Topo

Eliminar CGU enfraquece combate à corrupção, diz ex-ministro Jorge Hage

Ex-diretor mais longevo do órgão defende sua recriação com estatuto que permita controlar estatais - Renato Costa/Folhapress
Ex-diretor mais longevo do órgão defende sua recriação com estatuto que permita controlar estatais Imagem: Renato Costa/Folhapress

Mariana Schreiber

Em Brasília

03/06/2016 09h10

O ex-ministro da Controladoria-Geral da União (CGU) Jorge Hage, que comandou a pasta de 2006 a 2014, considera que o fim do órgão representa um enfraquecimento no trabalho de combate à corrupção.

A CGU foi extinta no primeiro dia de governo do presidente interino, Michel Temer, que no seu lugar lançou o Ministério da Transparência, Fiscalização e Controle.

Em entrevista a BBC Brasil, Hage disse que essa decisão eliminou uma "marca" anticorrupção já consolidada em todo o Brasil e internacionalmente.

"A ideia era descontinuar uma vez que a CGU é vista como uma marca dos governos anteriores? É esse o problema? O valor do simbólico nessas matérias, como a luta contra a corrupção, é muito importante, não é uma coisa desprezível", observou.

Nesta quinta-feira (2), assumiu o novo ministro da pasta, o jurista Torquato Jardim, ex-presidente do Tribunal Superior Eleitoral, sobre o qual Hage não quis tecer comentários. O primeiro nomeado, Fabiano Silveira, caiu em pouco dias, sob acusação de tentar atrapalhar a operação Lava Jato. Sua demissão, porém, não apaziguou os servidores do órgão, que seguem mobilizados em protestos pela volta da CGU.

A CGU foi criada em 2001 como Corregedoria-Geral da União e, em 2003, após ter suas atribuições ampliadas, ganhou o nome de Controladoria. Como principal órgão nacional de transparência e combate à corrupção, obteve êxito reconhecido na fiscalização de repasses a recursos federais para municípios, com a criação de um modelo de sorteio de cidades a serem fiscalizadas no governo Lula.

Também implementou no governo Dilma a Lei de Acesso à Informação, que facilita a solicitação de dados ao governo. Hage, no entanto, reconhece que as fiscalizações recuaram nos últimos anos, como reflexo dos cortes no orçamento da CGU.

Para o ex-ministro, o grade avanço que precisa ser feito no combate à corrupção é a criação de um estatuto das empresas públicas e mistas que permita ampliar o controle externo sobre estatais como a Petrobras - o que teria que ser aprovado no Congresso.

"É isso que devia estar em pauta, né? E não é. A gente está tendo que discutir se a CGU tem que continuar ou não. É um retrocesso", lamentou.

Leia, abaixo, os principais trechos da entrevista:

BBC Brasil: Por que o senhor considera a transformação da CGU em ministério ruim?

Jorge Hage - Em primeiro lugar porque não está explicado qual a razão disso. Por que mudar o nome? Por que criar um ministério?
Nem mesmo se a gente imaginar, por hipótese, que fosse por razões de economia, isso seria uma contradição, porque quando você cria um ministério, você não reduz a despesa, você aumenta, uma vez que os ministérios têm uma estrutura maior, mais pesada.

Então, se não é por economia, é por quê? A ideia, me parece, que é de descontinuar um símbolo, uma marca, uma bandeira de luta. O nome da CGU se transformou numa marca reconhecida no Brasil inteiro. Você chega nos rincões mais distantes do interior do Brasil, nos pequenos municípios, as pessoas sabem o que é CGU porque nossas equipes de fiscalização iam lá, levaram o nome da CGU no combate à corrupção.

Por outro lado, no plano internacional, a CGU se tornou uma marca conhecida em todos os organismos internacionais de combate à corrupção: Banco Mundial, OCDE, Transparência Internacional, Iaca [Academia Internacional Anti-Corrupção]. De modo que quando apareceu no primeiro ato do governo a extinção da CGU, eu comecei a receber telefonemas e e-mail de contatos nossos nesses organismos perguntando o que houve, por que extinguiram a CGU.

Aliás eu ouvi ontem [terça-feira] a declaração de um ministro do atual governo: a questão do nome foi uma escolha do presidente Temer porque ele queria dar uma marca do governo dele.

