O que se sabe até agora sobre os supostos passaportes brasileiros dos líderes norte-coreanos Kim Jong-un e Kim Jong-il
O número do suposto passaporte brasileiro que teria sido usado pelo líder norte-coreano Kim Jong-un para pedir vistos e viajar por países ocidentais consta no sistema da Polícia Federal do Brasil como um documento regularmente emitido pelo Ministério das Relações Exteriores, segundo apurou a BBC Brasil com uma fonte da corporação. Imagens do suposto documento foram divulgadas nesta terça-feira em uma reportagem da agência Reuters.
Oficialmente, após a publicação dessa reportagem, a assessoria de imprensa da PF negou a informação. "Não há registros de tais documentos de viagem nos sistemas da Polícia Federal", diz a nota.
Nas fotos, em preto e branco, é possível ver um retrato do líder coreano ao lado do nome Josef Pwag, que seria um cidadão brasileiro nascido em São Paulo em primeiro de fevereiro de 1983. Há também informações sobre data e local de expedição, prazo de validade e a assinatura do então conselheiro da Embaixada do Brasil em Praga, Antônio José Maria de Souza e Silva.
De acordo com a fonte da PF ouvida pela BBC, um documento de passaporte com o número CE 375366 foi efetivamente emitido, e, no sistema da Polícia Federal, órgão responsável pela emissão desse tipo de documento no país, Josef Pwag aparece como o titular. A emissão se deu em Praga, na República Tcheca, em 26 de fevereiro de 1996, e a validade era de 10 anos.
O nome, local e data de nascimento, bem como as informações de filiação que constam no sistema da polícia como sendo relacionados a esse passaporte são exatamente os mesmos da imagem divulgada pela Reuters.
No entanto, ainda não é possível afirmar se o documento foi adulterado ou mesmo emitido com a foto de Kim Jong-un ou com a de outra pessoa.
Trata-se de um passaporte antigo, emitido há mais de 20 anos, época em que os sistemas não eram completamente informatizados e que os itens de segurança eram bastante diferentes dos adotados pelas autoridades hoje.
Um passaporte anterior, também brasileiro, teria sido emitido no início dos anos 1990 em nome do mesmo Josef Pwag. Associado a esse primeiro passaporte de Pwag, que tinha o número CD721247, consta uma observação assinalada como "suspeita de violar imigração japonesa" com data de 1995. Não há, contudo, detalhes de que tipo de crime imigratório supostamente teria sido cometido, tampouco se a polícia brasileira investigou o caso.
Segundo a Reuters, além do líder coreano, o pai dele, Kim Jong-il, também usou um passaporte brasileiro com o nome de Ijong Tchoi e com carimbo da Embaixada do Brasil em Praga. Quatro fontes de segurança europeias consultadas pela Reuters confirmaram que os dois passaportes brasileiros com fotos dos Kim com os nomes de Josef Pwag e Ijong Tchoi foram utilizados para solicitar vistos em ao menos dois países ocidentais. A agência, contudo, não informa se os vistos foram obtidos.
O Ministério das Relações Exteriores (MRE) do Brasil não confirma nem nega a autenticidade dos documentos e também não diz se houve outros passaportes emitidos em nome de Josef Pwag e Ijong Tchoi. Limita-se a dizer que "está apurando os fatos a respeito do caso". Consultada, a Reuters afirma manter todas as informações publicadas e não ter nada a acrescentar sobre o assunto.
A história, que gerou enorme repercussão mundial, também deixou uma série de perguntas sem respostas. Veja o que já se sabe e o que ainda deve ser esclarecido no caso.
Os passaportes são autênticos?
O passaporte em nome de Josef Pwag consta no sistema da PF, mas isso não elimina a possibilidade de fraude no documento.
Segundo a BBC apurou, nos anos 1990, alguns dos critérios adotados pelo Itamaraty para emissão de passaportes eram diferentes dos adotados pela Polícia Federal. As embaixadas e consulados são os órgãos responsáveis por emitir esse tipo de documento no exterior, enquanto no Brasil a emissão fica a cargo da autoridade policial. Além disso, documentos daquela época tinham menos dispositivos de segurança. Outro ponto é que somente depois de emitir os documentos é que o MRE comunica a PF.
