Risco e decisão de intubar são desafios para a equipe
  • Ocupação de leitos de UTI passa de 80% na capital de Pernambuco

A alta demanda de pacientes covid-19 nos hospitais do Recife criou a necessidade de espera dentro de urgências públicas e particulares para um paciente grave ser levado para um leito de UTI (Unidade de Terapia Intensiva). A demora pode levar até quatro dias, o que obrigou unidades a improvisarem em áreas que não recebiam pacientes.

Uma médica plantonista de um dos maiores hospitais particulares da capital pernambucana faz um depoimento triste e contundente sobre o que vê diariamente na sua profissão.

Exausta, sem folga, com crises de ansiedade, ela relata a dificuldade de tratar uma quantidade cada vez maior de pacientes.

Segundo a Secretaria Estadual de Saúde, a rede pública de Pernambuco está com ocupação de 95% nas UTIs. Na rede privada, esse percentual é de 89%.

Ela fala em primeira pessoa, mas sem dar seu nome nem local de trabalho. O anonimato a protege da realidade do que conta a seguir:

"Dou plantão em um hospital particular do Recife, que não tem mais vagas livres de UTI para pacientes covid-19. Acompanho a evolução deles, faço prescrição e converso com familiares.

Para dar conta de atender a todos, colocaram mais plantonistas para ficar nessa área dos internados na urgência, dando atenção só a eles [que estão na urgência, à espera de vaga]. Ficou como se fosse uma UTI, e aí o impacto é um pouco menor para esses pacientes.

Mas eles precisam de leito, precisam subir para UTI. Para isso usamos critérios e escolhemos ordem de quem vai.

Não é quem chega primeiro. A gente leva em conta a gravidade clínica e laboratorial. Não tem tanto isso de protocolo, é analisando caso a caso mesmo: vão primeiro os que estão mais graves; ou aqueles que vamos vendo que têm uma chance muito grande de serem intubados; ou os que já estão intubados mesmo.

Uma das perguntas que ouço sempre é: 'Quando terei acesso ao leito de terapia intensiva?'. Quando me perguntam isso, digo que essa parte burocrática não resolvo, mas internamente a gente vai avaliando as prioridades. Tem muita gente trabalhando duro nessa dinâmica dos leitos também.

Dilema da intubação

Quando sabem que vão para UTI, os pacientes perguntam logo se vão ser intubados, porque têm medo.

Mas cabe à gente esclarecer que ir para a UTI não é sinônimo de ser intubado. Muita gente sai da UTI e não precisa: o pulmão vai desinflamando com fisioterapia e corticoide, e o indivíduo vai saindo.

A intubação só ocorre com os pacientes que não evoluem bem, apesar dos esforços das equipes. É uma verdadeira roleta russa mesmo.

Aliás, um dos pontos difíceis para uma equipe é decidir a hora de intubar um paciente. Eu converso com os colegas de plantão para chegarmos a um consenso. Analisamos o nível de consciência, o grau de esforço respiratório, os parâmetros da gasometria [no exame de sangue vemos a quantidade de gás carbônico, oxigênio e suas repercussões no PH sanguíneo]...

Hoje, de cada três pacientes que precisam de intubação, dois morrem. Como explicado na reportagem do UOL, não é o processo de intubação, mas a gravidade do paciente que determina o desfecho morte do paciente.

A reação de quem recebe a notícia da intubação é de medo. É sempre um momento muito ruim, e não só para o paciente e familiares, mas também para a equipe.

O procedimento também é um momento angustiante: o paciente que vai ser intubado está ali, geralmente, em seu pior momento. É uma situação de estresse para toda a equipe, porque pode dar errado, o paciente pode piorar clinicamente, pode ter problema na pressão arterial.

Não é fácil a decisão de intubar, mas o momento de realizar também não é. Falamos de pacientes com o pulmão muito comprometido, não é uma intubação de um paciente normal. E tem paciente que não tolera tanto tempo em apneia para ser uma intubação tranquila. É um momento nada agradável.

'Inferno para o qual não vejo fim'

Hoje vivemos uma superlotação. É ruim para quem está dentro e não consegue receber atendimento adequado por falta de recursos humanos ou não humanos. É também ruim para quem precisa da vaga.

É muito triste essa realidade, parece um inferno para o qual não vejo fim. Há a vacina que não chega para todos, o egoísmo da população. É impossível conter dessa forma.

Já cheguei a questionar algumas vezes se não deveria ter escolhido outra profissão. Mas é pela exaustão mesmo. Estamos exaustos e doentes, é a verdade. Estamos trabalhando muito, sem folga.

Tive covid em maio de 2020, mas foi leve. Tenho ansiedade, faço terapia.

Acham que somos mais fortes, mas não somos! Somos iguais a todo mundo, sofremos igual. O problema é que a gente vive disso, aí não tem escolha".