França teve responsabilidade 'avassaladora' no genocídio em Ruanda, aponta relatório
A França "fechou os olhos para a preparação" do genocídio dos tutsis em Ruanda em 1994 e tem uma "responsabilidade avassaladora" nos massacres, de acordo com um relatório de uma comissão de historiadores publicado nesta sexta-feira (26).
O documento, resultado de dois anos de estudo dos arquivos franceses e entregue ao presidente Emmanuel Macron, faz um relato intransigente do envolvimento militar e político de Paris no genocídio, que entre abril e julho de 1994 deixou pelo menos 800.000 mortos, de acordo com a ONU.
No entanto, a comissão encarregada do relatório, presidida pelo historiador Vincent Duclert, aponta que "nada mostra" que a França foi "cúmplice" do genocídio ocorrido em 7 de abril de 1994, um dia após o ataque ao avião do então presidente Juvénal Habyarimana.
Este relatório pode marcar uma virada na relação entre os dois países, marcada há mais de 25 anos pelas violentas controvérsias sobre o papel da França neste extermínio. O Palácio do Eliseu disse que espera ajudar a desenvolver e melhorar as relações com Kigali.
"A França continuará seus esforços na luta contra a impunidade para os responsáveis" pelo genocídio, disse o presidente francês na sexta-feira após a publicação do relatório.
Por meio de um comunicado de seu ministério das Relações Exteriores, Ruanda comemorou a publicação do relatório, que constitui "um passo importante rumo a uma compreensão comum do papel da França" no conflito.
O documento, com mais de 1.000 páginas e baseado em telegramas diplomáticos e notas confidenciais, aponta a responsabilidade crucial do então presidente socialista francês, François Mitterrand (1981-1995).
Mitterrand deu apoio quase "incondicional" ao regime "racista, corrupto e violento" do presidente Juvénal Habyarimana, em face de uma rebelião tutsi com a Frente Patriótica de Ruanda (FPR), liderada por Paul Kagame, atual presidente de Ruanda.
O presidente socialista tinha "uma relação forte, pessoal e direta" com Habyarimana, apontam os 14 historiadores da comissão, entre os quais estão especialistas em Holocausto, massacre de armênios e direito penal internacional.
Essa relação, a que se somava a obsessão de fazer de Ruanda um território de defesa da francofonia, justificou "a entrega de consideráveis quantidades de armas e munições ao regime de Habyarimana, assim como a ampla participação dos militares franceses no treinamento das forças armadas do ruandesas".
França ignorou os alertas
Já em outubro de 1990, data de uma ofensiva da Frente Patriótica de Ruanda, Paris aderiu à causa do regime de Habyarimana.
O país lançou a operação militar Noroît, que deveria proteger os estrangeiros, mas que na verdade foi uma presença "dissuasora" para proteger o regime contra a ofensiva rebelde.
Enquanto instava Habyarimana a democratizar seu regime e negociar com seus oponentes - o que levou aos Acordos de Paz de Arusha em agosto de 1993 - a França ignorou inúmeras advertências de ONGs, diplomatas ou membros dos serviços secretos, em Kigali ou Paris, que alertavam sobre o comportamento extremista do regime e os riscos de "genocídio" dos tutsis.
"É de se perguntar se, no final das contas, as autoridades francesas realmente queriam ouvir uma análise que contradiz a política aplicada em Ruanda", escrevem os historiadores.
O relatório também aponta para a responsabilidade do Estado-Maior Presidencial de Mitterrand (EMP), liderado pelo General Christian Quesnot e seu vice, Coronel (agora General) Jean-Pierre Huchon. Mitterrand faleceu em 1996, mas os dois militares, agora aposentados, ainda estão vivos.
"O EMP tem uma responsabilidade muito importante no estabelecimento de uma hostilidade geral por parte da presidência francesa em relação a FPR", diz o relatório.
O documento denuncia também "a existência de práticas irregulares" deste órgão que contornou todos os canais de aplicação da política francesa no terreno com a aprovação do presidente.
"Nenhum documento mostra a vontade do chefe de estado de sancionar esses soldados ou de interromper suas iniciativas", diz o relatório.
"Demorou a romper" com o governo
Quando o genocídio estourou, a França "demorou a romper" com o governo de Ruanda e continuou a considerar a ameaça da FPR como "o centro de suas preocupações", escrevem os historiadores.
"Reagiu tardiamente" com uma operação militar-humanitária, conhecida como missão Turquesa, entre junho e agosto de 1994, "que salvou muitas vidas, mas não as da grande maioria dos tutsis ruandeses exterminados nas primeiras semanas do genocídio", eles acrescentam.
Seus autores também afirmam que as autoridades francesas "se recusaram a prender" os mentores do genocídio que se refugiaram na área sob controle francês. Este é um dos pontos mais polêmicos da ação francesa em Ruanda.
O genocídio terminou com a vitória da FPR em julho de 1994. Desde então, a França manteve relações tensas com Ruanda, marcadas pelo rompimento das relações diplomáticas em 2006.
Embora as relações entre as duas capitais tenham melhorado com a chegada de Emmanuel Macron ao Palácio do Eliseu, em 2017, o papel de Paris, há muito acusado por Kigali de "cumplicidade" no genocídio, é uma questão explosiva entre as duas nações há mais de um quarto de século.
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