Brasil estaciona em mortalidade infantil de 2015 e tem meia década perdida
Resumo da notícia
- Dados mais recentes do Ministério da Saúde mostram nova alta em 2019 e taxa similar a 2015
- Freio em queda de taxa é inédito: Brasil vinha em redução constante de 4,4% ao ano no século
- Estados do Norte registram os piores índices, alguns com taxas maiores que vistas em 2015
A mortalidade infantil caía ano a ano no Brasil desde pelo menos 1990. Mas boletim especial do Ministério da Saúde com registros até 2019 (último ano com dado disponível) aponta que a taxa regrediu naquele ano, estacionando o país no índice de 2015 e fazendo viver uma até então inédita metade de década perdida.
Em 2019, foram 13,3 mortes por mil nascidos vivos no Brasil, alta discreta em comparação ao ano anterior. Em 2018, essa taxa ficou em 13,1 por mil nascidos vivos. A taxa é exatamente a mesma registrada quatro anos antes.
O documento do Ministério da Saúde lamenta o freio na redução e lembra que o país vinha em um ritmo acelerado de queda das taxas até 2015. "No Brasil, vem-se observando um declínio na taxa de mortalidade nesse grupo, com uma diminuição de 5,5% ao ano nas décadas de 1980 e 1990, e 4,4% ao ano desde 2000", diz.
O cenário é preocupante. Essa importante desaceleração pode estar associada à diminuição da cobertura vacinal no país, ao aumento do número de pessoas em pobreza e extrema pobreza, à epidemia do vírus da zika em 2015 e 2016, à estagnação de programas sociais e aos cortes na saúde pública."
Paulo Martins-Filho, epidemiologista e professor da UFS (Universidade Federal de Sergipe)
Segundo o SIM (Sistema de Informações sobre Mortalidade), do Ministério da Saúde, em 2019 o Brasil registrou 35.293 mortes de bebês com menos de um ano.
Dessas, o Ministério da Saúde calcula que 23.262 poderiam ser reduzidas por:
- Ações de imunização - 30
- Atenção à mulher na gestação - 9.681
- Atenção à mulher no parto - 3.331
- Atenção ao recém-nascido - 6.263
- Ações de diagnóstico e tratamento adequado - 2.257
- Ações de promoção à saúde - 1.700
Entretanto, para contabilidade final no boletim, o ministério usa um critério de correção de mortes infantis após uma busca ativa e investigação, que eleva o número total de mortes naquele ano para 38.619.
As principais causas de mortes infantis no Brasil em 2019 foram:
- Septicemia (infecção generalizada) bacteriana do recém-nascido - 2.770
- Feto e recém-nascido afetados por problemas maternais - 2.365
- Desconforto respiratório em recém-nascido - 2.181
- Feto e recém-nascido afetado por complicações na gravidez - 1.543
- Feto ou recém-nascido prematuro ou com gravidez alongada - 1.551
A meta dos ODS (Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU para o Milênio) é reduzir a mortalidade neonatal no mundo para pelo menos 12 por mil nascidos vivos.
Entretanto, como a média inclui países africanos, por exemplo, as taxas do Brasil são consideradas altas —até mesmo para padrões de países da América Latina. Ela é mais que o dobro da do Uruguai (6,1 por mil vivos) e quase o quádruplo de Cuba (3,8), por exemplo. Na Argentina, a taxa é de 8,2.
Fatores sociais impulsionam taxa
O fim da queda na taxa entre 2015 e 2019 é uma novidade para um país que se destacou, em décadas passadas, pelos bons resultados no combate à mortalidade. Em 2014, o esforço brasileiro foi reconhecido com o Prêmio Global da ONU (Organização das Nações Unidas) de Serviço Público.
"Existem fatores condicionantes e determinantes para a mortalidade infantil, que vão desde a educação das famílias, em especial da mulheres; passando por renda, saneamento e atendimento de saúde", afirma Francisca Maria Andrade, especialista em saúde e desenvolvimento infantil do Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância).
A especialista atribui a queda nos anos anteriores a 2016 a melhoria das condições sociais (com os programas de transferência de renda) e pelo maior acesso aos serviços de saúde (com a estratégia de saúde da família, por exemplo). "A desnutrição é um fator de risco para a criança, e a melhoria social ajudou a reduzir a mortalidade. E houve também um avanço das culturas vacinais [que começou a cair a partir de 2016]", relata.
Apesar do avanço nos serviços, ela fala que é preciso melhorar a qualidade deles.
O Brasil avançou bastante de acesso ao pré-natal, com a gestante tendo seis, sete consultas. Mas a qualidade dele não é boa. Por exemplo: a grávida tem uma infecção unitária mal tratada. Aí o bebê nasce prematuro e morre por essa prematuridade. Para gente reduzir mais a gente tem de investir muito nas medidas da melhoria de atenção ao neonatal e fase de puerpério."
Francisca Maria Andrade, especialista em saúde e desenvolvimento infantil do Unicef
Andrade explica que, como 70% dos óbitos infantis ocorrem no primeiro mês de vida, as ações de saúde —após todos esses anos de queda— deveriam focar em tecnologia e acesso a serviços de média e alta complexidade para os bebês que nascem com problemas congênitos ou prematuros, por exemplo.
