PEC que libera venda de plasma humano é aprovada em comissão no Senado
A CCJ (Comissão de Constituição e Justiça) do Senado aprovou nesta quarta-feira (4), por 15 votos a 11, uma Proposta de Emenda à Constituição que autoriza a venda de plasma humano pela indústria farmacêutica. O texto ainda precisa passar pelo plenário da Casa e, depois, pela Câmara dos Deputados.
Entenda o que pode mudar
Líquido amarelado feito de água, sais minerais e proteínas, o plasma representa 55% do volume sanguíneo. Depois de retirada do sangue, a substância é usada na fabricação de remédios para tratar pessoas com hemofilia, doenças autoimunes, cirrose, câncer e queimaduras, entre outras doenças.
A Constituição de 1988 proibiu a venda de órgãos e tecidos humanos — incluindo o sangue e seus componentes — porque na década de 60, 70 e 80 pessoas empobrecidas vendiam sangue para sobreviver, com baixo controle de contaminação por HIV e hepatites.
Desde a decisão, cabe apenas ao Estado o processamento e distribuição de sangue no Brasil. Hoje, a estatal Hemobrás (Empresa Brasileira de Hemoderivados e Biotecnologia) é a única autorizada a utilizar plasma para produzir medicamentos no país.
É com essa exclusividade que a PEC aprovada hoje na CCJ quer acabar. De olho em um mercado de R$ 10 bilhões por ano na América Latina, a proposta avançou rapidamente no Senado e foi aprovada hoje. A expectativa é de que ela seja votada em Plenário nas próximas semanas.
A relatora Daniella Ribeiro (PSD-PB), da CCJ, expediu um parecer favorável à proposta, que foi seguida pela maioria dos senadores da comissão. Com a mudança, empresas farmacêuticas poderão coletar o plasma e fabricar remédios para exportar e vender ao mercado interno, inclusive ao SUS.
A lei disporá sobre as condições e os requisitos que facilitem a remoção de órgãos, tecidos (...) bem como coleta, processamento e transfusão de sangue e seus derivados, sendo vedado todo tipo de comercialização, com exceção ao plasma.
§ 4º da PEC do Plasma
Mudança pode afetar doação de sangue?
No Brasil, há 1.400 doadores para cada 100 mil habitantes. Na Dinamarca —onde a doação é um exemplo—, essa proporção é de 14 mil doadores para cada 100 mil pessoas.
"Permitida a comercialização de plasma, haverá diminuição significativa das doações do sangue total", defende o senador Humberto Costa (PT-PE), um dos principais opositores da PEC.
Se uma pessoa doa por solidariedade, ela começará a se perguntar se vale a pena doar sangue enquanto outros estão vendendo.
Humberto Costa, senador
Costa se refere a um trecho da PEC que abre a possibilidade para que as farmacêuticas voltem a pagar pela doação, como no passado. Essa remuneração estava na proposta original, mas a pressão de opositores substituiu o trecho pela determinação de se aprovar uma lei para regulamentar "os requisitos para coleta, processamento e comercialização de plasma".
"Isso realmente não pode acontecer", concorda o presidente da Sindusfarma (Sindicato da Indústria de Produtos Farmacêuticos), Nelson Mussolini. "Antigamente passava um ônibus na praça da Sé, a pessoa entrava de um lado, doava e saía do outro com dinheiro para tomar um café."
Ele defende que seja substituído o termo "remuneração" por "benefício". "Pode ser um desconto no plano de saúde, por exemplo. Já não é beneficiado quem doa sangue e tem folga do trabalho?", questiona.
A regulamentação também deve obrigar que parte do sangue remunerado vá para o SUS gratuitamente.
Nelson Mussolini, do Sindusfarma
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Quero receberMesmo sem a remuneração, porém, a doação de sangue será afetada, diz a Hemobrás. É que a PEC sugere que os laboratórios usem outro método para coletar o plasma, a chamada aférese. Ao contrário do método tradicional —que retira todo o sangue e separa seus componentes em uma centrífuga—, na aférese o sangue é bombeado para uma máquina que separa o plasma e devolve ao corpo as hemácias e plaquetas.
"Isso permite doar 12 vezes por ano, contra quatro no método tradicional", diz Frederico Batista, farmacêutico da estatal. Com isso, quem passar a doar plasma pode desistir de doar o sangue integral, "colocando em risco a oferta de sangue no país", afirma.
"A PEC incentiva a doação de sangue", discorda o presidente da Sindusfarma. "Mas a regulamentação precisa dizer que uma parte do sangue remunerado deverá ir para o banco de sangue dos hospitais."
Preço dos remédios vai subir?
A indústria defende que a "concorrência" vai baratear os remédios feitos com plasma. "Temos empresas internacionais que vão instalar fábricas no Brasil", diz Mussolini. "A Hemobrás terá de melhorar seus processos para produzir mais barato."
O senador discorda. "A Hemobrás é uma empresa estatal, sem qualquer interesse em auferir lucros", diz. O problema é que a Hemobrás não é autossuficiente e ainda importa remédios feitos com plasma, às vezes com dispensa de registro na Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária).
"Essa importação está criando uma separação de classes", diz a senadora Daniella Ribeiro (PSD-PB), relatora da PEC. "Ricos recebem medicamento com registro, pois os planos de saúde só cobrem se estiverem registrados na Anvisa, e o pobre no SUS fica com o resto."
Autossuficiência da Hemobrás está próxima. Fundada em 2004, a empresa ainda precisa exportar parte do plasma brasileiro para laboratórios no exterior e importar os remédios prontos. Uma fábrica em Pernambuco, no entanto, está em fase final de construção, e promete produzir todo o plasma necessário ao Brasil a partir de 2025.
Se a PEC for aprovada, a "concorrência" pode inviabilizar a Hemobrás, dizem os críticos. A estatal afirma em nota que os preços do plasma seriam regulados pelo mercado internacional, elevando os preços praticados no Brasil.
Autor da PEC, o senador Nelsinho Trad (PSD-MS) escreveu no texto que o TCU (Tribunal de Contas da União) encontrou desperdício de quase 600 mil litros de plasma em 2020. A estatal diz que "nunca desperdiçou plasma" e o tribunal disse ao UOL que ainda não decidiu sobre o assunto. Procurado, o senador não se manifestou.
Em nota conjunta, o Ministério Publico Federal e o MP junto ao TCU criticaram a PEC. Afirmam que, uma vez autorizada a comercialização, o plasma estaria sujeito ao livre mercado e às suas "regras e consequências", "como manipulação de preços, estocagem indevida, concorrência desleal".
O CNS (Conselho Nacional de Saúde) também critica o texto. Afirma em nota que a PEC "fere a recomendação da OMS [Organização Mundial de Saúde] para que o sangue seja doado de forma voluntária e não remunerada".
Ministra da Saúde é contra
A mudança faria do plasma uma "mercadoria", disse a ministra Nísia Trindade (Saúde) em uma live na semana passada. "O sangue não pode ser comercializado, não pode ter remuneração a doadores, isso foi uma conquista da Constituição", afirmou.
Estamos trabalhando para que o sangue não vire uma mercadoria.
Nísia Trindade, ministra da Saúde
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