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O que o caminho do suco de laranja brasileiro até as prateleiras britânicas revela sobre os desafios do Brexit

Dos laranjais às prateleiras de supermecados no exterior, o suco brasileiro percorre um longo caminho - Getty Images
Dos laranjais às prateleiras de supermecados no exterior, o suco brasileiro percorre um longo caminho Imagem: Getty Images

Fernanda Odilla

Da BBC News Brasil em Londres

26/05/2019 08h26

Saída do Reino Unido sem acordo com o bloco europeu pode, num primeiro momento, criar novos controles aduaneiros, regras sanitárias e a cobrança de tarifas capazes de elevar custos e complicações adicionais para os exportadores brasileiros; frutas e sucos importados, que hoje só passam por inspeções nos portos de entrada da UE, podem ter de ser submetidos a inspeções adicionais em solo britânico.

Dos laranjais, em especial dos pomares de São Paulo, Paraná e Minas Gerais que compõem o cinturão citrícola responsável por 85% da produção nacional, até as prateleiras dos supermercados, o suco brasileiro percorre um longo caminho em que agilidade é fundamental.

O Brasil é o maior exportador de suco de laranja do mundo e muitos países, como o Reino Unido, dependem da produção brasileira para abastecer supermercados e saciar a sede dos consumidores. Mais de 80% do suco de laranja consumido pelos britânicos, por exemplo, vem do Brasil.

É justamente por envolver uma complexa logística e ter a União Europeia como principal importador, e distribuidor, que o caminho do suco de laranja brasileiro até as prateleiras britânicas é capaz de revelar os muitos desafios do Brexit não só para o Reino Unido.

A depender da forma como os britânicos vão sair do bloco europeu, o abastecimento de suco no mercado local pode ser comprometido, num primeiro momento. O mesmo vale para outros produtos perecíveis que passam primeiro por portos no continente europeu antes de atravessarem o Canal da Mancha.

As exportações brasileiras também podem sofrer algum impacto, afirmam especialistas ouvidos pela BBC News Brasil.

O caminho da laranja

Virar suco e sair do país é o destino de 70% da produção de laranjas do Brasil, que, na safra atual, contabilizou 285 milhões de caixas. É um mercado exigente que movimenta cifras bilionárias - os volumes exportados entre julho de 2018 a fevereiro de 2019 somaram US$ 1,3 bilhão, o equivalente a R$ 5 bilhões.

As laranjas colhidas são selecionadas, testadas por amostragem, lavadas, escovadas e esterilizadas antes de serem espremidas. Seguem em caminhões-tanque até containers mantidos pelas maiores produtoras e exportadoras de suco de laranja no porto de Santos (SP).

As exportações de suco de laranja brasileiro recuaram em volume e faturamento na safra 2018/2019 por causa da queda da produção - Getty Images - Getty Images
As exportações de suco de laranja brasileiro recuaram em volume e faturamento na safra 2018/2019 por causa da queda da produção
Imagem: Getty Images

No porto, o suco é armazenado e, por meio de um sucoduto, transferido para navios-tanque.

A frota é composta por cerca de 15 navios, a maioria deles das próprias empresas, que transportam em tanques cilíndricos de aço inoxidável suco pasteurizado, pronto para consumo, ou na forma concentrada, como se fosse um óleo. O primeiro é chamado de suco não concentrado (NFC, na sigla em inglês) e o segundo de suco congelado e concentrado (FCO, na sigla em inglês).

"O suco FCO é mais eficiente para ser transportado e comercializado, mas não tem o mesmo frescor que o NFC, que tem ganhado mercado por conta do sabor", explica o engenheiro agrônomo Marcos Fava Neves, professor da USP e da Fundação Getúlio Vargas (FGV) de São Paulo e um dos autores do livro O Retrato da Citrocultura Brasileira.

Na Europa, o suco chega inicialmente em portos na Bélgica e na Holanda, onde é feito um controle sanitário de qualidade antes de voltar para caminhões-tanque e ser distribuído para outros países, que se encarregam de engarrafá-lo.