"São poucas as unidades de UTI neonatal, que precisam de um respirador, de equipamentos. Na medida em que vai se modernizando a saúde, vai aumentando também os custos. O Brasil, talvez, não tenha essa estrutura, e isso pode ser outro fator para explicar a taxa estacionada", diz.
Ela aponta que 13,3 é uma taxa alta, mas sinaliza que algumas regiões do país já conseguiram baixar esse índice para um dígito e estão mais próximas de números "aceitáveis". "Acima de 11, 12, tem muita morte que pode ser evitada. Têm municípios que são muito mais pobreza, e as desigualdades regionais precisam ser enfrentadas com políticas públicas que façam essa compensação. Crianças indígenas e negras são mais afetadas do que as brancas", afirma.
Por que parou de cair?
Segundo o médico pediatra, sanitarista e professor do Departamento de Saúde Coletiva da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) Paulo Bonilha, a mortalidade infantil é um retrato fiel do momento social do país.
Esse boletim traz um dado muito preocupante, mas que já era esperado. A mortalidade infantil é um dos melhores indicadores, e ela mostra como estamos, no Brasil, de qualidade de vida e saúde."
Paulo Bonilha, professor da Unicamp
Segundo ele, o aumento da mortalidade percebido ainda em 2016 ocorreu porque "se juntaram vários fenômenos".
"Um deles foi a diminuição da maternidade, ocorrida pela epidemia vírus da zika. Como a mortalidade é uma conta em relação ao número de nascidos vivos, a diminuição impacta muito na conta. Mas essa alta aconteceu também pela crise econômica e pela diminuição de recursos para o SUS [Sistema Único de Saúde] e SUAS [Sistema Único de Assistência Social]", conta.
Segundo ele, o que o boletim do ministério traz de "má notícia" são os dados a partir de 2017. Ele pontua que alguns estados pobres da região Norte e Sergipe, no Nordeste, reduziram seus patamares em 2019 em comparação a 2015. "Isso retrata a piora da situação social do país", diz.
Em 2019, por sinal, os três líderes em taxa de mortalidade infantil são do Norte.
Para conseguir reverter é preciso voltar a ter crescimento econômico no país. Mas, enquanto isso não ocorre, a gente precisa de suporte, ter um SUS e um SUAS fortes para dar sustentação para as famílias que mais precisam, principalmente com olhar regional para o Norte e Nordeste e para a periferia das grandes cidades."
Paulo Bonilha, professor da Unicamp
Vacinas (ainda) protegem, mas...
Para a pediatra Isabella Ballalai, vice-presidente da SBIm (Sociedade Brasileira de Imunizações), não há como ainda atribuir a responsabilidade do freio na queda da taxa de mortalidade à menor cobertura vacinal.
"Nossas coberturas estão baixas e caindo, mas não a patamares capazes de causar impacto na taxa de mortalidade. A gente só viu o resultado dessa queda [na vacinação] para sarampo, e mesmo assim o número de casos entre menores de um ano é baixo, perto daquilo que tinham antes", diz.
Por outro lado, a especialista alerta que, com a volta ao convívio social devido à vacinação contra a covid-19, casos de sarampo e até a volta de doenças erradicadas do país são motivos reais de preocupação.
"Desde o ano passado está todo mundo em casa, e as doenças circulam menos. Com essa volta à normalidade e as crianças nas escolas, o risco de doenças voltarem é grande. Mas isso leva tempo, o impacto não é uma coisa de imediato", relata.
Integrante do grupo de trabalho de Imunizações da Sociedade de Pediatria do Rio de Janeiro, Flavio Czernocha alerta ainda que as perspectivas para os próximos são de risco.
"A falta de vacina é um processo muito perigoso para nós. Se levarmos em consideração a vacina pneumocócica —que está disponível na rede pública há dez anos, teve um impacto extraordinário na redução das chamadas doenças invasivas. Com a pandemia, a cobertura dela caiu demais, e a possibilidade dessa bactéria voltar é muito real", alerta. "E não estamos falando só de pneumonia, mas de meningite: o pneumococo é o segundo maior causador da doença no Brasil."
O pediatra afirma que o maior problema está nas doenças de causas respiratórias. "Nós tivemos, em 2020, um número de óbitos baixíssimo, talvez o menor de toda história. Mas a perspectiva matemática é que, voltando às atividades normais, o número de casos pode ter um aumento de 300% por conta do represamento. As bactérias ficaram restritas. E parece que isso já está se confirmando em número casos, mesmo estando fora de temporada. As internações por síndrome respiratória estão crescendo", explica.
As duas coisas que mais alongaram a expectativa de vida na história da humanidade foram: água potável e vacina. Se você tira vacina, volta a ter uma mortalidade absurda, principalmente em crianças. Entre as vacinas está a do rotavírus, que é a principal causa de morte por diarreia. Então é um cenário que nos preocupa."
Flavio Czernocha, pediatra
No boletim do Ministério da Saúde, a pasta destaca que "é preciso um grande esforço para enfrentar as diferenças regionais e alcançar patamares mais baixos".
"A mobilização não somente das esferas de governo, mas de toda a sociedade e de cada cidadão, é importante para consolidar essa redução, num movimento em defesa da vida."
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