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Brasil vai enfrentar geração de crianças órfãs, diz chefe da Cruz Vermelha

Júlio Cals, presidente da Cruz Vermelha Brasileira, conversa com crianças - André Benicio/ASCOM CVB
Júlio Cals, presidente da Cruz Vermelha Brasileira, conversa com crianças Imagem: André Benicio/ASCOM CVB

Carlos Madeiro

Colaboração para o UOL, em Maceió

12/06/2021 04h00

O presidente da Cruz Vermelha Brasileira, Júlio Cals, fazia um curso no Panamá, no início de 2020, quando viu a covid-19 estourar na Europa. "Voltei ao Brasil, me reuni com os presidentes estaduais e disse: 'Possivelmente teremos uma situação difícil no nosso país'."

Ele estava certo. Hoje a entidade atua com um corpo de 25 mil voluntários espalhados pelo país para tentar amenizar problemas e ajudar a população.

Aos 38 anos, ele é o mais novo presidente da ONG (organização não governamental) em um país. Ao UOL, durante passagem por Maceió para lançar um projeto de vacinação com um ônibus, ele afirma que vê a guerra política como o maior empecilho ao combate da pandemia no país.

"A gente enxerga todo mundo brigando, mas as pessoas estão morrendo, estão se colocando em uma situação de vulnerabilidade social ainda maior. Eles deveriam se unir para salvar vidas", diz.

Júlio Cals, presidente da Cruz Vermelha Brasileira - André Benicio/ASCOM CVB - André Benicio/ASCOM CVB
Imagem: André Benicio/ASCOM CVB
Cals ainda diz que o Brasil deve se preparar para cuidar da geração de crianças órfãs da pandemia e alerta que os problemas sociais estão explodindo pelo país. "A pandemia veio mostrar o tamanho do abismo social em que vivemos", afirma.

Leia os principais trechos da entrevista:

UOL - Como a Cruz Vermelha está atuando durante a pandemia no Brasil?

Júlio Cals - Desde o início da pandemia, a gente convocou todos os voluntários de todas as filiais. Eu estava no Panamá fazendo um curso de formação humanitária. A gente já monitorava de lá, porque temos 192 unidades nacionais pelo mundo.

Quando cheguei ao Brasil, me reuni com os presidentes estaduais e disse: 'Possivelmente teremos uma situação difícil no nosso país e vamos nos organizar para dar uma resposta à sociedade'.

Nos organizamos com nossos parceiros, nossos doadores, para dar essa ajuda. Fomos vendo o que estava faltando: kits de proteção individual, questão de educação em saúde, insegurança alimentar. E a gente atua com a entrega de cesta básica e transferência de efetivo [renda]. A gente entrega às famílias um cartão com R$ 350. Atuamos em várias frentes.

Muita gente participa?

Empregamos mais de 25 mil voluntários, e 7 milhões de brasileiros já foram beneficiados por nossas ações. Foram 32 mil itens de saúde para indígenas do Oiapoque (AP). Equipamos todos os centros de saúde de lá, doamos 1.600 cestas básicas. É um trabalho incansável.

E vocês estão vacinados?

Eu estou com a primeira dose. Mas não foi fácil. Nós tivemos que pedir, em uma carta ao Ministério da Saúde, o entendimento de que a Cruz Vermelha era uma força auxiliar de linha de frente da pandemia. Eles reconheceram. Só que tem muitos estados que infelizmente não enxergam dessa forma.

Hoje quem financia a Cruz Vermelha nessa ação no Brasil?

Temos o apoio de embaixadas aqui no Brasil, de grandes empresas.

E governos daqui?

Governos ainda não apoiam. Nem estadual, nem federal, nem municipal. A gente tem uma frente parlamentar de apoio à Cruz Vermelha, que busca muito o apoio junto ao governo federal. A gente tem uma boa interação também, mas financeiramente não recebemos nada, de nenhum governo. A gente oficia algumas coisas, pede recursos. Mas no Brasil a parte burocrática interfere muito, às vezes não é nem pelo gestor.

Você dialoga com governos, viajou todo o país, fala com pessoas de outros países. Como avalia a resposta do Brasil à pandemia?

