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'Eu não estou mentindo nos atestados de óbitos', desabafa médico de Recife

Michael Dantas/AFP
Imagem: Michael Dantas/AFP

Carolina Marins

Do UOL, em São Paulo

03/04/2021 04h00Atualizada em 03/04/2021 17h09

"Foi muito bom viver", foram as últimas palavras ouvidas pelo médico anestesiologista Artur Milach antes de intubar um senhor de 75 anos. A frase o fez chorar pela primeira vez em muito tempo durante esta pandemia. Depois de um ano, ele achava que já havia se emocionado o suficiente, mas com a piora da situação no país o que ele tem visto são pacientes chegando cada vez em pior estado.

Idoso e com muitas comorbidades, o senhor pediu para falar com a família antes de ser intubado. Como muitos dos pacientes atendidos por Milach, ele disse aos familiares que os amava e se preparou para o procedimento.

"Quando eu vou intubar um paciente, eu fico perto da cabeça e vou conversando com ele. Nesse momento, ele pegou na minha mão disse: 'Foi muito bom viver, obrigado'. Eu nunca tinha escutado isso, de nenhum paciente. De falar numa serenidade", lembra.

Ele sabia da gravidade do caso dele, isso me tocou profundamente. Quando ele olhou para mim, ele podia ter chorado, esperneado, mas ele sorriu e disse que foi muito bom viver."
Artur Milach, médico intensivista em Recife

O quadro do senhor de 75 anos era grave e ele morreu dentro de 24 horas. "Foi muito duro. Fazia tempo que eu não chorava na pandemia. Esse dia eu chorei bastante quando cheguei no carro. Esse paciente eu levei a semana inteira comigo, isso me fez ressignificar inclusive a minha força pra trabalhar."

Artur Milach está na linha de frente da covid-19 desde o início da pandemia. Primeiro trabalhou no Hospital Israelita Albert Einstein, em São Paulo. No ano passado, se mudou para Recife e atua hoje como coordenador de UTI-covid em dois hospitais da capital pernambucana: o Hospital de Referência Unidade Boa Viagem Covid-19 e o Hospital Eduardo Campos da Pessoa Idosa.

No entanto, o perfil que ele tem visto nesta segunda onda da doença não é apenas o do senhor idoso com comorbidades. Assim como já relataram muitos profissionais de saúde, o intensivista vê um aumento de pacientes jovens necessitando de cuidados intensivos, em especial os que sofrem de obesidade. Mas o que preocupa Milach é que esses pacientes têm chegado em estado cada vez mais grave ao hospital.

O perfil de paciente jovem que está chegando é muito grave. É isso que está nos assustando. Muito parecido com alguns idosos que chegavam, entravam em insuficiência respiratória, precisavam de um consumo de oxigênio grande até serem intubados."

Muitos dos jovens que chegam contam terem utilizado o "kit covid de tratamento precoce", defendido pelo governo federal, mas que não possui eficácia no combate à covid-19.

A diferença é que alguns jovens respondem bem, respondem rápido, e a gente pensou: 'como agora está adoecendo mais jovens, a gente vai conseguir tirar mais rápido do respirador e vai ter menor mortalidade'. E não foi isso que aconteceu.

"A gente vê nas redes sociais gente falando que a família toda tomou e ficou bem. Ela iria ficar bem com ou sem o medicamento. As UTIs estão lotadas de pacientes com tratamento precoce."

Agora com a nova onda da covid-19 ocorrendo simultaneamente em todo o país, o desafio para um coordenador de UTI é ter equipes suficientes para atender à demanda.

"A gente está pedindo ajuda para vários profissionais médicos até não intensivista que estão vindo ajudar a gente. Só que ter o leito não é a garantia de que você vai ter a melhor assistência e isso preocupa bastante a gente."

Atualmente Pernambuco tem mais de 90% dos seus leitos UTI covid ocupados, tanto na rede pública quanto na rede privada. Somente na rede pública esse número está em 96% e a abertura de novos leitos não ajudou a aliviar essa pressão.

Artur Milach, médico intensivista, com curativo no rosto devido à ferida causada pela máscara - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Artur Milach, médico intensivista, com curativo no rosto devido à ferida causada pela máscara
Imagem: Arquivo pessoal

Além da carga mental de atender pacientes em estados cada vez mais graves e mais jovens, a equipe convive com a exaustão aumentada por duas ondas quase simultâneas. "Os coordenadores e diaristas estão trabalhando duplicado, triplicado, porque a gente fica junto com os novos plantonistas para eles entenderem a rotina, de manhã, de tarde, de noite."

O resultado é visto em seu rosto. Devido ao trabalho incessante utilizando máscaras PPF2, uma ferida se abriu em seu nariz e foi necessário que uma colega dermatologista lhe fizesse um curativo para impedir o machucado de crescer.

'Quem vai ser o próximo?'

O que mais revolta o médico é ver que apesar de já ter passado um ano, ainda há aqueles que não acreditam na doença.

"No começo da pandemia isso estava me adoecendo e aos meus colegas. A gente olhava e pensava: 'Estou trabalhando feito um louco alucinado, a doença está aí, a gente está vendo crescer. De onde essas pessoas tão dizendo que não tem nada?", desabafa.

Um amigo em uma rede social escreveu que as prefeituras estavam manipulando a quantidade de mortos. Eu respondi que a prefeitura só faz a estatística com base na declaração de óbito. Eu que preencho a declaração de óbito, eu não estou mentindo.

Em todo esse tempo, o intensivista não se contaminou com a covid-19. Mas muitos dos seus colegas não tiveram a mesma sorte.

"Um amigo da linha de frente adoeceu, ficou entubado em estado gravíssimo. Hoje ele está na reabilitação, tentando viver sem o cateter de oxigênio em casa. Médico jovem, minha idade, mais ou menos, 40 anos. Perdi amigos de infância, colegas de turma."

Agora, pelo menos, com a grande maioria dos colegas vacinados, a gente já tem uma certa esperança um pouco a mais. Mas na primeira fase a gente ficava olhando com muito medo e se perguntando: 'Quem vai ser o próximo?'.

O estado já registra mais de 12 mil mortos pela doença e ultrapassou os 350 mil casos confirmados. Desde o dia 9 de março, Pernambuco apresenta tendência contínua de aceleração na média móvel de mortes, segundo dados do consórcio de veículos de imprensa do qual o UOL faz parte.