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A longa luta para tirar itens sagrados de umbanda e candomblé do Museu da Polícia, que os confiscou há mais de um século

Objetos sagrados do candomblé e da umbanda foram apreendidos em batidas policiais em terreiros no início do século - Marco Antônio Teobaldo
Objetos sagrados do candomblé e da umbanda foram apreendidos em batidas policiais em terreiros no início do século Imagem: Marco Antônio Teobaldo

Júlia Dias Carneiro - Da BBC News Brasil no Rio de Janeiro

20/08/2019 10h57

Itens do candomblé e da umbanda apreendidos em batidas policiais em terreiros do Rio no início do século estão até hoje no Museu da Polícia Civil do Estado; desde 2017, campanha Liberte Nosso Sagrado reivindica transferência da coleção para outro espaço.

Quando era criança, Maria do Nascimento ficou marcada pelas reuniões em que as "tias", as mulheres mais velhas que povoavam sua infância em Ramos, na zona norte do Rio, de repente baixavam o tom de voz e falavam com mágoa sobre "as nossas coisas que estão nas mãos da polícia".

"Elas falavam muito sentidas. Eu percebia que elas se sentiam impotentes", diz a versão de 82 anos daquela menina - que se tornou a iyalorixá Mãe Meninazinha de Oxum, respeitada mãe de santo do candomblé no Rio de Janeiro, à frente do terreiro Ilê Omolu e Oxum, em São João de Meriti, município na região metropolitana do Rio.

"Eu cresci ouvindo isso. Chegou uma época em que me senti responsável por fazer alguma coisa, já que elas não puderam fazer."

Já adulta, a iyalorixá foi entender que aquelas coisas nas mãos da polícia, sempre cunhadas de "nossas", eram objetos sagrados do candomblé e da umbanda, que foram apreendidos em batidas policiais em terreiros no início do século, quando religiões de matriz africana eram perseguidas com base em artigos do Código Penal de 1890 e, posteriormente, de 1942.

O acervo está até hoje nas mãos da polícia: pertence à coleção do Museu da Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro, no prédio que já foi sede do Departamento de Ordem Política e Social (Dops), centro de tortura e repressão durante a ditadura militar.

Desde 2017, a campanha Liberte Nosso Sagrado reivindica a transferência da coleção para outro espaço, com o apoio de outras mães de santo, pesquisadores, ativistas do movimento negro, organizações da sociedade civil e a Comissão de Direito Humanos da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj) - dando corpo a pedidos feitos há décadas por lideranças como a Mãe Meninazinha de Oxum.

No ano passado, a iniciativa teve um avanço fundamental: obteve consentimento do então chefe da Polícia Civil, Rivaldo Barbosa, que se reuniu com lideranças religiosas na sede da corporação em 23 de agosto de 2018. Na ocasião, Barbosa assinou o acordo entre os presentes de transferir as peças da coleção para o Museu da República, no Catete.

Com a mudança do governo do Rio e da cúpula da Polícia Civil do Estado do Rio (PCERJ), entretanto, na quinta-feira (23) se completa um ano desde que o acordo foi assinado sem que qualquer definição sobre a transferência da coleção tenha sido alcançada.

Consultada pela BBC News Brasil, a direção do Museu da Secretaria de Estado de Polícia Civil afirma que a coleção está sendo catalogada e "a possibilidade de uma cessão temporária das peças para exposição no Museu da República está sendo analisada pela instituição".

A assessoria de comunicação da PCERJ não atendeu ao pedido de entrevista da reportagem para detalhar o assunto e afirmou que não há um cronograma para os próximos passos.

Para as lideranças engajadas na campanha, os avanços recentes trouxeram esperança, mas a demora reforça o sentimento de "só acreditar vendo".

"Para nós, é uma vergonha. Não pode continuar. Enquanto Deus me der vida e saúde, eu vou continuar na luta", diz Mãe Meninazinha de Oxum.

'Magia Negra'

O conjunto de objetos confiscados pela polícia no início do século passado foi tombado pelo Iphan em 1938 com o nome de coleção da "Magia Negra" - o primeiro tombamento do então Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Sphan), fundado um ano antes pelo governo Getúlio Vargas.

Durante décadas, os objetos ficaram expostos no Museu da Policia Civil ao lado de armas de fogo, bandeiras nazistas e outras apreensões históricas ligadas ao crime no Rio.

A campanha Liberte Nosso Sagrado reivindica a participação de lideranças religiosas na definição de como as peças poderão e deverão ser expostas, e pede a mudança do nome da coleção para coleção do Sagrado Afro-brasileiro, rejeitando a pecha de "magia negra".

