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Quais são os países que alimentam a Venezuela em crise?

Venezuelana protesta: "Não tem comida" - Frederico Parra/AFP
Venezuelana protesta: "Não tem comida" Imagem: Frederico Parra/AFP

28/05/2017 15h35

"Só o que nos falta agora é ter o documento de identidade mexicano", brinca Gladis.

Os armários de sua cozinha, no bairro operário de Caia, oeste da capital Caracas, poderia facilmente ser de um morador de Veracruz, Guadalajara ou da Cidade do México.

Ela acaba de receber a caixa Clap e em todos os produtos é possível ler a mesma coisa: "Feito no México".

Os Comitês Locais de Abastecimento e Produção (Clap) são a solução que o governo da Venezuela encontrou há um ano para combater a escassez de alimentos - a administração de Nicolás Maduro culpa a "guerra econômica" e as empresas privadas de distribuição pelo problema.

As bolsas e caixas CLAP consistem na entrega de alimentos a domicílio a um preço justo. No momento, elas solucionam mais o abastecimento, que é desigual e muito politizado - segundo as críticas da oposição - do que a produção.

A produção nacional de milho branco, o principal ingrediente no preparo das arepas, o alimento típico do país, responde por apenas 31% do consumo interno, segundo dados da Fedeagro (Associação de Produtores Agropecuários da Venezuela).

No caso do arroz, outro produto básico na dieta dos venezuelanos, a oferta atende a 37% da demanda.

Por isso, é preciso recorrer à importação para garantir o necessário para a população.

México

"Essa massa é péssima", reclama Gladis sobre a farinha de milho mexicana, que vem na caixa. Ela prefere a venezuelana, que é melhor para fazer as arepas.

Gladis teve que depositar 10.500 bolívares (cerca de US$ 14,5 dólares ou R$ 47,3) para receber a caixa, que contém:

  • 6 pacotes de espaguete
  • 2 pacotes de farinha de milho
  • 4 pacotes de massa em forma de tubo
  • 2 pacotes de massa em forma de espiral
  • 4 pacotes de leite em pó
  • 2 garrafas de azeite
  • 1 pacote de açúcar
  • 1 caixa de molho de tomate
  • 1 pote de maionese
  • 1 pacote de feijão preto
  • 1 pacote de lentilhas
  • 5 latas de atum em conserva
  • 3 pacotes de arroz

O preço é barato para os padrões venezuelanos. Ainda mais se considerar que o pacote de farinha de milho mais popular na Venezuela pode custar até 6 mil bolívares no mercado paralelo, praticamente a única alternativa para adquirir um produto tão disputado.

Gladis se lembra com nostalgia dos tempos em que ela e o marido usavam seus salários - ele agora está desempregado - para comprar o que queriam no supermercado.

Ela garante que perdeu 20 quilos em seis meses e que passa muitas noites sem jantar. E reclama de uma dieta cada vez mais "monótona". Os altos preços fazem com que fique muito difícil conseguir comprar proteína animal - frango, carne, peixe, ovos.

Em sua geladeira, há apenas um pouco de carne picada que sua filha trouxe do interior. Nada mais.

Com isso e com o conteúdo da caixa - que se resume a carboidratos - ela deverá sobreviver pelas próximas semanas. Fazia um mês e meio que as caixas Clap não chegavam à sua casa - porque a distribuição delas é variável.

28.mai.2017 - Geladeira de Gladis revela dificuldades dos moradores da Venezuela para conseguir alimentos - BBC - BBC
Geladeira de Gladis revela dificuldades dos moradores da Venezuela para conseguir alimentos
Imagem: BBC

Gladis me disse que, para os quatro da casa, irá preparar um macarrão com uma lata de atum e molho de tomate. A caixa já vai começando a esvaziar.

Queda nas importações

A Venezuela sempre foi um país que tradicionalmente importou a maior parte de seus produtos, incluindo alimentos.

Isso só era possível por causa dos altos dividendos do petróleo - montante que, nos últimos anos, despencou. Com isso, as importações também tiveram que ser reduzidas.

Em 2014, as compras externas totalizaram US$ 39,5 bilhões. No ano seguinte, caíram para US$ 28,6 bilhões. E, no ano passado, US$ 14,7 bilhões.

Ou seja, em dois anos, a queda registrada chegou a mais de 60%, de acordo com dados do Centro de Comércio Internacional, que compila o valor de todas as importações do mundo.

As causas são, principalmente, a baixa produção de petróleo e a forte queda no preço da matéria-prima.

A isso soma-se uma queda da produção interna do setor privado, que não recebe mais dólares para importar suas matérias-primas.

A combinação desses fatores provocou uma enorme escassez de alimentos na Venezuela, além de torná-los mais caros.

Todos os países da região têm percebido o quanto deixaram de fazer negócio com a Venezuela.

O México, de onde vêm todos os produtos da caixa de Gladis, viu o valor de suas exportações para os venezuelanos cair de US$ 1,5 bilhão a US$ 600 milhões de 2014 a 2016.

Mas há ramos da indústria alimentícia que têm se beneficiado com a crise na Venezuela.

O setor de produtos lácteos do México é um deles.

No ano passado, a Venezuela importou US$ 5 milhões em laticínios mexicanos, contra US$ 380 mil em 2014.

Massas também ganharam força na balança comercial entre os dois países. Se há alguns anos esse mercado era praticamente inexistente, os venezuelanos importam agora cerca de US$ 8 milhões do México.

Esforço privado

Nos supermercados, onde cada vez há menos produtos básicos a preço regulado, porque esses vão direto para as Clap, é possível ver muita massa estrangeira, algo normal para países que não produzem trigo.

Um pacote de espaguete da marca brasileira Galo custa 3,6 mil bolívares. Um pacote de meio quilo de uma marca italiana custa 4,2 mil.

O salário mínimo na Venezuela atualmente é 65 mil bolívares mais um bônus de alimentação. São preços elevados para produtos importados com dólar livre e que, portanto, são vendidos também com preços baseados na moeda americana.

"Em 2016, o setor privado não recebeu praticamente nenhum dólar; eles estão trabalhando com esforço próprio", afirmou recentemente Miguel Pérez Abad, ex-ministro da Indústria e atual presidente do banco estatal Bicentenário.

Os preços ainda são mais altos no mercado paralelo para produtos básicos que são impossíveis de serem encontrados no supermercado, como arroz e açúcar. O leite e o pão ficam semanas sem aparecer nas prateleiras.

Benefício na crise

Nesse contexto, a indústria alimentícia do México não é a única beneficiada.

A Colômbia tem aumentado sua exportação de cana de açúcar para os venezuelanos, assim como a Costa Rica com a massa, e o Brasil com produtos como molhos, sucos de frutas, arroz, massa e farinha de trigo.

Até os Estados Unidos, frequentemente vilificados por Maduro, têm elevado suas vendas de arroz e massa no último ano para a Venezuela.

Na realidade, são números pequenos para a economia de um país, mas significativos diante da drástica redução de importações da Venezuela. E servem também como demonstrativo da queda de produção da indústria alimentícia.

A Fedeagro classifica o atual momento do setor como de "recessão agrícola" e de "crise agroalimentícia".

Pérez Abad admite que a Venezuela "atravessa uma das crises econômicas mais fortes dos últimos 50 anos". E garante que, em 2017, a meta é expandir a produção.

Enquanto ela não chega, empresas do setor alimentício de outros países da região aproveitam a crise venezuelana.