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SP terá de pagar remédio mais caro do mundo a garoto com atrofia muscular

Cauã Sugawara, que nasceu com atrofia muscular espinhal (AME) e luta por remédio de alto custo - Arquivo pessoal
Cauã Sugawara, que nasceu com atrofia muscular espinhal (AME) e luta por remédio de alto custo Imagem: Arquivo pessoal

Andressa Rogê Ferreira

Colaboração para o UOL, em São Paulo

30/09/2021 04h00

Cauã Sugawara tem 7 anos e nasceu com atrofia muscular espinhal (AME), uma doença genética rara que afeta os neurônios controladores dos músculos. A AME prejudica os movimentos, a respiração e a capacidade de engolir, levando à paralisia e podendo causar a morte.

Por isso, sua família tem lutado na Justiça para que ele receba o remédio Zolgensma, considerado o mais caro do mundo, ao custo de R$ 11 milhões.

É muito difícil para uma mãe ver o seu filho se degenerando aos poucos e não poder fazer nada. Ficar ali vendo o seu filho morrendo aos poucos. A gente está lutando para que Cauã receba o Zolgensma e possa ter um futuro diferente daquele ao qual ele está, infelizmente, condenado."
Renata Mihe Sugawara, mãe de Cauã, que tem AME

Depois um ano na Justiça, o caso chegou ao STF (Supremo Tribunal Federal). O ministro Luiz Fux determinou que governo de São Paulo banque o medicamento para Cauã.

Outros pacientes já conseguiram na Justiça o pagamento do remédio pelo governo federal, mas esta é a primeira vez que um estado é obrigado a pagar o tratamento. A decisão abre portas para que outras famílias possam conseguir o mesmo direito em seus estados.

O UOL apurou que o estado de São Paulo recorreu da decisão no dia 13 de setembro (veja mais sobre o posicionamento do governo ao final do texto).

No pedido, o governo estadual quer que o caso seja analisado em plenário pelos ministros do STF. Isso, contudo, não tem efeito suspensivo da decisão, ou seja, São Paulo tem que arcar com o tratamento de Cauã enquanto o caso não é retomado no Supremo.

Como atua o Zolgensma?

O Zolgensma é um medicamento recente e foi aprovado pela Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) para uso no Brasil há um ano. Como ainda não consta no rol de medicamentos do SUS (Sistema Único de Saúde), as famílias precisam entrar na Justiça para consegui-lo.

caua e renata - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Cauã Sugawara e sua mãe, Renata
Imagem: Arquivo pessoal

Na Câmara dos Deputados, há dois projetos de lei em tramitação que buscam incluir esse tratamento no SUS.

Na maioria dos casos, a atrofia muscular espinhal aparece em pessoas que nascem com uma mutação no gene chamado SMN1, responsável por produzir uma proteína fundamental para os neurônios motores, a SMN.

O Zolgensma é considerado revolucionário porque muda o DNA e repõe parte desse gene SMN1 no doente com apenas uma dose, levando à melhora na qualidade de vida.

Os resultados dependem do grau da enfermidade e da idade e, por ser uma medicação nova, ainda não há estudos dos efeitos a longo prazo.

No Brasil, o medicamento foi aprovado para uso em crianças de até dois anos de idade, porém, em alguns países da Europa, a regra de corte é por peso: até 21 kg.

Renata, que é advogada e se especializou em casos de saúde para poder lutar na Justiça pelo filho, reuniu pareceres de médicos de São Paulo, Paraná e Distrito Federal, além de estudos internacionais com evidências de que o Zolgensma pode melhorar os movimentos de crianças dentro deste peso e com mais de dois anos de idade.

caua de pé - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Cauã Sugawara de pé em equipamento especial, posição que ele não consegue mais ficar
Imagem: Arquivo pessoal

Aos 7, Cauã pesa 19,5 kg. Por isso, tem pouco tempo para receber a medicação.

Wilson Marques Jr, pós-doutor em neurologia e professor da faculdade de Medicina da USP (Universidade de São Paulo) em Ribeirão Preto, é um dos médicos que já atenderam Cauã. "Ele tem chances de responder bem, já que há evidências de que existem neurônios íntegros", diz.

Outra médica do paciente é Adriana Banzatto Ortega, neuropediatra, responsável pelos ambulatórios de doenças neuromusculares no Hospital de Reabilitação do Paraná e no Hospital Pequeno Príncipe. Ela é especialista na medicação e fez metade das 47 aplicações do Zolgensma no Brasil.

"Vai melhorar a mobilidade da perna, muito a questão dos braços e com isso ele vai ficar mais independente. Há pequenas coisas para as quais nós não damos valor, mas para o paciente é muito importante", diz a especialista.

Essa regra da idade ou do peso foi estabelecida porque o remédio usa um vetor viral para levar o pedaço do gene faltante para o paciente. "É como uma carreta que transporta um carro. O vírus leva o que precisa lá para dentro da célula", explica Wilson Marques Jr.

