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Tim Vickery: mito da democracia racial no Brasil é propaganda enganosa, mas alivia dureza do mundo

Pelé ergue a taça Jules Rimet ao lado do general Emilio Garrastazu Medici após vencer a Copa do Mundo de 1970 - Ricardo Stuckert/Folha Imagem
Pelé ergue a taça Jules Rimet ao lado do general Emilio Garrastazu Medici após vencer a Copa do Mundo de 1970 Imagem: Ricardo Stuckert/Folha Imagem

Tim Vickery

Colunista da BBC Brasil*

17/10/2016 12h12

Colunista da BBC Brasil revisita o clássico Absolute Beginners e imagina o que ocorreria se o narrador tivesse conseguido chegar ao Brasil.

Todo mundo tem - ou deveria ter - aquele livro que lê e fica relendo, uma fonte confiável de alegria e inspiração.

No meu caso, o livro se chama Absolute Beginners (1959), de Colin MacInnes. Com estilo informal e particular, é uma obra de difícil tradução.

O livro capta aquele momento mágico na vida de uma pessoa ou povo quando, na ausência de pobreza ou guerra, as necessidades básicas da sobrevivência sao conquistadas. Isso deixa espaço para uma pergunta existencial com respostas muito interessantes: como ser?

Absolute Beginners se passa em Londres, em 1958. A história é contada por um narrador de 19 anos, guia do leitor para a subcultura criada à época pela primeira geração de jovens ingleses com um pouco de dinheiro no bolso.

Ansiosos para se livrar de velhos rótulos e limitações, esses jovens criaram a sua própria identidade e o seu próprio mundo. Amavam o jazz moderno dos negros americanos, ficavam alucinados diante de ternos italianos ou cortes franceses de cabelo.

Abraçavam um futuro em que era possível ser, ao mesmo tempo, inglês e cosmopolita. Era o nascimento, muito bem observado por MacInnes, de um movimento de modernismo popular. Aquele admirável mundo novo é descrito com tanta vividez que me arrependo de ter nascido em 1965.

Mas nem tudo são flores. E há um espinho nessa rosa concreta da Londres pós-guerra. Durante os anos 1950, o perfil do país comecou a mudar com o processo de imigração, especialmente do Caribe e do subcontinente indiano. 

A reação veio em 1958, com imigrantes sendo atacados por racistas, primeiro na cidade de Nottingham e depois no bairro londrino de Notting Hill - foi em resposta a este triste evento que logo depois foi lançado o carnaval de Notting Hill, hoje a maior festa de rua da Europa.

Com enorme fidelidade aos fatos, MacInnes relata os acontecimentos em Notting Hill, e o seu livro aplica um teste básico a todos seus personagens: como eles pensam e reagem sobre a questão de raça e imigração. Salvam-se, na visão do livro, aqueles dispostos a acolher e defender os imigrantes - entre eles, claro, o narrador.

Enojado pelas cenas de racismo que testemunha, o narrador esbarra com um conhecido, um diplomata latino-americano.  "Eu perguntei ao Micky (o conhecido) em quais dos países que visitou a cor menos importava, e ele respondeu prontamente: Brasil."

O final do livro descreve a tentativa - fracassada - do narrador de embarcar em um avião rumo ao Brasil.

Após 22 anos vivendo no Brasil, não consigo fugir de uma pergunta fascinante: e se o narrador de Absolute Beginners tivesse conseguido chegar por aqui? O que ia achar?

Aposto que seria uma surpresa negativa. A rigidez das hierarquias e a pobreza iriam lembrá-lo das reclamações de seu pai sobre os anos 1930.  E, no aspecto racial, logo se chocaria com as dificuldades de superar o legado da escravidão.

O livro de Colin MacInnes é uma amostra da força do mito brasileiro da democracia racial, que às vezes parece tão longe da realidade que serve como propaganda enganosa. Nunca encontrei nenhum negro brasileiro que comprasse tal mito - todos são sempre bem cientes das barreiras que têm que enfrentar.

Mesmo assim, não vejo esse mito como um fenômeno totalmente negativo. Pode incluir uma dose considerável de cinismo - é impressionante como a figura do negro brasileiro fica mais integrada na imaginação durante dois momentos históricos bastante autoritários: os sambistas durante o Estado Novo (1937-1945) e o Pelé no auge da ditadura militar, em 1970.

Pode ser que exista valor na construção de uma identidade nacional não-racial. Até se a realidade deixa a desejar, pelo menos a ideia existe como um contraponto a tantos conflitos étnicos no mundo.

Mas pode ser também que o assunto seja tão complexo que começo a soar como um "principiante absoluto".

*Tim Vickery é colunista da BBC Brasil e formado em História e Política pela Universidade de Warwick