Não se sabe, por exemplo, quais documentos foram apresentados para a emissão dos passaportes. Podem ter sido usados documentos falsos, como certidão de nascimento ou carteira de identidade, para confeccionar um passaporte legítimo com a foto de Kim e os dados de Pwag. Há ainda a chance de a foto do documento ter sido trocada posteriormente, isto é, depois que o passaporte foi emitido, para que o norte-coreano pudesse viajar com outra identidade.
Policiais ouvidos pela BBC Brasil dizem que não se pode descartar também a hipótese de crime na unidade diplomática que emitiu o passaporte, tampouco a possibilidade de ter sido feita uma montagem para espalhar a informação, nesse caso falsa, de que Kim usaria um passaporte brasileiro.
No caso do documento que teria sido usado pelo pai do líder coreano, chama atenção o fato de o campo "filiação" estar completamente em branco.
A Reuters diz ter tido acesso apenas a cópias dos documentos, de forma que não foi capaz de discernir se foram adulteradas. Disse ainda que uma das fontes consultadas se recusou a descrever como as cópias dos passaportes foram obtidas, citando regras de sigilo. Mas alega que o documento foi usado para pedir vistos.
O Itamaraty não respondeu ao questionamento da BBC Brasil sobre onde e por quanto tempo essa documentação fica armazenada nas representações diplomáticas. Tampouco confirmou a autenticidade do documento. Disse apenas que está investigando o caso.
Até o momento, tampouco se sabe se de fato Josef Pwag e Ijong Tchoi existem e se são cidadãos brasileiros.
Por que o passaporte foi emitido em Praga?
Ainda falta esclarecer por que o documento foi confeccionado na República Checa - e também quem emitiu o passaporte anterior de Josef Pwag.
A BBC Brasil identificou uma empresa, com sede na República Checa, na qual aparecem como sócios Ijong Tchoi e Ricardo Pwag, ao lado de outras duas pessoas. Ricardo seria o "pai" do titular do passaporte supostamente usado pelo líder coreano. E Tchoi é o nome no documento que Kim Jong-il teria usado. A empresa foi aberta em 1995, um ano antes de o documento ter sido emitido.
Além disso, Antonio de Souza e Silva, autoridade consular cujo nome aparece no documento, trabalhou em Praga entre 1993 e 1997.
Mas não está claro, por exemplo, se ele se envolveu diretamente na confecção do documento ou se a assinatura de Souza e Silva constar no passaporte como uma mera formalidade pelo fato de, à época, ele ser autoridade na embaixada - caso em que outros servidores seriam responsáveis pela emissão do passaporte.
Procurado, Souza e Silva não respondeu aos questionamentos da BBC Brasil e pediu que a reportagem procurasse a assessoria de imprensa do Itamaraty em Brasília. Atualmente, ele é embaixador do Brasil em Yangon, Mianmar.
Fontes ouvidas pela BBC Brasil afirmaram que, diferentemente de hoje, os documentos necessários para a obtenção de passaportes nos anos 1990 não eram escaneados e enviados para o sistema. Cópias físicas deles permaneciam, assim, guardadas nos arquivos de cada representação diplomática mesmo depois de os documentos expirarem. Não se sabe, contudo, se essas cópias - caso existam - ainda estão arquivadas na Embaixada do Brasil em Praga.
As fotos são verdadeiras?
Os passaportes de Tjong Tchoi e Josef Pwag têm estampadas as fotos de Kim Jong-il e Kim Jong-un, respectivamente, conforme afirma a Reuters.
Segundo a agência, tecnologia de reconhecimento facial confirma que as fotos que constam nas cópias dos passaportes são de fato do líder norte-coreano e do pai dele.
No entanto, ainda que as fotos das imagens divulgadas sejam verdadeiras, elas podem não estar estampados no passaporte original ou podem ter sido adulteradas.
Os Kim viajaram com esses passaportes?