"Quanto mais jovem, você precisa de menos vírus, então tem menos problema. Quanto maior a idade ou peso, você tem que levar mais gene, então vai ter mais vírus e você passa a ter mais efeito colateral."

Diagnóstico ainda bebê

Cauã tinha pouco mais de um ano quando a doença foi descoberta. Dois anos depois, a mãe foi uma das primeiras no país a entrar na Justiça para conseguir a medicação Spinraza para o filho, que ainda não era fornecida pelo SUS.

Esse remédio faz um outro gene sadio, o SMN2, produzir a proteína que falta em pacientes com AME, mas não na quantidade ideal.

Cauã já tomou 15 doses de Spinraza, mas sofre toda vez, porque tem de tomar anestesia e uma injeção direto na medula espinhal. Fazê-lo entender isso é outro desafio.

"Além da terapia ocupacional, vem uma psicóloga duas vezes por semana, porque, depois que o Cauã começou a receber o Spinraza, ele teve alguns episódios bem agressivos, não queria receber a medicação", conta a mãe.

Ele tem de ir para o centro cirúrgico de quatro em quatro meses. Ele chegava a dizer para mim: 'Mamãe, por que que você está fazendo isso comigo?'. Se eu pudesse, saía correndo. Isso também é muito doloroso."
Renata Mihe Sugawara, mãe de Cauã, que tem AME

Além disso, ela diz que existe a possibilidade de contrair uma infecção. "É sempre uma preocupação", diz Renata.

Hoje, o Spinraza é coberto pelo plano de saúde, mas também não é barato. Cada aplicação custa quase R$ 150 mil. Mas o efeito já não é o mesmo. Depois das primeiras doses, os movimentos de Cauã melhoraram bastante, mas, agora, estão estabilizados. Ele não consegue mais se sentar ou comer sozinho.

"Como o corpinho dele cresceu, ele começou a ter uma escoliose muito grande por não ter a musculatura do tronco. Os bracinhos dele estão bem atrofiados, bem fininhos, a perna também. Ele chegou a ficar de pé no andador, mas depois perdeu essa mobilidade", afirma.

Da última vez que a gente colocou o Cauã no andador, ele chorou porque não conseguia mais levantar a perninha. Foi um dia muito triste."
Renata Mihe Sugawara, mãe de Cauã, que tem AME

Mãe batalhadora

Mãe solo, Renata se separou quando estava grávida. O pai não apareceu mais depois que Cauã recebeu o diagnóstico de AME. Ela trabalha de casa e se desdobra para dar conta das tarefas profissionais e dos cuidados com o filho.

"Eu tive que ser muito forte para mantê-lo e também no sentido emocional, para que ele pudesse ficar amparado. Tento mostrar que ele é uma criança extremamente inteligente, fala inglês, tem um raciocínio bem rápido, é um dos melhores alunos da escola."

Renata decidiu entrar na Justiça contra o governo de São Paulo porque Cauã é paciente do Hospital das Clínicas, que é estadual.

Mas conseguir essas medicações também é difícil para os médicos dos hospitais públicos do estado. Eles acabam não receitando remédios de alto custo fora da lista do SUS, porque, se o estado tiver que pagar, o recurso pode sair do próprio departamento onde trabalham, de acordo com uma resolução da Secretaria Estadual de Saúde.

"Se eu prescrevo, o estado cobra do hospital, e o hospital tira do meu departamento. E o meu departamento está devendo já para o resto do próximo século para o hospital", diz Wilson Marques Jr, que atende no HC de Ribeirão Preto. "Isso não é uma decisão do médico, o médico quer tratar todo mundo. Só que fica nas nossas costas."

Outro lado

O Ministério Público de São Paulo disse que não pode se pronunciar porque o caso envolve um menor de idade e corre em segredo de Justiça.

Já Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo afirmou que o tratamento de Cauã pode chegar a R$ 24 milhões, pelo perfil do paciente.

Mas o UOL apurou não há justificativa para dobrar esse valor, já que no pedido de importação consta o valor total de US$ 2,125 milhões, que, com o desconto do laboratório, chegaria a estimados R$ 11 milhões.

Além disso, os impostos deste medicamento foram zerados pelos governos federal e estadual.

A Secretaria de Saúde falou ainda que não há evidência científica quanto ao uso do medicamento Zolgensma para este caso, nem autorização da Anvisa para uso em pacientes acima de dois anos.

Além disso, argumenta que ações como esta oneram o SUS, privilegiando direitos individuais, na contramão da assistência universal prevista na Constituição.

Sobre cobrar do orçamento de hospitais públicos a conta de remédios de alto custo fora da lista do SUS, a secretaria diz que a legislação norteadora do SUS já estabelece que o acesso à assistência farmacêutica pressupõe a prescrição de medicamento por profissional de saúde da rede pública em conformidade com a Rename (Relação Nacional de Medicamentos) e os Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas vigentes.