Topo

'Se há mais armas, há mais crimes', diz criminologista americano

iStock
Imagem: iStock

Fernanda Odilla - Da BBC News Brasil em Londres

01/08/2019 11h52

"Se há mais armas, há mais crimes", disse à BBC uma das maiores autoridades em criminologia do Reino Unido, o cientista social americano Lawrence Sherman.

Diretor do Centro Jerry Lee de Criminologia Experimental da Universidade de Cambridge, Sherman disse ainda que flexibilizar o uso de armas de fogo, como quer o governo do presidente Jair Bolsonaro, vai levar a um aumento no número de mortes causadas por estas.

"Armas são letais. Quem disser que (mais armas) são efetivas, não olhou de perto as evidências."

Inspirado na medicina, ele criou - e promove - um movimento que defende que o policiamento seja embasado em evidências científicas.

Autor de várias publicações sobre o assunto, Sherman conduziu pesquisas de campo sobre como encontrar formas mais eficientes de reduzir homicídios, violência com armas de fogo, roubos e outros crimes em colaboração com várias polícias, cortes de Justiça, promotorias e prisões do Reino Unido, além de ajudar forças policiais de diferentes países a usar tecnologia e ciência para tentar frear o avanço da violência.

Sua abordagem nesse campo é inspirada em um movimento na medicina surgido no Reino Unido nos anos 70, mas que ganhou força nos anos 90 nos Estados Unidos, chamado medicina baseada em evidências (MBE, na sigla inglesa), definido em um artigo sobre História da Medicina no AMA Journal of Ethics como o "uso consciencioso, explícito e criterioso das melhores evidências (da ciência) na tomada de decisões sobre o cuidado de pacientes". O movimento permitiu a ampla adoção, na medicina, de quantificações estatísticas, revisões de estudos e experimentos, práticas comuns em áreas como engenharia e estatística.

Sherman participa, nesta semana, de um encontro organizado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública em João Pessoa (PB), para falar a policiais e pesquisadores sobre sua própria experiência no combate ao crime. Ao saber da rebelião que deixou 57 mortos - 16 deles decapitados - num presídio no Pará nesta semana, defendeu o uso de pesquisas para remodelar o sistema carcerário.

O professor diz que a experiência britânica mostra que é possível reduzir a criminalidade radicalmente, mas adverte que o processo é longo. Para ele, "o mais importante" seria a "o papel da classe média em exigir mais ordem, profissionalismo e independência da polícia para fazer a coisa certa sob a supervisão do Judiciário".

Leia os principais trechos da entrevista de Sherman à BBC News Brasil.

BBC News Brasil - O senhor poderia dizer como desenvolveu a ideia do policiamento baseado em evidências científicas?

Lawrence Sherman - O policiamento baseado em evidências foi inspirado nos anos 1990 no movimento da medicina baseada em evidências. Nos dois casos, as pesquisas enfrentavam resistência dos profissionais da área quando se dizia que o que eles estavam fazendo era errado ou poderia causar danos. Isso acontecia em áreas como o tratamento de úlceras e de doenças cardíacas.

Um livro em especial, Demanding Medical Excellence ("Exigindo Excelência Médica", em tradução livre), de 1997, me inspirou. Pensei que, se a medicina está enfrentando essa "guerra civil" entre a prática e a pesquisa, não é a toa que estamos enfrentando dificuldade em fazer com que os departamentos de polícia aceitem evidências baseadas em pesquisa.

Comecei a desenvolver uma abordagem... Criei o termo "policiamento baseado em evidências" em 1998, mas a estrutura foi completamente desenvolvida em 2013 com os três Ts: estabelecer um alvo (targeting), testar (testing) e rastrear (tracking).

BBC News Brasil - Selecionar o alvo vai além de identificar as zonas quentes de criminalidade...

Sherman - Identificar o alvo é importante porque permite que a polícia priorize seu tempo com pessoas, vítimas, lugares com risco alto ou médio (de crime). As zonas quentes são a base para o policiamento baseado em evidência. A polícia não deveria estar dirigindo por tudo que é lugar. Deveria passar mais tempo nas zonas quentes onde o crime está concentrado.

