Topo

Fim da impunidade, a herança da guerra dos Bálcãs

23/11/2017 11h00

Haia, 23 Nov 2017 (AFP) - Criado em pleno conflito dos Bálcãs, o Tribunal Penal Internacional para a antiga Iugoslávia (TPII) encerra as atividades em dezembro, após dedicar quase 25 anos a ouvir e julgar os responsáveis pelos piores crimes de guerra já cometidos na Europa desde a Segunda Guerra mundial.

Na quarta-feira (22), este tribunal com sede em Haia condenou à prisão perpétua Ratko Mladic, ex-chefe militar dos sérvios da Bósnia, por genocídio, crimes de guerra e crimes contra a humanidade - seu último veredicto em primeira instância.

Segundo os especialistas, a corte deixa um legado impressionante: ajudou a escrever a história do conflito, advertiu os criminosos de guerra de que também podem ir parar no banco dos réus e esboçou os contornos de uma jurisprudência internacional para crimes, como o de genocídio.

"O TPII mostrou que, sim, era possível levar à Justiça personalidades de alto nível responsáveis por crimes" nesta guerra, analisa Diana Goff, advogada internacional e pesquisadora do Instituto Clingendael.

"E proporcionou um projeto atualizado sobre como criar um Tribunal Penal Internacional na era da Pós-Guerra Fria", acrescentou.

Alertada na época pelos massacres, estupros sistemáticos e limpeza étnica registrados em uma Iugoslávia tensionada por rivalidades internas após a morte do marechal Tito, a comunidade internacional decidiu reagir.

Na falta de vontade política para realizar uma intervenção militar, o Conselho de Segurança da ONU adotou em 1993 a resolução 827, que criava um tribunal internacional "para pôr fim a esses crimes e levar as pessoas responsáveis à Justiça".

O TPII foi o primeiro tribunal para crimes de guerra estabelecido pelas Nações Unidas e o primeiro tribunal internacional instalado após os processos de Nuremberg contra os líderes nazistas.

- Expectativas não muito ambiciosas -O tribunal também devia servir de modelo para os tribunais ad hoc similares encarregados de processar os responsáveis pelo genocídio em Ruanda, de 1994, e pelas atrocidades de Serra Leoa.

No começo, porém, "as expectativas não eram muito ambiciosas", admitiu esta semana o procurador do TPII, Serge Brammertz.

Os mais céticos garantiam que não haveria nem acusações, nem condenações, nem penas.

Agora, no momento em que o tribunal se prepara para fechar as portas, em 31 de dezembro, com um balanço de 161 réus processados, celebra-se que tenha instaurado parâmetros para investigar, processar e definir crimes tão complexos quanto o genocídio.

Tornou-se o primeiro tribunal internacional que processou um chefe de Estado no exercício do cargo: o presidente sérvio, Slobodan Milosevic, em 1999.

Mais de 4.000 testemunhas contaram suas histórias ao longo dos anos. E milhões de páginas de arquivo se tornaram uma biblioteca de referência para o futuro.

"A principal herança foram os processos, nos quais centenas de pessoas testemunharam e apresentaram provas irrefutáveis de crimes em massa cometido na antiga Iugoslávia por todos os lados", apontou Stephen Rapp, ex-embaixador itinerante dos Estados Unidos, encarregado de crimes de guerra.

- Falta de reconciliação -O tribunal continua sendo alvo de críticas, porém, por ter falhado em sua mais nobre missão: garantir a reconciliação em um contexto de aumento dos nacionalismos.

"Quase todas as partes no conflito acreditam que estavam excessivamente na mira do TPII e que seus adversários foram menos incomodados", afirma o pesquisador em Direito Penal Internacional Mark Kersten, da Universidade de Toronto.

Uma crítica acolhida pelo procurador, ainda que, para Brammertz, "um processo judicial não possa nunca conseguir a reconciliação", que "deve surgir do interior da própria sociedade".

Exigir de uma corte que consiga a reconciliação, é "exigir muito da Justiça", alega Stephen Rapp, ex-procurador do Tribunal Especial para Serra Leoa.

O TPII ajudou, contudo, a reduzir os apelos por vingança, provocados especialmente "pela falta de Justiça para os crimes da Segunda Guerra Mundial", acrescentou.

"Os sérvios pensavam que 'os croatas são fascistas, pois eles cometeram crimes horríveis contra nós e nunca pagaram'", explicou.

O veredicto contra Ratko Mladic "é uma advertência para os criminosos de que não escaparão da Justiça, mesmo que sejam muito poderosos" e que se levará o tempo necessário, disse na quarta-feira o Alto Comissariado dos Direitos Humanos da ONU, Zeid Ra'ad Al-Hussein, que fez parte da força de proteção da ONU para a ex-Iugoslávia entre 1994 e 1996.

Graças a esse tribunal que será em breve dissolvido, agora é "certo" que os criminosos de guerra não ficarão impunes, celebra David Schwendiman, procurador do Tribunal Especial para Kosovo.