A ideia era descontinuar uma vez que a CGU é vista como uma marca dos governos anteriores? É esse o problema? O fato é que há uma revolta geral da categoria dos servidores que têm a CGU incorporada como uma identidade, e o valor do simbólico nessas matérias, como a luta contra a corrupção, é muito importante, não é uma coisa desprezível.

O nome da CGU se transformou numa marca reconhecida no Brasil inteiro. Você chega nos rincões mais distantes do interior do Brasil, nos pequenos municípios, as pessoas sabem o que é CGU porque nossas equipes de fiscalização iam lá, levaram o nome da CGU no combate à corrupção

BBC Brasil - Então na sua opinião o nome da CGU, o fato de ele já estar consolidado nessa área, acabava fortalecendo o trabalho do órgão?

Hage - Sem dúvida. Você eliminar o nome, a marca CGU, é uma forma de enfraquecer o trabalho, é uma forma de reduzir o ânimo e o entusiasmo de toda essa equipe que na verdade não são simples funcionários públicos, são pessoas que dedicam sua vida a uma bandeira, a uma luta.

BBC Brasil - Qual sua avaliação sobre a escolha de Torquato Jardim?

Hage - Não vou fazer nenhuma avaliação sobre o novo ministro. Eu não o conheço, ele sequer tomou posse, não tomou nenhuma atitude ainda que eu possa avaliar.

Sua especialidade é direito eleitoral. É esse o melhor perfil? Fraude eleitoral não é exatamente o que a CGU cobre, certo?

Não, não, de forma alguma. A CGU nem entra nessa área, porque essa área é fora do Poder Executivo. As atribuições da CGU não atingem a área do Judiciário, nem a do Legislativo.

BBC Brasil - Não seria então o perfil mais adequado?

Hage - Não sei. O que eu gostaria de dizer é que é lamentável que num momento em que a gente devia estar debatendo novos avanços, fazer aquilo que ainda falta fazer em matéria de controle, de combate à corrupção, a gente ainda tenha que se preocupar com os riscos de retrocesso nessa caminhada.

Penso que era o momento de a gente discutir, como tenho dito desde o meu discurso de saída da CGU, os novos passos, as novas fases, principalmente chegar a alcançar as estatais, aprovar o estatuto da empresa pública e da sociedade mista, que está previsto na Constituição e nunca saiu. Regulamentar definitivamente o financiamento político de campanhas e partidos. Esses são os passos novos, em matéria de corrupção, que o Brasil precisa enfrentar. É isso que devia estar em pauta, né? E não é. A gente está tendo que discutir se a CGU tem que continuar ou não.

No caso do financiamento político, houve a proibição pelo STF das doações de empresas. Uma mudança grande que ainda vamos ver como vai funcionar na prática neste ano.

Exatamente, mas não houve ainda uma regulamentação clara que estabeleça limites para doações privadas de pessoas físicas, por exemplo, como existe em alguns países e é uma coisa razoável, desde que seja um limite bem baixo. Nada disso tem sido debatido no Brasil, ao lado de outras providências da reforma política que têm que vir junto.

BBC Brasil - O senhor citou a necessidade de criar o estatuto das empresas públicas. Qual a finalidade?

Hage -No artigo 173 da Constituição, está previsto que deverá haver o estatuto da empresa pública e da sociedade mista que é onde se definiriam as regras sobre licitação, contratação, transparência, aplicáveis às empresas estatais.

Por que hoje qual é o dilema? Tem uma lei de licitações, a lei 8.666 de 1993, e todo mundo concorda que não seria razoável submeter as empresas estatais a essas regras de licitações (dos órgão de administração pública), que são extremamente burocráticas e são capazes de paralisar uma empresa, por exemplo, como a Petrobras.

Mas também não é razoável ficar no outro extremo, como se está hoje, sem praticamente nenhuma regra de licitação. Porque o decreto que é aplicável à Petrobras hoje, de 1998, do governo de Fernano Henrique, permite tudo. Permite a Petrobras não fazer licitação de coisa nenhum. Fazer simplesmente convites a empresas que ela queira convidar. É aí, ao meu ver, que está uma das raízes do grande problema da Petrobras. Ou seja, não tem regra de licitação razoável.

