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Quem foi Charles Rodney Chandler, militar americano morto pela luta armada citado por Bolsonaro nos EUA

16/05/2019 18h31

Charles Rodney Chandler foi assassinado em São Paulo, em outubro de 1968, por grupos brasileiros de esquerda engajados na luta armada contra a ditadura militar. Sua suposta ligação com a CIA nunca foi provada.

"Quem até há pouco ocupava o governo tinha suas mãos manchadas de sangue da luta armada, matando inclusive um capitão, como eu. Eu rendo homenagem aqui ao capitão Charles Chandler, um herói americano. Talvez um pouco esquecido na história, mas que escreveu sua história passando pelo Brasil", discursou o presidente Jair Bolsonaro ao receber o prêmio "Personalidade do Ano" da Câmara de Comércio Brasil-Estados Unidos, em Dallas, no Texas, nesta quinta-feira, 16.

Bolsonaro estava se referindo a Charles Rodney Chandler, capitão do Exército americano, veterano da Guerra do Vietnã, assassinado em São Paulo em outubro de 1968. Foi emboscado quando saía de sua casa, no bairro do Sumaré, e morto a tiros por grupos brasileiros de esquerda engajados na luta armada contra a ditadura militar.

Dos ex-presidentes da República que já ocuparam o cargo no Brasil, apenas Dilma Rousseff teve participação na luta armada contra a ditadura militar. O historiador Arão Reis, no entanto, lembra que ela nunca participou de ações armadas. A ex-presidente integrou a o Comando de Libertação Nacional (Colina), que somente em julho de 1969 - quase um ano depois do assassinato de Chandler - viria a se fundir com a VPR para criar a VAR-Palmares - a Vanguarda Armada Revolucionária Palmares.

A morte de Rodney Chandler aparece no livro A Verdade Sufocada, do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, citado por Bolsonaro como seu "livro de cabeceira", em entrevista ao programa Roda Viva. Ustra era chefe de órgão de repressão política durante a ditadura e primeiro militar brasileiro condenado por torturas cometidas no regime.

Um ano depois do assassinato do americano, o Departamento de Ordem Política e Social (Dops) atribuiu a autoria do crime a Carlos Marighella e outras nove pessoas, segundo notícia publicada na Folha da Tarde na época.

Ainda segundo o Dops, os nove participaram da trama, mas os responsáveis diretos pela execução foram Diógenes José Carvalho, ligado à Vanguarda Popular Revolucionária (VPR) e Marcos Antonio Braz de Oliveira, o Marquito, da Ação Libertadora Nacional (ALN).

O livro Marighella, do jornalista Mario Magalhães, relata as circunstâncias do assassinato. Pela manhã, "Chandler abriu a porta da cozinha, entrou no seu Impala guardado na garagem, deu marcha a ré para ganhar a rua e, ao chegar à calçada, o Fusca fechou-o. Os dois ocupantes do banco traseiro saíram, e Diógenes descarregou as seis balas do revólver Taurus calibre 38. Em seguida, Marquito apontou a metralhadora para a cabeça do veterano do Vietnã, apertou o gatilho, e o corpo ensanguentado desabou sobre o banco da camionete".

Ainda segundo Magalhães, após o assassinato, os guerrilheiros atiraram panfletos para o alto e fugiram. No material, estava escrito: "Criar um, dois, três Vietnãs, eis a palavra de ordem do comandante Che Guevara, que foi cruelmente assassinado na Bolívia por agentes imperialistas do nível deste Chandler, notório criminoso de guerra no Vietnã, e hoje punido e executado pela Justiça Revolucionária".

O historiador Carlos Fico, professor titular de História Brasileira na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), diz que o caso chocou muito o regime militar brasileiro. "Tratava-se de um capitão norte-americano, com toda essa aura", diz Fico.

O assassinato ocorreu dois meses antes da assinatura do Ato Institucional número 5, que marcou o endurecimento do regime militar e a sistematização do sistema de repressão brasileiro.

Para o historiador, a referência de Bolsonaro a Chandler foi feita de forma "incompleta".

"Faltou lembrar que os personagens que participaram de ações armadas, inclusive de ações completamente injustificáveis como o assassinato desse capitão, foram presos, foram frequentemente torturados, e alguns foram mortos", diz Fico. "Essas pessoas cometeram desatinos? Cometeram. Mas foram presas, torturadas, algumas foram mortas, e as que sobreviveram foram punidas e julgadas, enquanto os militares jamais foram julgados no Brasil. A Justiça Militar brasileira foi a que mais puniu militantes da esquerda chamada revolucionária entre as justiças militares das ditaduras latino-americanas", afirma.