Júlio Cals, presidente da Cruz Vermelha Brasileira - André Benicio/ASCOM CVB - André Benicio/ASCOM CVB
Imagem: André Benicio/ASCOM CVB
Eu não consigo entender --e falo como Júlio, cidadão-- as pessoas dizerem que os hospitais estão lotados só pela covid. Não! Nosso sistema de saúde já estava em uma situação muito difícil. Vivíamos um estrangulamento forte, com sistema sucateado em muitos estados. Como a gente conseguiria dar uma resposta a um problema tão grave como a covid? Nenhum lugar estava preparado.

Mas não existe um entendimento dos nossos governantes de que essa briga resvala na população. Agora é momento de união. As pessoas não podem estar brigando politicamente. Elas deveriam se unir para salvar vidas.

A gente enxerga todo mundo brigando, mas as pessoas estão morrendo, estão se colocando em uma situação de vulnerabilidade social ainda maior. A pandemia veio mostrar o tamanho do abismo social em que vivemos. Ele já existia, e era invisível para muita gente.

Rodei todos os estados na pandemia, vi muita coisa. Peguei covid em uma missão da instituição, quase perdi minha vida me dedicando ao próximo.

A situação social piorou muito com a pandemia, não?

Muito. Você não sabe o que é chegar a um igarapé, no meio da selva, e ter uma criança chorando na beira do rio com fome. Ela chegar para você e dizer: 'Tio, eu estou triste porque estou com fome, ainda não comi nada'. Isso porque o pai e a mãe estão sem emprego. Dói no coração.

O Brasil precisa se preparar porque a gente vai ter uma geração de crianças órfãs por uma pandemia. Olha a cabeça dessas meninas e meninos que vão crescer no nosso país.

Então essa briga seria o ponto central da falha na nossa resposta?

Acredito que sim. Tudo o que desagrega não ajuda. Em um momento desses, em que você precisava de união dos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, está todo mundo brigando. O que eu entendo é que não é briga pelo povo, mas pelo poder. E os únicos poderes que deveriam agir são: poder fazer, poder agir, poder contribuir.

Enquanto estão se degladiando, puxando cada um para um lado, quem está se esfarelando é o povo.

O país teve uma redução no valor e no número de beneficiários do auxílio emergencial em 2021. Isso impactou nesse cenário?

Júlio Cals, presidente da Cruz Vermelha Brasileira, ganha pintura em evento indígena - André Benicio/ASCOM CVB - André Benicio/ASCOM CVB
Júlio Cals, presidente da Cruz Vermelha Brasileira, ganha pintura em evento indígena
Imagem: André Benicio/ASCOM CVB
Piorou muito. E o pior que vejo são para as crianças. Com pai e mãe não trabalhando, elas são colocadas em sinais para pedir ajuda. Elas deveriam estar recebendo amor, dedicação, carinho e com direito a alimentação. E onde estão os direitos dessas crianças? Onde ficarão os diretos das que ficaram órfãs?

Você disse que quase morreu de covid-19. Como foi isso?

Eu tive covid e fiquei com 78% de comprometimento nos pulmões. Quando se fala em tratamento precoce, as pessoas entendem muito sobre a utilização de medicamentos. Mas o tratamento precoce é quando ele procura um médico antes de agravar a covid.

Essa doença não tem receita pronta para o médico passar um remédio eficaz. O que temos são tentativas. Por exemplo: fiz dois tratamentos não convencionais. Um deles foi o uso do capacete Elmo. Não fui intubado por conta dele, que diminuiu em 60% as intubações quando utilizado. E eu recebi plasma convalescente, que no meu organismos fez toda diferença: dormi com os índices todos alterados e, quando fizeram os exames no outro dia, meus índices tinham baixado.

Veja como é essa doença, tenho 38 anos, sou faixa preta de judô, saudável e quase perdi minha vida.

Como você vê a questão da desinformação ter atrapalhado as pessoas a fazerem ações de prevenção, por exemplo?

Com certeza absoluta, isso foi percebido. As redes sociais serviram para dar uma agilidade à informação, mas serviram para desinformar ou para colocar a população como massa de manobra. Quando você solta uma informação errada, uma fake news, você manobra aquela população.

Brigo demais pelas nossas crianças e adolescentes. Quando você não trata da educação, elas não vão ter entendimento nem intelecto preservados e serão utilizadas como massa de manobra. Uma fake news postada para uma pessoa sem entendimento fará ela acreditar. E ela vai ser vítima daquilo.