O decreto que é aplicável à Petrobras hoje, de 1998, do governo de Fernano Henrique, permite tudo. Permite a Petrobras não fazer licitação de coisa nenhum

Então, o estatuto viria definir, entre outras coisas, que tipo de controle caberia no caso de uma empresa como a Petrobras. Hoje não há nenhum controle preventivo exercido pelos órgãos centrais sobre essas empresas.

Depois que o problema acontece, aí tudo bem, depois a CGU entra com os processo para punir. Eu deixei lá instaurados mais de 30 processos contra diretores da Petrobras e contra empresas corruptoras, mas isso é depois do leite derramado.

BBC Brasil - Por que em tantos anos de governo petista não houve avanço nessa área?

Hage - Como eu acabei de dizer, não há base legal para isso. Ou seja, a CGU, por mais que ela tentasse incluir a Petrobras, por exemplo, não tinha base legal. Então a Petrobras dizia: 'nós estamos aqui nessa exceção'.

A Petrobras diz, por exemplo, que ela não está sujeita a lei das licitações, às normas de lei de acesso à informação, às normas sobre transparência. As despesas da Petrobras não estão no Portal de Transparência da CGU. A Petrobras não está nos sistemas de bancos de dados com que a CGU trabalha para fazer cruzamentos e monitoramento de despesas à distância sem precisar ter equipes em toda a parte, o que é impossível.

A Petrobras não entra no Siaf (Sistema Integrado de Administração Financeira), em nenhum dos sistemas de bancos de dados corporativos. Ela tem todos seus sistemas próprios, completamente fora dos controles dos órgãos centrais. Então esses seriam os próximos passos que teriam que ser construídos no Brasil e onde ainda não chegou.

BBC Brasil - Mas a gente sabe também que o Congresso funciona muito a partir de pressão do Planalto. Aparentemente, não houve nos últimos anos uma articulação do governo dentro do Congresso para aprovar esse estatuto.

Hage - Sim, sem dúvida se pode atribuir parte da culpa também ao governo, sem dúvida nenhuma.

Existem inclusive projetos (de lei para criação) desse estatuto que mencionei. Há mais de um no Congresso, mas não são projetos, ao meu ver, de boa qualidade no sentido de que não estão focados nessa direção que estou mencionando, de avançar nas formas de controle do governo sobre as empresas públicas e mistas.

Eu diria que os últimos governos, em matéria de propor leis importantes nessa área (de transparência e controle) ao Congresso, avançaram muito com a lei de acesso à informação, com a lei de anticorrupção, que permite punições pesadas às empresas, com a lei de conflito de interesse público-privado. Sem dúvida que nessa área de estatuto de empresas públicas é ainda uma lacuna muito séria.

Defensores da Dilma constantemente destacam que ela é honesta. A mídia internacional também tem destacado isso - que não há acusações de corrupção pessoal da presidente. No entanto, a Lava Jato indica que durante seu governo houve um esquema enorme de corrupção na Petrobras. É possível ter acontecido isso sem a conivência do Planalto?

Eu não vou falar em nome do governo como um todo, eu vou falar do meu ponto de vista. Do meu ponto de vista, as formas de se por um fim a esse tipo de problema são na linha do que eu acabei de dizer, é preciso mexer em duas coisas.

Uma na legislação que regulamente as formas de controle no aspecto preventivo do governo sobre as estatais, por um lado, que hoje não existe. E de outro, o que precisa disciplinar no financiamento de partidos e campanhas. Enquanto isso não for resolvido, esse problema, ao meu ver, não tem solução.

BBC Brasil - Então, volto a perguntar: por que será que nem no Congresso nem no governo se andou com essa questão do estatuto das empresas públicas? Será que justamente porque havia um esquema enorme, do qual estavam se beneficiando os partidos, não houve interesse?

Hage - Não sei. Eu não teria condições, honestamente, de fazer essa avaliação, (sobre) o que pesou mais, o que pesou menos. São algumas coisas que estão previstas na Constituição há décadas e nunca saem. Essa é uma delas.

Investiga-se o desvio de recursos da Petrobras para a campanha eleitoral de Dilma por exemplo. No caso do mensalão, defensores do PT falavam que os recursos serviram para caixa 2 de campanha. Existe corrupção menos pior? Roubar em favor de um causa seria menos grave que roubar para enriquecimento pessoal?