Segundo a Reuters, os documentos podem ter sido usados pelos Kim para visitar Brasil, Japão e Hong Kong.
O jornal japonês Yomiuri Shimbun publicou em 2011 que Jong-un visitou a Disneylândia em Tóquio quando criança usando um passaporte brasileiro em 1991 - antes da data de emissão impressa nos dois passaportes brasileiros vistos pela Reuters.
Fontes consultadas pela BBC afirmaram não haver registro de entrada e saída no Brasil nos números dos passaportes supostamente usados pelos Kim no STI (Sistema de Tráfego Informatizado) - mas isso não significa, necessariamente, que eles não foram utilizados - uma vez que a base só registra entradas e saídas do Brasil. Como o passaporte foi emitido nos anos 1990, existe a possibilidade de o registro ter sido feito à mão. Além disso, o titular pode ter feito viagens a outros países que não o Brasil, e o registro disso constaria não na base da PF brasileira, mas sim nos registros dos países em que teriam entrado.
Portanto, não está claro se as viagens foram feitas.
Por que um passaporte brasileiro?
Entre as muitas especulações sobre a vida dos Kim, acredita-se que a família que governa a Coreia do Norte tenha usado documentos de viagem obtidos de forma irregular para sair do país. Sobre Jong-un, acredita-se que ele tenha frequentado uma escola internacional de Berna, na Suíça, onde fingia ser filho de um motorista de uma embaixada.
Não há, contudo, nenhuma evidência de que isso tenha alguma conexão com o caso dos passaportes brasileiros.
O MRE não respondeu também por que pode ter sido emitido um novo passaporte na República Checa a um titular suspeito de violar a imigração japonesa.
O fato de essa emissão ter supostamente ocorrido em solo checo faz lembrar os elos - tanto econômicos quanto de cooperação bilateral - entre a antiga Checoslováquia e a Coreia do Norte durante a Guerra Fria.
Além disso, vale lembrar que existe uma antiga percepção internacional de que o Brasil, por ter uma população etnicamente diversa, teria um passaporte cobiçado por fraudadores - uma vez que, em tese, qualquer pessoa poderia se passar por um brasileiro.
Mas a verdade é, hoje em dia, não há dados concretos para embasar essa percepção. Uma investigação de 2015 da empresa especializada Vocativ apontou que os passaportes brasileiros não constavam entre os mais caros - e portanto mais desejados - vendidos ilegalmente em mercados negros desse tipo na internet.
No entanto, nos anos 1990, quando os sistemas de controle e emissão não eram digitalizados, a situação era diferente. O próprio governo brasileiro chegou a admitir que, até 2006, quando foram introduzidas novas medidas de segurança, o documento brasileiro era um dos mais forjados.
Por que um governante e seu filho precisariam recorrer ao procedimento de forjar passaportes estrangeiros?
Se hoje a Coreia do Norte é um país isolado, a situação era ainda mais aguda nos anos 1990, época em que a principal apoiadora do regime norte-coreano - a União Soviética - havia acabado de se fragmentar.
Internamente, o país estava sendo devastado por escassez de alimentos e energia; externamente, era um Estado pária, com dívidas internacionais bilionárias.
Nesse cenário, é possível que a família Kim tenha recorrido a passaportes estrangeiros para viajar ao exterior de forma mais discreta.
De qualquer forma, é surpreendente imaginar que Kim Jong-il, com então apenas dois anos de mandato, tenha recorrido a essa opção, avalia John Nilsson-Wright, especialista em Coreia do Norte do centro de estudos britânico Chatham House.
"Por que ele faria isso? Kim Jong-il era visto como muito avesso a riscos - sabemos que ele visitou Moscou e Pequim diversas vezes, mas para tal ele provavelmente sequer precisaria de um passaporte", afirma Nilsson-Wright.
"Isso (a reportagem da Reuters) sugere que talvez houvesse uma tentativa de ele e seu filho (o atual líder Kim Jong-un) pensarem em possíveis rotas de fuga da Coreia do Norte, algo que (se confirmado) seria revelador de que haveria um grau de incerteza (na liderança norte-coreana)."
*Com reportagem da BBC News
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