A União Europeia é o destino mais importante das exportações nacionais. Recebeu 63% das 666 mil toneladas exportadas nos primeiros nove meses da safra atual (julho de 2018 a fevereiro de 2019), movimentando cifras de US$ 889,2 milhões, o equivalente a R$ 3,4 bilhões, nesse período.

Mas as empresas brasileiras também vendem para países como os EUA, Japão e Austrália.

Lucca Piccirillo, gestor portuário, garante que, nesse processo, o Brasil segue um padrão rigoroso de qualidade e a verificação do produto acontece em diferentes etapas. "Não há contato manual. Tudo é controlado e a exigência é alta", observa.

"Até o porto, as empresas usam caminhões com carretas tanques que passam por um rigoroso controle de temperatura e qualidade para evitar a contaminação do produto. O fato do suco de laranja exigir um equipamento específico representa a desvantagem de não existir a possibilidade de carga de retorno, porque geralmente esses tanques voltam cheios d'água", afirma Piccirillo.

O professor Marcos Fava Neves destaca o fato de liderar o mercado há décadas fez com que o país desenvolvesse tecnologia não só para transportar mas também para produzir blends que atendam demandas específicas de cada país como, por exemplo, sucos mais doces ou mais cítricos.

"O Brasil desenvolveu logística de ponta. Nossas empresas não são empresas de marca, mas de produção e transporte", explica Fava Neves, emendando que empresas como a Pepsi, Coca-Cola, Nestlé e as próprias redes de supermercado são quem se encarregam de colocar nosso suco nas prateleiras.

'Hard Brexit'

É por causa dessa complicada logística, atestam especialistas, que pode provocar um desabastecimento e comprometer a exportação não só de suco de laranja mas de produtos mais perecíveis como frutas, verduras e legumes - que muitas vezes seguem uma rota parecida - caso o Reino Unido saia da União Europeia sem um acordo de aduana.

O chamado 'hard Brexit' (Brexit duro), uma ruptura sem nenhum tipo de acordo com o bloco, exigiria a criação de novos controles aduaneiros, regras sanitárias e a cobrança de tarifas, implicando em custos e complicações adicionais para exportadores, entre eles os brasileiros.

Além do suco de laranja, 50% das melancias frescas e 27% dos melões consumidos no Reino Unido vêm do Brasil. Goiaba, manga, banana e uva frescas também fazem parte do portfólio brasileiro que chega aos mercados britânicos.

Fava Neves lembra que o país também exporta café e castanhas para o Reino Unido, produtos que, segundo ele, podem também sofrer impacto nas exportações em caso de um "hard Brexit".

Justamente pela dependência de décadas que tem com a União Europeia, bloco do qual faz parte desde 1973, o Reino Unido ainda não criou novas regras de vigilância sanitária nem estrutura nos portos para receber produtos in natura que normalmente chegam nos portos da Holanda e Bélgica.

"Essas coisas práticas estão recebendo pouca atenção no Reino Unido", observa o professor de Relações Internacionais da USP, Kai Enno Lehmann. "Logisticamente, o Reino Unido não está minimamente preparado para a saída sem acordo. [Nesse cenário], inevitavelmente, vai haver atraso nas fronteiras para passagem de produtos e a demora para produtos como o suco de laranja é crucial", afirma o professor.

Lehmann diz que o país precisa se preparar não apenas elaborando novas regras, mas desenvolvendo um sistema de estocagem de comida para evitar, num primeiro momento, alta de preços e desabastecimento.

Alerta dos supermercados

O engenheiro agrônomo Marcos Fava Neves lembra que, no caso do suco de laranja, o suco concentrado congelado pode ser armazenado por até um ano e o não concentrado, de quatro a seis meses.

Nesta temporada, contudo, o Brasil exportou um volume menor de suco e, consequentemente, faturou menos por causa da queda da produção de laranjas. No caso da União Europeia, os embarques somaram 423.086 toneladas entre julho de 2018 e fevereiro de 2019, o que indica uma queda de 6% em relação ao mesmo período da safra anterior.

Para Fava Neves, o maior impacto de uma saída sem acordo é mesmo no Reino Unido. "Quem tem que se preocupar são os supermercados no Reino Unido", afirma, emendando que os britânicos são importantes compradores, mas não são os únicos importadores de suco de laranja brasileiro.