Isso é algo geral e vale para a América Latina. No Uruguai, quando nos pediram para ajudá-los, a primeira coisa que fizemos foi identificar as zonas quentes (de crime). A maioria dos crimes ocorria em 5% do território. Focar onde o risco é alto e o perigo está concentrado não é uma ideia que a polícia aceita facilmente. Mas, onde quer que você olhe, até em nações desenvolvidas, você tem essas concentrações (de crime).

BBC News Brasil - Posso imaginar que o principal argumento de policiais que resistem a essa abordagem é dizer que o crime se desloca...

Sherman - Isso. É dizer que o crime vai para a outra esquina. As evidências são contrárias a essa afirmação também. Se o crime cai em uma esquina, também vai cair na esquina ao lado. Não temos evidências que contrariem o policiamento com base em zonas quentes. O que temos é uma cultura (contrária).

Faço uma comparação. Está provado que os resultados são melhores quando se ensina crianças a ler seguindo um programa definido. Mas muitos professores não querem seguir uma programação pré-determinada. Muitos policiais também não querem ficar só em um lugar. Todo mundo quer ser livre para agir.

Minha visão é que o trabalho deles (policiais e professores) é reduzir crime ou ensinar crianças a ler e deveriam fazer o que funciona. A polícia tem que focar nas vítimas. Isso tudo é só o primeiro T (targeting). É preciso testar o que funciona e rastrear o que a polícia está fazendo.

BBC News Brasil - O Brasil viu outra rebelião em presídio com dezenas de mortos e 16 pessoas decapitadas.

Sherman - Jesus...

BBC News Brasil - Esse tipo de violência tem se repetido em diferentes Estados. São grupos rivais competindo pelo tráfico de drogas fora da prisão e controlando o tráfico de dentro da prisão. Como o policiamento baseado em evidência pode ajudar nesses casos, funciona para ajudar a controlar crimes dentro da prisão? É possível transferir esse conhecimento das ruas para as prisões?

Sherman - É possível. Se você usa o policiamento baseado em evidências para rastrear organizações criminosas, você iria tratar a população carcerária de uma forma diferente. Não colocaria certos grupos nas mesmas prisões. Uma melhor evidência científica iria levar a uma reorganização e a uma nova estratégia no sistema prisional.

Esses grupos podem interferir no trabalho policial. É possível que uma queda dos homicídios esteja mais relacionada a um acordo de paz na disputa por território do que a julgamentos nos tribunais. O problema número um, para quem está de fora, é fazer como a Inglaterra fez, mudar por dentro...

BBC News Brasil - Essa era minha próxima pergunta. Como a experiência da polícia no Reino Unido pode ajudar o Brasil?

Sherman - A experiência (britânica) mostra que é um longo processo, tem uma sequência histórica e, o mais importante, tem o papel da classe média em exigir mais ordem, profissionalismo e independência da polícia para fazer a coisa certa sob a supervisão do Judiciário.

Essa é a história do Reino Unido e ela contrasta, por exemplo, com a dos Estados Unidos, onde isso não aconteceu. Os Estados Unidos ainda têm uma polícia controlada politicamente em nível local. O modelo americano é um desastre comparado ao modelo britânico.

BBC News Brasil - Policiais brasileiros têm matado e morrido cada vez mais na luta contra o crime. O senhor já afirmou que baixos níveis de violência no policiamento podem criar uma sociedade menos violenta. Como isso acontece?

Sherman - Na Inglaterra houve uma grande redução nas penas de morte no período em que a polícia foi criada (em 1829). Cerca de 200 crimes tinham como punição a pena de morte. A presença de policiais aumentou as chances de pegar criminosos, e, ao mesmo tempo, foi reduzida a severidade das penas. Essa ideia de ter uma polícia mais presente e penas menos severas foi central para o caso da Inglaterra. É uma questão de a classe média reagir e mostrar um apetite de por uma polícia menos violenta. Essa é a solução para uma sociedade menos violenta.

BBC News Brasil - No Brasil, o presidente assinou um decreto flexibilizando a compra e porte de armas. Há quem ache que a medida é boa para autoproteção e outros acreditam que a medida pode aumentar as já elevadas taxas de crimes violentos. O que o senhor acha de flexibilizar o porte de armas e como seria uma medida eficiente de conter um potencial aumento de violência quando as pessoas estão mais armadas?

Sherman - Todas as evidências que temos nos Estados Unidos mostram que se há mais armas, há mais crimes. Simples assim. Os australianos flexibilizaram o uso de armas 20 anos atrás e enfrentam problemas com mortes por arma de fogo e suicídios. Armas são letais. Quem disser que são efetivas (no combate ao crime), não olhou de perto as evidências.

