Brexit: um 'divórcio' que começa com (muito) mais perguntas que respostas
Nesta quarta-feira, a primeira-ministra do Reino Unido, Theresa May, informará oficialmente à União Europeia a decisão do país de deixar o bloco político-econômico de 28 nações, do qual faz parte desde 1972.
Mas este processo de "divórcio" entre Londres e Bruxelas ainda está marcado por muito mais perguntas que respostas - e está longe de ser simples.
Para início de conversa, o prazo inicial para colocar os planos de "secessão" em prática é de dois anos e poderá ter de ser estendido diante de questões complexas em termos legais e econômicos.
Abaixo, explicamos como as duas partes chegaram até aqui, onde podem chegar e por que os olhos do mundo, e não apenas de europeus, estarão acompanhando atentamente o desenrolar dos acontecimentos do Brexit, como ficou apelidado o processo de saída.
Por que o Brexit?
Em 23 de junho de 2016, houve um plebiscito convocado pelo então primeiro-ministro, David Cameron, para decidir sobre a permanência do Reino Unido na União Europeia.
A realização da consulta popular foi uma promessa feita por Cameron em 2013 como parte de seus esforços por uma vitória de seu partido, o Conservador, nas eleições de dois anos mais tarde - na época, os conservadores governavam em coalizão com os liberais-democratas.
Ao contrário de muitos colegas de legenda, Cameron era pró-UE e fez campanha pela permanência. No entanto, o "não" ao bloco político-econômico contrariou as pesquisas eleitorais e venceu nas urnas, ainda que por uma pequena margem (51.9%).
A taxa de comparecimento às urnas foi de 71,8%, mais alta do que nas eleições que, em 2015, tinham dado a Cameron uma maioria confortável no Parlamento.
O premiê renunciou no dia seguinte.
O lugar de Cameron foi assumido menos de um mês mais tarde pela então ministra do Interior, Theresa May, que se tornou a segunda mulher a ocupar o cargo (Margaret Thatcher tinha sido premiê entre 1979 e 90).
Durante a campanha para o referendo, May fez campanha contra o Brexit, mas não ocupou uma posição de destaque na frente multipartidária e nunca tinha se destacado como eurófila entusiasmada.
E foi ela quem cunhou a frase-símbolo do processo de "divórcio" ao dizer que "Brexit é Brexit" - ou seja, que seu governo não procuraria amenizar demais o processo de saída, apesar da vitória apertada.
E a economia, como fica?
Durante a campanha do plebiscito, um dos principais pontos de quem defendia a permanência na UE era que o Brexit poderia desencadear uma crise econômica - incluindo recessão e um grande aumento de desemprego, sem falar em um aperto da política de austeridade que marcara o primeiro mandato de Cameron (2010-15).
No primeiro dia após o plebiscito, houve realmente um tremor nos mercados. A libra esterlina sofreu sua maior desvalorização em décadas - e ainda permanece em um patamar 15% menor em relação ao dólar do que antes da consulta popular e 10% mais desvalorizada em relação ao euro.
No entanto, as previsões mais catastróficas ainda não se realizaram. Na verdade, estima-se que a economia britânica cresceu 1,8% em 2016, atrás apenas da Alemanha (1,9%) no grupo das sete nações mais industrializadas do mundo - o PIB brasileiro, por exemplo, encolheu 3,8%.
O atual índice de desemprego no Reino Unido é de 4,8%, o menor em 11 anos. E bem inferior à média dos outros 27 países da UE (8,5%).
Mas analistas econômicos nem por isso descartam tormentas futuras. Especialmente se as negociações com a União Europeia terminarem com a saída britânica do Mercado Comum Europeu, que estabelece livre circulação de produtos e serviços entre os países integrantes.
O Reino Unido hoje tem a UE como o destino de 44% de suas exportações e como origem de 53% de suas importações. Um Brexit mais rigoroso teria que ser compensado com a negociação de um ou mais tratados comerciais que evitem choques na economia britânica, por exemplo.
