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'Somos como perfume', diz Mãe Beata de Iemanjá à AFP, dias antes de morrer

30/05/2017 18h25

Rio de Janeiro, 30 Mai 2017 (AFP) - Mãe Beata de Iemanjá chorava. Aos 86 anos, a icônica ialorixá de candomblé e incansável ativista social secava as lágrimas, enquanto conversava com a AFP sobre os tempos difíceis no país, sentindo - talvez - que lhe restava pouco tempo para continuar lutando.

Mulher, negra e seguidora dessa religião que chegou ao Brasil no século XVI com os escravos africanos, Beatriz Moreira Costa tinha todos os ingredientes para ser alvo de ataques em um país com preconceitos à flor da pele.

Mas, nem a pobreza na qual foi criada na Bahia, nem as humilhações sofridas ao longo da vida conseguiram dobrá-la. Pelo contrário. Ela se tornou uma aguerrida figura da luta contra o racismo, o machismo e a intolerância religiosa.

Com quatro filhos biológicos, essa mãe de santo diz ter parido milhares em seu terreiro fundado há mais de 30 anos em Nova Iguaçu, região metropolitana do Rio de Janeiro.

Foi nesse espaço de cerimônias e de culto aos orixás que Mãe Beata de Iemanjá recebeu a AFP, em 16 de maio, para uma reportagem sobre a discriminação contra as mulheres do candomblé pelo uso do turbante, o "ojá". Muitas são chamadas, pejorativamente, de macumbeiras.

Onze dias depois, milhares de brasileiros choravam sua perda.

Essa foi a última entrevista da amada mãe de santo, autora de "Tradição e religiosidade" e de "As histórias que minha avó contava". Com uma mistura de ímpeto e de tristeza, Mãe Beata aproveitou o momento para alçar sua voz sobre temas que a preocupavam e para garantir que não temia a morte. Mesmo assim, queria poder ter mais 20 anos de vida pela frente para seguir sua luta.

Confira abaixo algumas das reflexões de Mãe Beata de Iemanjá, nesse dia, com a AFP:

- "Nós não morremos. Há uma continuidade de outra vida mais plena, com mais sabor, com mais serenidade. Nós somos como um vidro de perfume. Se uma grande essência cair, se quebrar, fica aquele aroma delicioso, de capim, de rosa, sem você saber... Nós somos espíritos, somos os eguns, porque os nossos antepassados estão ali conosco".

- "Essas guerras todas... Muitas você vê que são por questão religiosa, e pela questão do dinheiro. Nosso Pai, o criador, Olorum, não nos mandou para isso, nos mandou para uma experiência do que é a bondade, do que é o acolhimento".

- "O candomblé não tem nada de magia negra. O candomblé - que é a minha pertença, a minha fé, que é meu antídoto para tudo, que é o sangue que eu tenho na minha veia - não é de meter medo a ninguém".

- "Essa vergonha do 13 de maio é mais uma balela. Vamos procurar ver... Nunca existiu o negócio de Abolição. 13 de maio? Qual 13 de maio? A visão do Brasil é que, se você tem a pele mais clara, você tem tudo".

- "O Brasil não tem culpa. São os safados que dizem que estão zelando pelos brasileiros, os ladrões, os crápulas sem vergonha. Será que esses sujeitos não sentem gosto de sangue na boca deles?".

- "Eu luto para que tenham respeito. Eu não quero tolerância, odeio essa palavra tolerância. Nós não deveríamos dar direito a ninguém de falar essa tolerância. Quero respeito. Eu quero ser o que eu sou, eu quero ser verdadeira. Me respeite. Eu sou uma mulher negra e eu sou uma ialorixá do candomblé, das religiões tradicionais. Me respeite, respeita a mim e a meu povo".

- "Qualquer ser humano, homem, mulher, adolescente: você tem que ter fé. A fé é tudo, a fé é o teu conteúdo, a tua dignidade e o teu conteúdo".

- "Nosso país tem jeito, merece ser respeitado. Nós não precisamos pensar em bomba, ou armamento de grande potência. Nós precisamos de homens de caráter, cidadãos que mereçam pegar uma caneta para escrever 'Brasil' com respeito. Não vejam só o país como o país do petróleo, do Carnaval e do futebol, que pensem que o Brasil, é Brasil. Que coisa linda nossa bandeira!".