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'Usadas, abusadas e violadas': as mulheres exploradas na Síria em troca de ajuda humanitária

James Landale e Vinnie O'Dowd - BBC News

27/02/2018 12h15

Mulheres foram exploradas sexualmente por homens que prestam serviços e atuam em nome das Nações Unidas e de outras organizações internacionais de caridade na Síria.

Relatos coletados pela BBC revelam que comida e carona são ofertadas em troca de sexo na região. E, apesar de alertas de abuso feitos há três anos, casos similares continuam sendo relatados no sul do país, segundo relatório lançado neste ano com base em dados reunidos em 2017.

As agências ligadas à ONU e instituições de caridade mencionadas afirmam que não toleram nenhum tipo de violência e se defendem dizendo não estar cientes de casos concretos de abusos envolvendo suas respectivas organizações parceiras na região.

Segundo os relatos feitos à BBC, casos de exploração sexual são tão recorrentes que algumas mulheres sírias estão se recusando a ir aos centros de distribuição de suprimentos. Temem que as pessoas suponham que elas estão indo ao local para oferecer o próprio corpo e, assim, poder voltar para casa com mantimentos e remédios.

Uma pessoa que trabalha na região afirma que algumas organizações estão simplesmente fechando os olhos para os casos de abusos e exploração sexual porque a única forma de levar ajuda às áreas mais perigosas da Síria é por meio de autoridades locais e de terceiros.

Nas áreas onde o conflito é mais intenso, funcionários das organizações não governamentais internacionais dificilmente têm acesso.

O Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA), organismo da ONU responsável por questões populacionais, produziu um relatório para avaliar a violência de gênero na região em 2017 e concluiu que a assistência humanitária está sendo ofertada em troca de sexo em várias regiões da Síria.

O relatório intitulado Voices from Syria 2018 (Vozes da Síria 2018, em português) afirma que "há exemplos de mulheres e adolescentes se casando oficialmente por um curto período de tempo para oferecer 'serviços sexuais' em troca de refeições, de agentes pedindo os números de telefone de mulheres e garotas, de ofertas de carona até em casa em troca de passar a noite com elas".

O documento diz ainda que as mulheres sem um protetor do sexo masculino, como as viúvas e divorciadas, ou as que foram forçadas a deixarem suas casas estão mais vulneráveis à exploração sexual.

Denúncias antigas

Os primeiros casos foram denunciados há três anos.

Danielle Spencer trabalhava como consultora para assuntos humanitários para uma instituição de caridade quando ouviu relatos de um grupo de mulheres sírias em um campo de refugiados na Jordânia em março de 2015.

Elas contaram a Spencer que homens que trabalhavam para o governo local de áreas como Dara'a e Quneitra condicionaram ajuda humanitária a sexo.

"Eles estavam retendo ajuda que havia sido entregue a eles e usando essas mulheres para sexo", diz Spencer. "Algumas haviam vivenciado isso, outras estavam desesperadas", diz ela.

Spencer se lembra de uma mulher que não conseguiu conter as lágrimas durante a conversa. "Ela estava arrasada com o que aconteceu", conta.

Para a profissional, mulheres e crianças precisam de proteção quando estão tentando receber comida, sabão e itens básicos para viver.

"A última coisa que você precisa é de um homem em quem você deveria confiar e que deveria lhe ajudar te pedindo para fazer sexo com ele e retendo todos os itens que deveriam ser entregues a você", afirma.

Spencer é enfática ao dizer que essa troca de ajuda por sexo "era tão endêmica que as mulheres eram estigmatizadas". "Estava subentendido que, ao ir aos centros de distribuição, você deveria se submeter a algum tipo de ato sexual para ganhar algo."

Em junho de 2015, o Comitê Internacional de Resgate (IRC, na sigla em inglês) fez uma pesquisa com 190 mulheres em Dara'a e Quneitra. O relatório produzido pela entidade indicou que 40% das que foram vítimas de violência sexual relataram que a experiência aconteceu em um centro de distribuição de ajuda humanitária, no momento em que elas foram buscar suprimentos.

A IRC, por meio de um porta-voz, informou que a avaliação concluiu que "a violência sexual era uma preocupação generalizada e incluía diferentes tipos de serviços ofertados no sul da Síria, entre eles a distribuição de ajuda humanitária".