No início do ano, os principais supermercados do Reino Unido alertaram que enfrentariam temporariamente dificuldades para manter a oferta de produtos, com alta de preços e risco de desabastecimento, principalmente de frutas, verduras e legumes frescos, se o Brexit fosse selado sem um acordo em março de 2019, mês em que, originalmente, a saída seria oficializada.

Os britânicos acabaram ganhando mais prazo dos líderes europeus, que deram até o dia 31 de outubro de 2019 para definirem como vão sair do bloco. Mas pouco parece estar sendo feito para definir novos controles aduaneiros, regras sanitárias e a cobrança de tarifas das mercadorias que entram no país, segundo o professor Lehmann.

O governo, na ocasião, assegurou que todas as medidas estavam sendo tomadas para minimizar o impacto de um não-acordo Brexit nos fornecedores dos supermercados e garantiu que não vai faltar comida.

"O governo tem maneiras bem estabelecidas de trabalhar com a indústria de alimentos para evitar interrupções e estamos usando-as para apoiar os preparativos para deixar a União Europeia", disse o porta-voz da primeira-ministra.

Para evitar situações de desabastecimento, o Reino Unido chegou a anunciar a criação de cotas de importação com tarifas zero para itens que não possam ser supridos após a saída da UE.

Três cenários para o Brexit

Apesar de especialistas dizerem que o impacto é maior para os britânicos que para o Brasil, integrantes do governo brasileiro acompanham de perto que tipo de mudança a saída do Reino Unido do bloco europeu pode provocar nas exportações brasileiras.

No caso do suco de laranja, por exemplo, o Reino Unido está em quinto lugar no ranking dos 40 maiores compradores do Brasil. Mas especialistas admitem que é muito difícil prever o real impacto uma vez que não se sabe ainda detalhes de como os britânicos vão deixar o bloco.

Diante das difíceis negociações do governo britânico com o Parlamento - que já rejeitou três vezes os acordos elaborados por Theresa May, um dos motivos para a primeira-ministra anunciar nesta sexta (24) que deixará o cargo no dia 7 de junho- e com a União Europeia, o governo brasileiro trabalha com três cenários principais para o Brexit.

Uma saída sem qualquer tipo acordo, solução que May declarou recentemente não querer - ela tinha até dito que deixaria o cargo de primeira-ministra se o Parlamento aprovasse o acordo negociado por ela. Nesse caso, as exportações brasileiras poderiam ser impactadas negativamente num primeiro momento justamente porque implicaria em criar novas regras aduaneiras e controles sanitários, mudando a dinâmica de transporte de produtos perecíveis.

O segundo cenário seria uma saída do bloco com regras definidas apenas para as questões migratórias, sem acordo de aduana. Esse cenário também comprometeria, temporariamente, os negócios brasileiros.

Ou, por último, uma saída com a manutenção dos atuais acordos aduaneiros, com a abertura para negociação de tarifas, cenário visto com bons olhos por quem pretende ampliar o comércio entre Brasil e Reino Unido.

Impacto no Brasil

Para as empresas brasileiras acompanharem as mudanças e se preparem para novos negócios, a Embaixada do Brasil em Londres lançou no mês passado o programa Brazil Brexit Watch, uma plataforma digital com informações tarifárias, riscos e guias para exportadores brasileiros.

O professor Marcos Fava Neves lembra que atualmente muitos produtos brasileiros se deparam com barreiras tarifárias que diminuem a sua competitividade no mercado internacional. Para entrar na Europa, por exemplo, o suco brasileiro é tarifado em 12,2% do valor exportado, diz o professor.

"Isso se deve em parte pela pressão dos franceses. Um lado positivo do Brexit é que poderemos negociar diretamente o valor das tarifas, baixar o custo de exportação e até reduzir o preço do produto para o consumidor", diz Fava Neves.

Em 2018, 1.700 empresas brasileiras exportaram US$ 3 bilhões para o Reino Unido. Metade dos alimentos e bebidas consumidos por britânicos vem de fora, sendo 60% da União Europeia.