Olha, a pergunta está partindo de uma premissa, é que o dinheiro que financia fianças e partidos é roubado. Você está perguntando se roubar para fins políticos é menos grave do que roubar para enriquecimento pessoal. Essa é a pergunta, eu entendo perfeitamente. Aí está partindo da premissa que o dinheiro é roubado.

É que no caso do mensalão se falou abertamente que o dinheiro seria para caixa 2.

É o seguinte: o problema é o financiamento empresarial dos partidos e das campanhas. Enquanto se permite o financiamento empresarial, nenhum partido, em lugar nenhum, vai chegar ao poder, vai ganhar à eleição, sem recorrer a isso (a doações de empresas), é óbvio, doações de campanhas, doações empresariais, que eu sou radicalmente contra. Eu sou radicalmente pelo financiamento público, no máximo complementado por doação de pessoa física, com um teto bem baixo.

Enquanto isso não é assim, o que há é financiamento pesado de empresas para qualquer eleição. Não tem como identificar se o dinheiro que a empesa está lhe dando é originário de fins lícitos ou ilícitos. Isso não existe. Então o que tem que acabar é o financiamento empresarial de campanhas e partidos.

É o seguinte: o problema é o financiamento empresarial dos partidos e das campanhas. Enquanto se permite o financiamento empresarial, nenhum partido, em lugar nenhum, vai chegar ao poder, vai ganhar à eleição, sem recorrer a isso

BBC Brasil - Mas a pergunta que eu fiz é se há corrupção menos grave, se uma coisa é menos pior que a outra. Se roubar para financiar uma causa seria menos pior que para enriquecimento pessoal.

Hage - Mas é como eu lhe disse. Na sua premissa tem uma pergunta que eu estou afastando. Para financiar uma campanha o dinheiro que vem de uma empresa necessariamente é roubado? Não sei. Estou dizendo que dinheiro não tem carimbo.

Digamos, aquele um milhão que a empresa tal deu para o PSDB e o outro milhão que a mesma empresa deu para o PT ou para o PMDB, um tem o carimbo de que foram os lucros legítimos da empresa e o outro é dinheiro de propina ou de superfaturamento? Não existe isso. Tem que acabar é com o financiamento empresarial.

BBC Brasil - Voltando à CGU, antes de o órgão ser transformado em ministério, ele já enfrentava nos últimos anos cortes de orçamento, certo?

Hage - Sim, havia dificuldades orçamentárias, sem dúvida. Eu sempre batalhei pelos aumentos de recursos. Mas isso é algo completamente diferente das preocupações atuais que envolvem a preocupação com a própria continuidade do trabalho, a linha de orientação, a autonomia. Mas quanto a dificuldades materiais, financeiras, sem dúvida que já tínhamos e nós estávamos permanentemente lutando pela ampliação.

BBC Brasil - E o fato de a CGU não ter sido preservada dos cortes poderia indicar uma falta de sensibilidade do governo Dilma com essa área?

Hage - Não sei se falta de sensibilidade do governo com um todo. É claro que nenhum governo é um conjunto monolítico. Dentro do governo há pessoas com pensamentos e prioridades e visões de mundo distintas, de modo que em determinados momentos há uma determinada priorização de uma área ou de outra por quem está no comando da área de orçamento de planejamento. Sempre há uma tensão, uma disputa pelos recursos que são sempre escassos.

BBC Brasil - Mas na prática nos últimos anos estava havendo uma redução das fiscalizações da CGU?

Hage - Chegamos a ter que reduzir fiscalizações que implicavam em deslocamentos, ou seja, as fiscalizações de prefeituras, aquelas dos sorteios, que implicavam em despesas de viagem, de passagem, de gasolina. Nós tivemos que diminuir, os números mostram isso, não há porque negar.

Agora o que nós procuramos fazer foi direcionar os esforços para outras áreas que não dependiam de deslocamentos e de despesas adicionais. Naquela ocasião, por exemplo, eu concentrei boa parte do pessoal em atividades aqui em Brasília, no Rio de Janeiro, com a Petrobras inclusive, porque não implicavam em despesas de custeio adicionais.

Aí fizemos auditorias dos contratos de Pasadena (refinaria comprada com valor supostamente superfaturado), da SBM Offshore (empresa holandesa que teria pagado propinas a funcionários da estatal), e vários outros relacionados à Petrobras por exemplo, utilizando mão de obra que normalmente estaria em outras atividades.