"O maior problema nessa história é o clima de incerteza criado pelo Brexit. O processo é extremamente complexo sob o ponto de vista legal e, até que as negociações evoluam, ninguém sabe que formato essa separação terá", explica à BBC Brasil Andrew Wood, advogado especializado em comércio internacional e que já trabalhou como negociador do governo britânico junto à UE.
"Para se ter uma ideia de quão complicadas essas negociações são, o acordo de livre comércio da UE com o Canadá demorou sete anos para ser finalizado", afirma ele.
"E embora o Reino Unido na teoria seja um parceiro mais simples de se lidar sob o ponto de vista legal, pois atualmente segue a legislação europeia e é um grande exportador para a UE, agora estamos falando de uma separação cujos termos terão que ser aprovados por 27 países com interesses diferentes em um cenário pós-Brexit."
E ainda não está muito claro se multinacionais hoje operando no Reino Unido continuarão no país se perderem o acesso privilegiado ao Mercado Comum Europeu. O mesmo pode se dizer das empresas de serviços financeiros que fizeram de Londres uma gigante do setor nas últimas duas décadas.
Quais são os principais pontos a discutir?
- Comércio: O Reino Unido terá algum acesso ao Mercado Comum Europeu ou tentará um acordo de livre-comércio com o bloco? Como ficará sua posição junto à Organização Mundial do Comércio?
- Segurança: Como funcionará a cooperação com os vizinhos europeus nos esforços contra o crime organizado e ataques extremistas?
- Indenização: Estima-se que a conta do Brexit - o montante que Londres pagará para acertar suas obrigações com o orçamento da UE, bem como bancar a mudança de instituições da UE em solo britânico, por exemplo - poderá chegar ao equivalente a R$ 200 bilhões.
Despedida longa
Para deixar a UE, os britânicos têm de invocar o Artigo 50 do Tratado de Lisboa, que prevê um prazo de dois anos para que Londres e Bruxelas decidam os termos de "divórcio".
Na teoria, então, o processo teria de ser concluído em 2019, quando o governo britânico então teria que aprovar no Parlamento um novo pacote legal que acabasse com a preponderância da legislação europeia sobre a britânica.
O processo, porém, esbarra em dois problemas cruciais.
O primeiro: o artigo 50, um plano para que qualquer país deixe a UE, entrou em vigor apenas em 2009. E seu texto é simples, com apenas cinco parágrafos, dizendo apenas que um país insatisfeito com o bloco precisa notificar o Conselho Europeu e que há dois anos para negociar a saída, a não ser que, por unanimidade, britânicos e todos os países da UE concordem em estender o prazo.
O segundo ponto? Desde a criação formal da UE em 1992, nenhum país tinha pedido para sair.
Ou seja: o processo real pode levar ainda mais tempo, com alguns analistas prevendo até seis anos para a concretização do Brexit. Isso porque pelo menos 20 dos 27 países da UE (e pelo menos 65% da população do bloco) precisam dar o aval para qualquer acordo de saída.
"Dois anos certamente não serão suficientes para negociar o relacionamento entre o Reino Unido e UE. Temos pela frente uma série de negociações complexas e que vão requerer uma série de acordos de transição", alertou esta semana um dos mais graduados diplomatas britânicos, Simon Fraser.
Enquanto isso não acontece, o Reino Unido permanece cumprindo a legislação e os acordos com o bloco, mas sem tomar parte no processo decisório.
Negócios à parte?
Com poucas exceções, as grandes empresas britânicas se declararam contra o Brexit, sob o argumento de que a permanência na UE tornaria mais fácil mover dinheiro, pessoas e produtos ao redor do mundo.
Agora, há a preocupação em quantos empregos podem migrar para outros centros financeiros europeus.
Recentemente, por exemplo, a BBC noticiou que o banco HSBC poderá mover mil postos para Paris.
Ao mesmo tempo, exportadores relatam aumento de demanda por causa da queda do valor da libra.
