Programa do Ministério da Justiça admite monitorar 'alvo' sem justificativa
O Córtex, uma poderosa ferramenta de inteligência já em uso mantida e gerida pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP), permite monitorar pessoas e veículos nas ruas de diversos municípios e rodovias de todo o país em tempo real sem precisar registrar a motivação da consulta. Isso significa que pessoas podem ser acompanhadas sem prévia análise do Judiciário e fora de inquéritos policiais.
Fontes que falaram sob reserva e dados obtidos por Lei de Acesso à Informação (LAI) indicam que 55 mil usuários civis e militares têm acesso ao sistema em mais de 180 órgãos públicos no país. Procurado, o MJSP reconheceu à Agência Pública que os milhares de usuários civis e militares do sistema não estão obrigados a explicar o motivo da escolha de seus "alvos".
"Não há necessidade de se motivar a consulta [no Córtex], haja vista se tratar de consultas visando atividades de segurança pública (que é o objetivo do sistema). Porém, caso haja suspeita de irregularidades nas consultas, deve haver atuação da auditoria", disse o MJSP.
O MJSP se recusou a dizer quantas pessoas e veículos já foram vigiados por meio do Córtex. Mas, conforme divulgado pelo próprio ministério em resposta a pedido de LAI, um total de 360 mil "alvos" já haviam sido "identificados" entre 2019 e janeiro de 2022.
Entre os milhares de usuários do sistema, há membros das Forças Armadas, policiais civis, militares e federais, agentes penitenciários, integrantes do Ministério Público, bombeiros, guardas civis e até servidores de órgãos de fora do Sistema Único de Segurança Pública (SUSP).
Sem um controle independente ou interno eficaz sobre seu uso no dia a dia, o Córtex abre espaço para vigilância indiscriminada de qualquer cidadão, seja ele um manifestante, um membro de movimento social ou de organizações da sociedade civil, uma pessoa pública ou autoridade, adversários políticos ou mesmo familiares e cônjuges de agentes com acesso ao sistema.
A portaria que regulamenta o uso do Córtex exige que os órgãos com acesso realizem auditorias e enviem relatórios mensais sobre o uso, mas apenas 62 relatórios de auditoria foram registrados em mais de quatro anos de uso intenso do programa, informou o MJSP.
Questionado sobre os poucos relatórios, o MJSP argumentou que "puxou para si a responsabilidade em realizar relatórios de auditoria, sendo que todos os processos de auditoria do órgão estão sendo revisados. Portanto, os 62 relatórios produzidos foram todos no âmbito do MJSP".
Uma dessas auditorias, iniciada em 2023 dentro do MJSP, abandonou a ideia de revisar o uso do sistema durante o governo Bolsonaro.
'Cerco eletrônico'
O sistema de controle e vigilância se vale, entre outras informações, de imagens captadas em tempo real por 35,9 mil câmeras espalhadas por lugares públicos em todo o Brasil: rodovias federais, ruas e avenidas urbanas, entradas e saídas de estádios de futebol, entre outros pontos. O Córtex mantém uma funcionalidade chamada "cerco eletrônico", que serve para monitorar em tempo real veículos por ruas e avenidas pelo país a partir da "leitura" das placas dos carros.
Além disso, "as bases de dados internalizadas no Córtex" incluem outros dados sensíveis, como a Relação Anual de Informações Sociais (Rais), que contém vencimentos salariais de milhões de pessoas empregadas no Brasil; o Cadastro do Sistema Único de Saúde (CADSUS), com dados sigilosos de pacientes do SUS; e informações não especificadas sobre autoridades em geral, qualificadas como Pessoas Expostas Politicamente (PEPs).
Embora seja o criador, coordenador e mantenedor da plataforma, o MJSP disse à reportagem que não cabe à pasta controlar o acesso das consultas dos "alvos" pelos outros órgãos públicos que usam o Córtex. Segundo o próprio ministério, os "alvos" do Córtex podem ser vigiados por tempo indeterminado.
Documentos revelam ainda que o MJSP descobriu pelo menos um caso de usuário que fez 1 milhão de pesquisas no Córtex em um único dia, o que sugere o uso de robôs para a extração de dados sensíveis.
Nesse ponto, outro documento do MJSP registra a suspeita da presença de "laranjas" no sistema, com pessoas sem qualquer ligação com órgãos de segurança pública operando o Córtex. Suspeitas dessa natureza já foram tratadas anteriormente em reportagens do site The Intercept Brasil e da revista Crusoé.