De acordo com a assessoria de comunicação da PCERJ, a direção do Museu da Secretaria de Estado de Polícia Civil "pretende consultar o Iphan sobre a possibilidade de alterar o nome da coleção".

A campanha pela reparação histórica após a perseguição religiosa sofrida no passado deu origem a um inquérito civil que tramita no Ministério Público Federal (MPF).

De acordo com o procurador responsável, Renato de Freitas Souza Machado, o acervo tem 521 itens - como roupas, atabaques, vestimentas de orixás, fios de contas e os chamados assentamentos, objetos que são representações sagradas de orixás. Além dos itens da coleção tombada originalmente, muitos foram agregados ao conjunto posteriormente.

Até o fim dos anos 1990, partes da coleção eram expostas ao público no Museu da Polícia Civil. Depois, passaram para o arquivo da instituição, inacessível ao público.

A situação piorou nos anos 2000: o prédio da Rua da Relação que abrigou o Dops teve sua estrutura abalada pela construção de duas torres de um centro empresarial da Petrobras. Mesmo após reformas, o prédio continua fechado - e a coleção ficou guardada em caixas de papelão em um anexo no mesmo terreno.

"O museu está fechado há anos, e as peças estavam em caixas, sem controle de temperatura e umidade, se deteriorando. Há muitos itens de material orgânico, de madeira, de tecido, e havia traças dentro das caixas", diz Machado, que acompanhou uma vistoria feita pelo Iphan.

Desde o início do ano, a coleção está sendo vistoriada e catalogada pelo Iphan, com técnicos indo ao Museu da Polícia regularmente para fazer fichas para cada objeto e registrá-los no sistema do instituto, além de identificar o que fazia parte do tombamento original e o que foi agregado depois de 1938.

Mônica da Costa, que até o início de agosto ocupava o cargo de superintendente do Iphan-RJ, explica que identificar os itens é trabalhoso, já que a lista original da coleção tombada é genérica, falando por exemplo em um "colar", simplesmente, cabendo aos técnicos identificar se é uma guia ou outro item.

Atualmente assessora de patrimônio imaterial do Iphan-RJ, Costa afirma que a coleção estava sendo armazenada de forma inadequada, em caixas de papelão empilhadas e que o órgão está produzindo um relatório sobre as condições em que foi encontrada.

Por se tratar de acervo tombado, uma eventual transferência precisa ser informada e acompanhada pelo Iphan. Entretanto, ela ressalta que não cabe ao órgão opinar sobre o fato de estar ou não com a Polícia Civil. "Nossa função é vistoriar todos os acervos tombados para ver se a preservação está adequada", afirma Costa a BBC News Brasil.

Peças 'se desmanchando'

A campanha Liberte Nosso Sagrado deu origem a abaixos-assinados, um documentário de mesmo nome lançado em 2018 pela Quiprocó Filmes e apoio de entidades como as comissões de direitos humanos da Assembleia Legislativa do Rio, da OAB-RJ e do gabinete do deputado estadual Flavio Serafini (PSOL-RJ).

Para Marco Antonio Teobaldo, um dos integrantes da campanha, os objetos foram confiscados de forma injusta no passado e não podem ser mantidos "na mão dos opressores, como um troféu".

"É uma questão moral, mas também de reparação histórica e de combate ao racismo", diz Teobaldo, curador do Instituto Pretos Novos, na região portuária do Rio.

"Cada objeto carrega uma grande história, contando sobre os líderes religiosos que fizeram a história do candomblé e da umbanda. Mas há também a história do contexto em que esses objetos foram apreendidos, que precisa ser contada", ressalta.

Para ele, a exposição da coleção em um espaço neutro, fora do contexto policial, pode ser um instrumento educativo e de combate à intolerância religiosa.

"Seria uma linda forma de ensinar as pessoas sobre o que são as religiões de matriz africana, sobre a importância que têm, e a aceitar a diferença", diz Teobaldo. "Até porque a intolerância religiosa não terminou. O racismo religioso continua", lamenta.

Teobaldo acompanhou algumas das vistorias do Iphan e fotografou alguns dos objetos da coleção. Ele diz que as peças são frágeis, de material orgânico, e algumas estão desmanchando.

"Além disso, alguns objetos nem poderiam ser expostos, pela sacralização que tiveram no contexto das religiões de matriz africana. São coisas que não se mostram", diz Teobaldo.

"Se não vira o quê? Um gabinete de curiosidades?"

'Espiritismo, magia e seus sortilégios'

Integrante da campanha, a professora de História Nathália Fernandes dedicou sua dissertação de mestrado a pesquisar a repressão policial contra religiões afro-brasileiras durante o Estado Novo (1937-1946).