Vínculo com a CIA nunca provado

Aos 30 anos, Rodney Chandler estava estudando em São Paulo. Era uma figura conhecida, porque vinha participando de palestras e dando entrevistas. Na revista Veja, fora definido como "um especialista em guerrilhas".

De acordo com o livro The Politics of Military Rule in Brazil, 1964-1985 (A Política do Governo Militar no Brasil, em tradução livre), do brasilianista Thomas E. Skidmore, a razão de Chandler estar no Brasil era se preparar para dar aulas de português em West Point, a academia militar dos Estados Unidos.

Segundo o inquérito do Dops sobre o crime, os guerrilheiros consideravam que Rodney Chandler era membro da CIA, a agência de inteligência dos Estados Unidos.

"Para Marighella, o capitão Chandler não era um inocente, mas um vilão presumivelmente a soldo da CIA no Brasil, embora inexistisse prova de ligação com a agência", escreveu Magalhães na biografia de Marighella.

Segundo o historiador Carlos Fico, depoimentos posteriores de pessoas ligadas ao sistema repressivo da ditadura indicaram que Chandler de fato colaborava com a CIA. "Mas isso era comum a muitos funcionários norte-americanos, militares ou não. Então ele não era um espião ou um agente especial da CIA, e tampouco se conheciam detalhes sobre isso na época (de seu assassinato)", diz.

Outras razões do crime foram a atuação de Rodney Chandler no Vietnã e na Bolívia. Segundo Skidmore, os guerrilheiros olharam o histórico do americano nesses dois países e concluíram que estava no Brasil para treinar grupos paramilitares de direita, como o Comando de Caça aos Comunistas (CCC).

Ainda de acordo com Skidmore, membros da VPR e da ALN fizeram um julgamento informal secreto, no qual condenaram Rodney Chandler à morte por supostos crimes de guerra que teria cometido no Vietnã e por seu suposto papel de representante da CIA no Brasil.

O autor acredita que os guerrilheiros tinham a intenção de chamar a atenção para o que viam como o papel decisivo dos americanos na sustentação do governo militar.

Há uma divergência entre historiadores sobre quem estava presente nesse julgamento - Carlos Fico diz que ele foi conduzido por três dirigentes da VPR. "Eles fizeram um levantamento da rotina do capitão e depois designaram um grupo de três pessoas para executá-lo. O grupo esperou na porta de sua casa, e quando estava manobrando o carro, executaram-no com muitos tiros. Foi uma coisa bárbara."

"O tribunal (dos guerrilheiros) não decidiu matá-lo porque tivesse feito algo de errado, mas porque era americano e era militar. Além disso, estavam a fim de matar alguém que desse publicidade ao terrorismo", escreveu o jornalista Elio Gaspari no livro A Ditadura Envergonhada.

Um dia, "Marighella mostrou uma fotografia do capitão a José Luiz Del Roio. Descreveu-o com 'grande repressor, torturador que ajudou a matar' no Sudeste Asiático. Em setembro, o principal dirigente da VPR, Onofre Pinto, 'trouxe a questão' Chandler a uma reunião, como recordaria outro líder da organização, João Carlos Quartim de Moraes, que disse ter reagido assim: 'Precisa matar é torturador'", explica Magalhães na biografia de Marighella.

Assassinato repercutiu mal entre grupos de esquerda

O historiador Daniel Aarão Reis, que integrava um dos movimentos da luta armada contra o regime militar, o Movimento Revolucionário Oito de Outubro (MR8), lembra que a morte de Chandler repercutiu negativamente entre grupos de luta armada, como o dele, e mais ainda em movimentos que defendiam uma oposição não violenta à ditadura.

"Não me recordo de terem se manifestado publicamente, mas me recordo que clandestinamente circularam notas de críticas a esse tipo de ação, entendendo que trazia mais antipatia para os guerrilheiros que simpatia", conta.

"É importante frisar que a esquerda é muito múltipla, e mesmo nos agrupamentos que previam a luta armada contra a ditatura, havia divergências em muitos aspectos. Algumas eram a favor de cometer esse tipo de ações e outras, como a organização da qual eu participava, eram contra."

"Já a ALN e a VPR admitiam atos desse tipo, como bomba em quartel, matar quadros dirigentes de organizações de direita, justiçar - era o vocabulário que elas usavam - figuras proeminentes do aparelho de Estado. O Chandler morreu nesse contexto", diz.

"No contexto das esquerdas, pode-se dizer que a maioria das esquerdas não aprovou esse ato. Esse é raciocínio rápido e rasteiro, como é comum ao Bolsonaro. É um despautério atribuir essa acusação a um governo que foi eleito 30, 40 anos depois", afirma.

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