Servidores do MJSP chegaram a discutir a criação de "um alerta quando o policial rastrear o veículo da esposa, considerando os crimes de violência doméstica" no Brasil.
A preocupação é que os 55 mil usuários do sistema possam vigiar em tempo real seu cônjuge sem explicar a necessidade, quem ordenou o monitoramento, qual foi o tempo de sua duração nem o resultado da vigilância.
Entre os documentos do MJSP, aparece a menção à possibilidade de enquadrar esse tipo de uso ilegal do programa, chamada pela equipe do ministério de "rastreio (cônjuge)".
First Mile x Córtex
O MJSP reconheceu à reportagem que, além das imagens de câmeras de rua, o Córtex dá acesso a dados de veículos, cadastros de pessoa física na Receita Federal, cadastros de embarcações e condutores, restrições judiciais e base nacional de carteiras de habilitação.
O monitoramento do trânsito de veículos e pessoas se assemelha às capacidades do programa First Mile, foco de um escândalo na Agência Brasileira de Inteligência (Abin) após a descoberta de que ele consegue acompanhar, em tempo real, usuários de telefones celulares.
O Córtex acompanha veículos e pessoas em vez de telefones, mas o efeito prático é semelhante: os usuários têm a capacidade de saber onde e quando uma pessoa esteve ou por quais ruas e avenidas passou ou costuma passar, bastando reconstituir seu trajeto por meio das câmeras.
Consultas ao sistema podem ser feitas pela placa do carro a partir das milhares de câmeras instaladas em ruas, avenidas e rodovias que conseguem "ler" os caracteres das placas e indicar exatamente por onde o veículo passou ou costuma passar em determinado dia ou hora.
O sistema consegue vigiar pessoas e veículos "com ou sem restrições" 24 horas por dia, sete dias por semana. Ele também tem sido utilizado por órgãos públicos municipais e estaduais que têm firmado Acordos de Cooperação Técnica (ACTs) com o MJSP.
Parcerias com governos e prefeituras
Até março de 2023, o MJSP havia assinado 184 ACTs em todo o país —o que, em muitos casos, deu acesso ao Córtex para guardas civis e servidores de órgãos fora do Sistema Único de Segurança Pública.
Para que as prefeituras, governos estaduais e outros órgãos tenham acesso ao sistema, basta que deem uma "contrapartida" —o acesso a bases de dados que eles já possuem.
ACTs obtidos via LAI pela reportagem mostram que prefeituras alimentam as bases do Córtex com dados diversos, como informações "em tempo real da bilhetagem dos ônibus", incluindo "CPF e Nome [dos passageiros], Linha e Prefixo [dos ônibus], Data e Hora da Leitura [dos cartões de embarque], Latitude e Longitude [dos ônibus em trânsito]".
Herdado do governo de Michel Temer (2016-2018), quando ainda operava pontualmente, o Córtex passou a ser usado em larga escala durante o mandato do ex-presidente Jair Bolsonaro (2019-2022), nas gestões dos ex-ministros da Justiça Sérgio Moro (2019-2020), André Mendonça (2020-2021) e Anderson Torres (2021-2022).
Um total de 108 órgãos municipais e estaduais, como secretarias de Fazenda, de Segurança Pública e de Trânsito, têm acesso ao Córtex por meio de APIs (em inglês, Application Programming Interface), uma funcionalidade que permite a integração de sistemas de informação.
A Pública apurou que, durante o governo Bolsonaro e até março de 2023, também detinham a ferramenta API no Córtex: o setor de inteligência do Exército, o Centro Gestor e Operacional do Sistema de Proteção da Amazônia (Censipam), ligado ao Ministério da Defesa, o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) e o Ministério Público Federal (MPF), entre outros órgãos.
Todos os 49 órgãos que integram o Sistema Brasileiro de Inteligência (Sisbin) também possuem acesso ao Córtex, incluindo a Abin, a Polícia Federal (PF), a Polícia Rodoviária Federal (PRF) e o Gabinete de Segurança Institucional (GSI).
No atual governo federal, o sistema segue em expansão, para formar uma plataforma ainda mais poderosa, denominada Orcrim (Sistema Nacional de Inteligência para Enfrentamento ao Crime Organizado), na qual o Córtex seria inserido como apenas uma das peças.
Esta reportagem foi produzida pela Agência Pública e publicada em parceria com UOL, em versão exclusiva. Leia a reportagem completa em apublica.org.
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