Pontos de impasse
Em janeiro, May declarou que o país não permanecerá no MCE, uma concessão que automaticamente forçaria o Reino Unido a permitir liberdade de movimento de países cidadãos da UE, um ponto contencioso em um país em que a imigração se transformou em uma questão eleitoral mais importante que a segurança nacional, pelo menos de acordo com pesquisas eleitorais.
Os dois lados têm uma balança comercial significativa e querem continuar fazendo negócios após o Brexit. Os britânicos querem o maior acesso possível ao MCE e May ofereceu a chance de uma união aduaneira, em que os países concordam em não taxar produtos e serviços alheios e adotam tarifas comuns para produtos vindos de locações externa.
Atualmente, o Reino Unido faz parte de uma união alfandegária com o bloco, mas isso impede que o país busque acordos independentes com outras nações. E em diversas ocasiões, líderes europeus deixaram claro sua aversão a uma situação em que Londres deixe a mesa de negociações com o que se pode chamar de "melhor de dois mundos".
E a principal razão é simples: sentimentos anti-UE não se limitam a Londres, outros países do bloco enfrentam o crescimento da popularidade de políticos pedindo consultas populares - na França, por exemplo, isso é representado por Marine Le Pen, cuja plataforma de extrema-direita poderá levá-la ao menos ao segundo turno do pleito presidencial, em maio.
Uma saída "honrosa" para os britânicos, para alguns especialistas poderia alimentar mais movimentos de rompimento. Sem falar que chefes dos 27 estados europeus precisam também garantir os direitos de seus cidadãos vivendo no Reino Unido - estimados entre 2,9 milhões e 3,3 milhões de pessoas, contra 1,2 milhão de britânicos na UE.
O precedente de Brexit "light" existe: a UE tem acordos preferenciais com Noruega, Islândia e Suíça, que permitem acesso ao mercado comum, mas também exigem reciprocidade na movimentação de bens, serviços e pessoas.
E se não houver acordo?
Theresa May disse recentemente que deixar a União Europeia sem um acordo pós-Brexit "é melhor que sair com um mau negócio". Só que a ausência de um tratado comercial poderia forçar o Reino Unido a ter que mediar suas operações com a UE por meio da OMC (Organização Mundial do Comércio).
Especialistas estão divididos nessa questão e veem pouca vontade política da UE em iniciar uma guerra de tarifas, mas outros preveem um aumento de custos para empresas britânicas comprando e vendendo no exterior. E o perigo de que a falta de acesso ao mercado comum possa fazer com que Londres deixe de ser um centro financeiro global.
"Não acredito que seja do interesse dos dois lados criar uma situação aguerrida, já que há interesses comerciais substanciais em jogo. Nenhuma das partes vai realmente bater na mesa. O que a gente precisa lembrar aqui é o Brexit não é apenas uma questão econômicas, mas também política. Estamos em ano de eleição na França e na Alemanha e isso poderá ter influência nas negociações", completa Hood.
Imigração
O governo britânico até agora se recusou a dar garantias firmes sobre como fica o status legal de cidadãos da UE no país, dizendo que precisa de reciprocidade do bloco. A única garantia é que europeus com direito de residência permanente no Reino Unido, o que é dado depois que vivem no país por cinco anos, poderão permanecer.
O restante dependerá das negociações do Brexit. As duas situações afetam cidadãos brasileiros - grande parte dos expatriados do país vivendo nas fronteiras britânicas também tem cidadania de algum país da UE, como Portugal, Itália e Espanha.
Em números gerais, no entanto, a migração de cidadãos da UE para o Reino Unido é apenas marginalmente maior que a geral - os números mais recentes são dos nove primeiros meses de 2016, em que 165 mil cidadãos da UE entraram no país, contra 164 mil de outros países.
Em caso de arrependimento...
O Tratado de Lisboa prevê a possibilidade de um país "fujão" voltar a fazer parte da EU.
Mas caso o Reino Unido se arrependa da vida pós-Brexit, o processo de retorno não será simples nem automático: o país teria que se candidatar como qualquer outro e precisaria voto unânime dos 27 membros do bloco.
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