A BBC teve acesso a pelo menos dois relatórios com relatos e alertas sobre violência sexual em centros de distribuição de ajuda que foram apresentados em um encontro de agências da ONU e instituições de caridade realizado na Jordânia em 15 de julho de 2015. O evento foi organizado pelo Fundo de População das Nações Unidas.

Como resultado da reunião, algumas organizações reforçaram os procedimentos.

A IRC disse que, para deixar as próprias operações mais seguras, lançou programas e sistemas ara proteger mulheres no sul da Síria. "Esses programas continuam sendo financiados por uma série de doadores, entre eles o Departamento de Desenvolvimento Internacional do Reino Unido."

Abusos ignorados por anos

A organização Care, com sede nos EUA e atuação em 94 países, diz que ampliou a fiscalização da equipe na Síria, criando mecanismos para apresentar reclamações. Também deixou de usar governos locais para distribuir ajuda humanitária.

Essa organização também diz ter pedido às agências da ONU para que pudesse fazer uma pesquisa mais detalhada e desenvolver novos mecanismos para coletar denúncias. Mas, segundo a própria entidade, a Care não conseguiu autorização para conduzir estudos nos campos de refugiados da Jordânia.

Spencer argumenta que as autoridades fecharam os olhos para as denúncias de forma que a ajuda humanitária continuasse sendo distribuída na Síria.

"Exploração sexual e abuso de mulheres e garotas têm sido ignorados. Sabe-se (de casos), mas eles têm sido ignorados por sete anos", diz Spencer.

Para ela, o Sistema ONU "decidiu sacrificar o corpo de mulheres". "Em algum lugar, foi tomada uma decisão de que é 'ok' continuar usando, abusando e violando mulheres para que a ajuda humanitária chegue a um grupo maior de pessoas".

Outra fonte ouvida pela BBC participou do encontro de julho de 2015 como representante de uma das agências da ONU. Essa pessoa afirmou que há relatos críveis de exploração sexual e abuso na distribuição de ajuda humanitária nas fronteiras. "E a ONU não fez nenhum movimento sério para resolver ou acabar com o problema."

O que dizem as organizações

O Fundo de População das Nações Unidas disse, por meio de um porta-voz, que ouviu relatos de possíveis abusos e exploração de mulheres sírias no sul do país por meio da Care. Informou, porém, que não recebeu nenhuma denúncia das duas organizações com quem trabalha na região, e que não faz parcerias com governos locais para adotar seus projetos.

A Unicef, por sua vez, confirmou que estava presente no encontro de 2015 e informou que avaliou todos os parceiros e contratados na Síria. Mas esclareceu que não sabe de nenhuma acusação contra os parceiros da Unicef até o momento. O órgão admitiu que a exploração sexual é um sério risco na Síria, e disse que criou um mecanismo para coletar reclamações da comunidade local e está dando mais treinamento aos parceiros locais.

O Departamento de Desenvolvimento Internacional do Reino Unido, por sua vez, disse que não foi informado de nenhum caso envolvendo organizações britânicas.

"Já existem formas de identificar o problema de abuso e exploração. Nossos parceiros na Síria usam terceiros para monitorar e averiguar a distribuição de ajuda britânica na Síria", informou. Segundo o órgão, qualquer situação que ocorra de forma sistemática deveria ser identificada por esses monitores e informada ao órgão.

A Oxfam, uma das maiores instituições de caridade do mundo - e que está sendo acusada de acobertar denúncias de abuso sexual em diferentes países -, informou que não trabalhava com governos locais na Síria em 2015 e que continua não os tendo como parceiro hoje.

"Nosso trabalho na Síria é principalmente distribuir equipamentos em larga escala para abastecer com água as comunidades, em vez de focar em dar ajuda humanitária a indivíduos", informou a entidade, que diz ainda não ter recebido nenhum tipo de denúncia relacionada a abuso sexual no país asiático em 2015. "Temos política de tolerância zero."

O Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados, por sua vez, informou que está ciente dos relatos feitos no passado, mas que não havia informação suficiente para identificar e agir contra qualquer pessoa ou organização.

No entanto, informou que encomendou uma nova pesquisa para investigar a situação. E também que adotou esforços adicionais para fortalecer as medidas preventivas, com mais treinamento dos parceiros locais e processos para informar qualquer irregularidade.