Com duras críticas à invasão do Iraque, relatório oficial britânico ressuscita 'fantasmas' contra Tony Blair
A invasão do Iraque em 2003 se baseou em justificativas legais "insatisfatórias" e inteligência falha, e ocorreu antes do esgotamento de soluções pacíficas e apesar de sinais claros de que não havia planejamento suficiente para estabilizar o país no pós-guerra.
Essas são as conclusões de um aguardado relatório encomendado pelo governo britânico -- quando o premiê era o trabalhista Gordon Brown -- sobre a participação do Reino Unido na intervenção militar que levou à deposição do então presidente Saddam Hussein, em março de 2003.
O chamado relatório Chilcot -- que leva o nome do chefe da investigação, John Chilcot -- levou sete anos para ser concluído e contém duras críticas ao então premiê, Tony Blair, que procurava convencer o público britânico de que Saddam Hussein representava uma ameaça imediata ao Reino Unido, por conta de seu suposto arsenal de armas de destruição em massa.
As armas, porém, nunca existiram, e o relatório pinta Blair como um líder cegamente fiel aos Estados Unidos de George W. Bush que "superestimou sua capacidade de influenciar os EUA" e havia decidido pela mudança de regime no Iraque muito antes de qualquer ameaça concreta.
O relatório cita inclusive um memorando confidencial escrito por Tony Blair a Bush em julho de 2002, poucos meses da invasão, em que o ex-premiê britânico diz: "Com você, qualquer coisa".
Ameaça distante
As acusações são um "fantasma" que nunca deixou de perseguir o ex-premiê britânico. A invasão do Iraque foi a decisão de política externa mais controversa do Reino Unido em meio século, e praticamente ofuscou qualquer outro legado do ex-líder trabalhista em qualquer outra área.
De acordo com o documento, após uma conversa com Bush, Blair havia sugerido uma mudança de regime no Iraque já em dezembro de 2001.
Ele acreditava que a intervenção no Afeganistão, realizada após o 11 de setembro de 2001 com apoio da comunidade internacional, daria uma "conotação positiva à expressão mudança de regime, o que beneficiará nosso argumento sobre o Iraque".
Para John Chilcot, a ameaça de armas de destruição em massa iraquianas "estava certamente presente mas não se justificava". Ele afirmou que opções de desarmamento pacíficas "não haviam sido esgotadas" quando Blair decidiu que deveria intervir no país. "Ação militar não era o último recurso", concluiu a investigação.
Sem apoio da comunidade internacional, a concordância britânica em se aliar aos EUA contra Saddam Hussein minaram os esforços do Conselho de Segurança da ONU, afirma o relatório.
"Uma ação militar no Iraque poderia ter sido necessária em algum momento. Mas em março de 2003 não havia ameaça iminente por parte de Saddam Hussein. A estratégia de contenção poderia ter sido adotada e implementada, a maioria do Conselho de Segurança da ONU apoiava continuar as inspeções da ONU", disse John Chilcot.
Pior: o Reino Unido ignorou "advertências explícitas" de que o planejamento do pós-guerra era "completamente inadequado".
Despreparo
As autoridades britânicas sabiam que o Iraque precisaria de esforços para reconstruir sua infraestrutura e administrar um Estado em que a elite governante havia sido removida e não se conheciam as capacidades administrativas dos funcionários públicos restantes.
As advertências também apontavam claramente para os desafios de segurança em um país suscetível à violência sectária, ao terrorismo e à interferência externa.
Em dezembro de 2002, o Ministério da Defesa britânico não considerava satisfatórios os planos da fase pós-conflito.
"Ao longo de todo o processo de planejamento, o Reino Unido assumiu que os americanos seriam responsáveis por preparar um plano pós-conflito, que as atividades pós-conflito seriam autorizadas pelo Conselho de Segurança da ONU, que haveria um acordo estabelecendo o papel da ONU no pós-conflito, e que parceiros internacionais apareceriam para compartilhar o fardo pós-conflito", disse o documento.
Apesar de estar ciente de que esse cenário não se concretizaria -- os EUA não queriam assumir responsabilidade pelo Iraque e o apoio internacional dificilmente viria sem autorização da ONU --, "em nenhum momento o governo britânico considerou formalmente outras opções, incluindo a possibilidade de condicionar a participação na ação militar a um plano satisfatório pós-conflito".
No relatório, Tony Blair diz que a invasão do Iraque foi decidida de boa fé. "Hoje sabemos que a campanha militar para derrotar Saddam Hussein era relativamente fácil; o difícil era o pós-guerra", disse. "Na época, claro, não podíamos saber disso."
John Chilcot, porém, discorda que fosse impossível antecipar esses problemas. "Os riscos de conflito civil no Iraque, a atuação do Irã em seu próprio interesse, a instabilidade regional e a atividade da Al Qaeda no Iraque estavam explicitamente identificadas antes da invasão."
Consequências
A divulgação do relatório elevou a pressão sobre Blair para que peça desculpas aos críticos da guerra do Iraque. Antes da invasão, uma passeata em Londres contra a intervenção reuniu 750 mil pessoas segundo a polícia -- ou mais de um milhão de acordo com os organizadores.
O ex-premiê e outras pessoas responsáveis pela invasão também podem ser alvo de processos na Justiça, segundo um porta-voz das famílias de 179 militares e civis britânicos mortos no Iraque entre 2003 e 2009.
O atual líder trabalhista, Jeremy Corbyn, que à época fez oposição à intervenção militar, disse que o relatório comprovava que a ação foi "ilegal".
Após a invasão, o Iraque entrou em um período de vácuo de poder e em uma espiral de violência da qual até hoje não saiu.
Civis iraquianos foram os que pagaram o preço mais alto. As estimativas para o número de mortos desde 2003 variam de 100 mil a 600 mil, sendo a primeira uma estimativa conservadora.
Além disso, 179 britânicos e centenas de americanos foram mortos durante a ocupação.
O Iraque continua imerso em conflitos sectários, com um poder central fragmentado e territorialmente ameaçado pelo grupo autodenominado 'Estado Islâmico'.
Por causa da complexidade da tarefa, o relatório Chilcot levou sete anos para ser concluído. Os trabalhos requereram a análise de milhares de documentos e meses de entrevistas para obter evidência oral.
Questões sobre publicar ou não as mensagens privadas de Blair a Bush também adiaram a publicação, assim como o tempo necessário para ouvir as pessoas criticadas no relatório.
O documento final tem 2,6 milhões de palavras e levaria nove dias de intensa atividade para ser lido de cabo a rabo. É mais de três vezes mais longo que a Bíblia, e duas vezes e meia a série completa de Harry Potter.
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