Não há nenhuma demonstração que você vai reduzir taxas de homicídios se você aumentar o numero de armas na sociedade. Pode ter alguma evidência relacionada a roubo... mas há um preço alto. Pessoas que têm armas dentro de casa para se proteger de roubos têm mais chances de serem mortas pelas próprias armas, que podem ser usadas pelos ladrões.

Quando a polícia tira as armas, desencoraja pessoas andando armadas. Isso aconteceu em Cali, na Colômbia, os crimes com armas diminuíram. As evidências (já coletadas) não favorecem usar mais armas como solução (para combater o crime).

BBC News Brasil - Isso nos leva de volta ao Reino Unido onde a polícia armada é uma minoria e, ao mesmo tempo, temos visto um aumento da violência, com um pico de esfaqueamentos...

Sherman - Você diz pico, mas é uma elevação. É muito ruim que está aumentando o uso de facas, mas imagine se fossem armas de fogo. Você sabe qual é a taxa de mortalidade? A taxa de mortes para ataques com armas de fogo é de 20 para cada 100. Para esfaqueamentos é 1,5. Então as chances de você morrer se atacado por uma arma de fogo são muito maiores.

Não quero celebrar crimes com faca porque estamos tentando reduzi-los com a polícia. Mas quando se tem muitas armas na sociedade, os desafios são maiores. Se você tem mais pessoas armadas para se proteger, mais pessoas de um modo geral podem morrer, incluindo as que têm as armas. Pode haver um aumento no roubo de armas para cometer outros crimes. Se não houver leis para impedir que as pessoas andem armadas, a polícia fica irrelevante. Você essencialmente corta a polícia do processo.

BBC News Brasil - Há um senso comum de que quando se tem uma crise econômica, as taxas de crime tendem a aumentar. Mas a América Latina viu a violência aumentar mesmo durante o boom das commodities...

Sherman - O conceito de taxa de crime é inútil. É como uma ter uma taxa de doentes. Ao se contabilizar cada crime de forma igual, subentende-se que os crimes surgem da mesma forma. Não acontece isso. Crimes surgem de formas diferentes e em sistemas diferentes.

Se você tem seguranças olhando lojas e monitorando potenciais ladrões, a taxa de furtos tende a aumentar (porque mais criminosos podem ser flagrados). Se a economia vai mal, eles cortam os seguranças das lojas, vai ter menos monitoramento e esse tipo de crime cai. A pergunta importante é sobre assassinato, estupro, sequestro. São todos mensuráveis e se calcularmos a pena dos que foram flagrados e punidos podemos calcular o dano - temos o Cambridge Crime Harm index que contabiliza isso. Esse índice tem uma relação muito diferente com a economia que a simples contagem de crimes.

Durante o período de austeridade, no Reino Unido, o número de crimes reportados caiu, mas o índice de crimes flagrados e punidos tem aumentado desde 2012.

BBC News Brasil - Apenas pra deixar claro, há um aumento dos crimes quando a economia vai mal?

Sherman - Não sabemos essa resposta. Não acho que a economia tenha muita influência. Acho que as tendências econômicas talvez sejam irrelevantes em, por exemplo, quando a polícia vai parar e revistar alguém, ou na formação de gangues e em que medida a polícia vai estar usando métodos como infiltração para identificar esses grupos. O problema central é como a polícia está agindo.

BBC News Brasil - Há experiências que podem ser copiadas ou cada país, cada força policial, precisa ter sua própria receita para combater o crime?

Sherman - Existem apenas 199 países no mundo e eles são todos diferentes. Se eu estivesse criando 199 crianças, iria tratá-las de forma diferente. Cada um tem sua personalidade, talentos, motivações e traumas. Temos que reconhecer que o que funciona é uma progressão de passos que vai ser diferente em cada país. Não devemos impor uma fórmula.

Acho que a pergunta para o Brasil é como criamos uma estrutura institucional que se fundamente em policiamento baseado em evidências. Essa é uma pergunta para os EUA também.

Sim, o Brasil tem que encontrar sua própria resposta, mas não é simplesmente importando análises como se importa carros. Você pode usar um carro europeu nas estradas brasileiras, mas não tenho certeza se você pode usar a polícia europeia nas ruas.