Ela se debruçou sobre processos criminais embasados em artigos dos códigos penais de 1890 e de 1942, que serviram como base para criminalizar as crenças de matriz africana - muito embora não falassem nelas nominalmente e apesar de a Constituição de 1891, a primeira do Brasil República, proteger a liberdade de culto.

O Código Penal de 1890 estabelecia como crime, por exemplo, "praticar o espiritismo, a magia e seus sortilégios, usar de talismãs e cartomancias para despertar sentimentos de ódio ou amor, inculcar cura de moléstias curáveis e incuráveis, enfim, para fascinar e subjugar a credulidade pública" (artigo 157).

"Esses artigos eram usados para fazer batidas policiais nas casas de culto, terreiros e centros espíritas, apreender todos os objetos enquanto possíveis provas e prender pessoas para averiguação", diz a historiadora. Tais crimes ficavam sob responsabilidade de uma inspetoria dedicada a "tóxicos, entorpecentes e mistificações".

Fernandes foi levada ao tema depois de ler sobre "um certo Museu da Magia Negra", que depois entendeu ser uma coleção dentro do Museu da Polícia, o acervo tombado pelo Iphan. "O que me chamou a atenção de cara foi o nome desse acervo, associado a algo maléfico", lembra.

Fernandes defendeu a dissertação em 2015 pela Universidade Federal Fluminense (UFF), mas durante os anos de sua pesquisa nunca obteve autorização da Policia Civil para acessar o acervo, que se mantinha fechado em caixas no anexo da sede da corporação.

'Não é crime ser de orixá'

O último passo do inquérito civil do MPF foi dado em maio, quando o órgão enviou um ofício ao secretário da Polícia Civil, Marcus Vinícius Braga.

O documento resumiu as medidas tomadas e apontou para a "a natureza frágil do acervo", as "condições inadequadas" para a conservação do acervo no Museu da Polícia, o "elevado interesse" das comunidades de matriz africana e científica no acervo e a concordância expressa tanto pela Polícia Civil quanto pelo Museu da República em receber o acervo.

Concluiu que a próxima etapa seria a "operacionalização da transferência do acervo da Polícia Civil ao Museu da República, por meio de qualquer instrumento jurídico válido", ou seja, podendo ser uma cessão de uso, um termo de empréstimo ou o que for acordado entre as partes.

De acordo com o procurador Renato Machado, do MPF, o próximo passo agora cabe à Polícia Civil. "A bola está com eles", considera.

O procurador lembra, entretanto, que há muitos interesses em jogo. A Polícia Civil resiste em abrir mão do acervo por ser uma parte relevante da coleção de seu museu - e um argumento a mais para que mantenham a posse do prédio histórico do Dops, reivindicado por entidades de direitos humanos e ex-presos políticos para virar um centro de memória sobre as violações da ditadura.

Uma nota de abril deste ano da Associação de Amigos do Museu da Polícia Civil (Aampol) demonstra essa resistência. O presidente da associação, José Maria Herdy de Barros, expressou sua rejeição à "inapropriada reinvindicação" feita pela campanha, que atribuiu a "grupos de esquerda que mantêm uma série de injustas e incorretas posições críticas contra a Polícia Civil", defendendo a "importante coleção de peças oriundas das religiões de matriz africana" como patrimônio do museu, "preservada no curso dos anos por várias gerações de policiais".

No terreiro Ilê Omolu Oxum, em São João de Meriti, a iyalorixá Mãe Meninazinha de Oxum diz ter "muita esperança" de recuperar aquelas coisas que, desde criança, aprendeu a chamar de "nossas". "Aquilo é o nosso sagrado. Eles sequestravam o nosso sagrado. Tudo que está lá, na polícia, nos pertence", diz, emocionada.

"Nós vamos conseguir. Não para trazer para casa ou para o terreiro. Mas para ter um ambiente digno para receber nosso sagrado, para que as pessoas possam conhecer um pouco da história daquelas peças e o que nós passamos para chegar até aqui", diz.

"Infelizmente, estamos passando por tudo outra vez", afirma, referindo-se à onda de ataques a terreiros no Rio. "Um grupo de fanáticos está fazendo a mesma coisa que a polícia fez no passado. Invadem os barracões, quebram tudo. Com a diferença de que não levam nada. Esses só querem destruir", lamenta a iyalorixá.

"Por que o nosso sagrado tem que estar no Museu da Polícia? Nós não praticamos nenhum crime. Não é crime a gente ser de orixá."