Irmã Dulce: como se constrói a 'imagem oficial' de uma santa?
Em sua imagem canônica, Irmã Dulce surge com seu tradicional hábito azul e branco, traz à mão um terço de Maria e carrega no colo uma criança negra, sem roupas, descalça e desnutrida.
Como é decidida a representação oficial de uma santa? Como se compõe a imagem que será, desde a canonização, venerada pelos católicos do mundo?
A canonização de Irmã Dulce pelo papa Francisco, marcada para o domingo (13/10), marcará também a formalização da chamada "imagem canônica". E a criação dessa imagem leva em conta diversos fatores — a maioria ligada ao histórico de milagres e benfeitorias da santa ou santo em questão.
Com dois milagres oficialmente reconhecidos pelo Vaticano, a freira baiana Irmã Dulce ficou conhecida nas ruas de Salvador por uma atitude bem terrena: ao longo da vida, acolheu e cuidou de todas as pessoas que buscaram sua ajuda, especialmente aquelas mais miseráveis.
A trajetória de caridade da freira está agora representada na simbologia da Santa Dulce dos Pobres.
Em sua imagem canônica oficial, Irmã Dulce é vista com seu tradicional hábito azul e branco (vestes de quem integra a congregação de Nossa Senhora da Conceição), traz à mão um terço de Maria — de quem era devota — e carrega no colo uma criança negra, sem roupas, descalça e desnutrida que, de acordo com uma possível leitura iconográfica da peça, representa o menino Jesus.
"Para propor essa imagem, nossa equipe fez a hagiografia do santo, ou seja, estudamos toda a trajetória do indivíduo. Nada representa melhor a vida de Irmã Dulce do que o seu trabalho incansável junto às pessoas mais pobres. E, em Salvador, os mais pobres também são predominantemente negros. Ela mesma falava: 'esse é o meu povo. Em cada pessoa que eu ajudo, eu vejo Jesus'", lembra Osvaldo Gouveia, assessor de Memória e Cultura das Obras Sociais Irmã Dulce (Osid).
"Mas, vale observar que, apesar de estar desnutrido, a expressão do menino na imagem é de serenidade, não de tristeza, porque quem encontrava Irmã Dulce encontrava a esperança", emenda.
Interpretações diversas
Museólogo e ex-professor de Arte Sacra, Gouveia explica que a leitura iconográfica de cada santo, ou seja, o significado por trás dos símbolos presentes nas imagens, carrega marcas do contexto histórico em que as obras são criadas e subjetividades ligadas àquele personagem.
Santo Antônio, por exemplo, leva o menino Jesus nos braços nas imagens porque teria sido visto conversando com o mesmo ao se abrigar num convento, no século 12.
Já São Cristóvão, que carrega o menino Jesus no ombro, é representado dessa maneira por ter sido um homem muito alto e forte que, tendo vivido no século 3, certa feita teria carregado Jesus na travessia de um rio.
"A leitura é particular, por isso há espaço para muitas interpretações. No caso da imagem da Santa Dulce, a gente vê entre os devotos. Popularmente, é muito forte essa associação da criança negra com o menino Jesus, especialmente na Bahia", completa Gouveia.
Afastando a associação direta, Dom Murilo Krieger, arcebispo de Salvador e Primaz do Brasil, opta somente pela leitura histórica. "Irmã Dulce acolheu muitas crianças pobres (o primeiro atendimento que ela deu foi a um menino de 15 anos). Ela morava em Salvador, onde 80% da população é afrodescendente. Então, ao se pensar em uma imagem dela, não poderia faltar uma criança afrodescendente. Ela via em cada criança (mas também em cada doente, pobre, abandonado, idoso) o próprio Jesus", afirmou em e-mail à BBC News Brasil.
Após o estudo hagiográfico, a equipe das Osid chegou a sugerir ao Vaticano uma imagem em que, além da criança, aparecia ao lado da santa uma idosa, igualmente negra e carente, unindo assim os extremos etários que receberam atenção da freira.
Ao final da análise, optou-se por uma imagem mais simplificada. Mas, segundo Dom Murilo, a peça com a criança e a idosa ainda virá a ser utilizada nas celebrações à Santa Dulce.
Representações
Isabela Marques de Souza, responsável pelo Setor de Documentação e Pesquisa do Museu de Arte Sacra da Bahia, observa que o menino Jesus presente nas imagens de alguns santos quase sempre é aloirado e tem olhos claros, mantendo uma tradição eurocêntrica iniciada no período Renascentista.
