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Esquerda latina derrotada encara o futuro sem Fidel e com Trump

28/12/2016 10h08

Havana, 28 dez 2016 (AFP) - Quase 20 anos depois de conquistar o poder na América Latina, a esquerda regional necessita de uma autocrítica e deverá encarar um futuro imprevisível com a posse de Donald Trump na Presidência dos Estados Unidos.

E também sem um de seus maiores símbolos: Fidel Castro, que inspirou e apoiou ex-guerrilheiros e líderes sindicais que chegaram ao poder nos anos 2000, como Lula e Dilma Rousseff no Brasil, José Mujica no Uruguai ou Evo Morales na Bolívia.

Sob a orientação de Lula e do falecido Hugo Chávez, na Venezuela, uma esquerda heterogênea tomou o poder em toda a América do Sul, com exceção da Colômbia, e com avanços na América Central.

Mas, no momento da morte do pai da revolução cubana - em 25 de novembro, aos 90 anos -, muitos presidentes esquerdistas já tinham caído.

Eleições presidenciais no Peru e na Argentina, referendo na Bolívia, legislativas na Venezuela: a esquerda acumula derrotas nas urnas e teve de assistir impotente ao impeachment de Dilma Rousseff, acusada de maquiar as contas públicas.

E, em 2017, o grupo deve se reduzir ainda mais: Rafael Correa (Equador) não quer um terceiro mandato, enquanto a chilena chilena Michelle Bachelet se prepara para deixar o poder com um balanço de escândalos e promessas não cumpridas.

Para Michael Shifter, do Diálogo Inter-americano, dois fatores foram determinantes para o enfraquecimento da esquerda: "a queda dos preços das commodities que sustentaram esses governos e um desejo natural de mudança".

Influência em declínioEstes reveses sucessivos provocaram a perda de influência de Cuba, referência histórica da esquerda do continente, que também enfrenta o impacto da grave crise atravessada por seu principal aliado e fornecedor de petróleo com facilidades de pagamento: a Venezuela.

Ainda em meio a esta situação e sem fazer grandes concessões, Cuba iniciou uma aproximação histórica com os Estados Unidos que realçou sua imagem perante o resto do mundo.

Mas a ilha já não é essencial para o continente, e os líderes da Revolução terão que se concentrar em dois grandes desafios: a reforma de um modelo econômico obsoleto e a transferência de poder do presidente Raúl Castro à nova geração, esperado para dentro de 15 meses.

"A representação internacional no funeral de Fidel não esteve ao nível esperado. Isso sugere que o status de Cuba está em declínio", opina o ex-diplomata Paul Webster Hare, professor de Relações Internacionais da Universidade de Boston.

Neste contexto, Webster Hare espera "que países como Rússia e China convoquem Raúl Castro a romper com o sentimentalismo da velha revolução e realizar reformas genuínas na economia".

O desafio TrumpEm um continente atingido por dois anos de recessão, a mística socialista e as políticas de redistribuição foram superadas por uma realidade marcada pelos erros de alguns líderes, sem sucessores à vista.

Em países como Bolívia e Equador, por exemplo, onde o poder está altamente personalizado, as coalizões no poder há quase 10 anos "terão que aprender a se organizar como partidos de oposição", afirma Christopher Sabatini, da Universidade de Columbia, em Nova York.

Em pouco mais de um mês, os governos de esquerda terão que enfrentar um novo desafio: a cegada à Casa Branca de Donald Trump nos Estados Unidos.

Para a maioria dos especialistas, ainda é muito cedo para falar de uma possível "ameaça Trump", já que o magnata imobiliário parece não ter a América Latina entre suas prioridades, com exceção do tema migratório.

Para Shifter, a propensão de Trump pela provocação pode fazer o movimento socialista renascer na região.

"Se Trump tentar restaurar uma estratégia hegemônica na América Latina, com um tom e estilo agressivos, isto provocaria uma reação em toda a região, não apenas nos países de esquerda", adverte Shifter, explicando que isso pode levar ao surgimento de novos líderes de esquerda no continente.

O presidente Correa considerou em outubro que a chegada de Trump seria "melhor para a América Latina", lembrando que a rejeição à administração de George Bush permitiu "a chegada de governos progressistas" durante seu mandato (2001-2009).