"Chama atenção essa iconografia de Irmã Dulce não só pela criança negra, que pode sim ser vista como o menino Jesus, mas também porque não é comum que as santas mulheres, nas imagens, carreguem o menino Jesus. Ou seja, a Santa Dulce traz um lado da força da mulher", diz a museóloga.
Ela prossegue: "Mesmo a Nossa Senhora, nas suas variadas representações no Brasil, nas imagens em que carrega o filho (Jesus), é uma criança branca de olhos claros, ainda que tenha nascido na região da Palestina".
Em igrejas e santuários ao redor do mundo, o menino Jesus só é representado por crianças negras quando, nas imagens, está no colo das Virgens Negras, representações da Virgem Maria que guardam forte devoção em algumas comunidades de tradição cristã.
É o caso da Nossa Senhora Negra de Montserrat, na Espanha, da Nossa Senhora da Nazaré, em Portugal, e da Nossa Senhora de Czestochowa, na Polônia.
Para o professor do Departamento de História da Universidade Federal da Bahia Evergton Sales de Souza, independentemente das interpretações, a imagem da Santa Dulce é "coerente".
"A criança negra pode ser lida como o menino Jesus, mas é também a representação das milhares de crianças que Irmã Dulce ajudou, quase todas negras", diz Souza, que é pesquisador CNPq de História Moderna e História Religiosa.
"E é uma ótima oportunidade para esta igreja de agora, a igreja do papa Francisco, de ter uma representação de diversidade, para mostrar que Jesus não tem cor, Jesus pode ser da maneira que qualquer pessoa enxergar. Talvez isso não fosse possível numa igreja comandada por Bento XVI, por exemplo", completa o pesquisador.
Na sua opinião, a representação da Santa Dulce dos Pobres dialoga com o contexto atual do catolicismo e das questões em pauta na sociedade.
"Irmã Dulce convivia com as pessoas nas ruas de Salvador, é uma santa que todo mundo efetivamente conheceu. E ela tem um legado de engajamento e de luta por justiça social. Roma está pensando nisso no papado de Francisco, que de alguma forma está conectado ao seu tempo. Não é à toa que a declaração da santidade de Dulce ocorre durante o Sínodo da Amazônia, que está discutindo questões sociais, ambientais e indígenas. A Santa Dulce que carrega uma criança negra é isso: uma santa conectada ao seu tempo", conclui o historiador.
A trajetória da primeira santa brasileira
Prestes a ser declarada Santa Dulce dos Pobres, Maria Rita de Souza Brito Lopes Pontes nasceu em 26 de maio de 1914, em Salvador. Filha de uma família de classe média, perdeu a mãe aos 7 anos, tendo sido criada pelo pai junto com mais quatro irmãos e irmãs.
Desde cedo, já demonstrava aptidão para a caridade e, ainda na adolescência, dava comida e fazia curativos em pessoas em situação de rua na porta de casa, em Nazaré, na região central da capital baiana.
Apaixonada por futebol e torcedora do Esporte Clube Ypiranga — time da classe popular e de enorme sucesso na Bahia no início do século XX —, Maria Rita formou-se para o magistério em dezembro de 1932.
Dois meses depois, realizou seu grande sonho naquele momento: entrou para a Congregação das Irmãs Missionárias da Imaculada Conceição da Mãe de Deus, no Convento de Nossa Senhora do Carmo, em São Cristóvão (Sergipe).
Consagrada freira em agosto de 1933, adota o nome de Irmã Dulce, em homenagem à sua mãe. Dali, retorna à cidade natal, onde constrói sua trajetória de dedicação aos mais pobres.
Em 1935, Irmã Dulce dá início a seu trabalho assistencial em comunidades carentes, sobretudo nos Alagados, conjunto de palafitas que havia na Baía de Todos os Santos, no bairro de Itapagipe, de perfil operário.
Após criar um posto médico para moradores da região, funda em 1936 a União Operária São Francisco — primeira organização operária católica do Estado, que deu origem ao Círculo Operário da Bahia.
A partir de então, a freira passa a recolher doentes pelas ruas de Salvador, especialmente na região da Cidade Baixa. Durante mais de uma década, ela ocupa diversos espaços da cidade com estes enfermos, tendo de sair após sucessivas expulsões.
Até que, em 1949, sem ter onde alojar 70 doentes, Irmã Dulce consegue autorização da sua superiora e ocupa um galinheiro ao lado do Convento Santo Antônio, do qual era integrante.
Sem pudor de pedir doações por todos os cantos da capital baiana, Irmã Dulce foi expandindo sua ocupação a partir do galinheiro e, em 1959, inaugurou no mesmo local a Associação Obras Sociais Irmã Dulce (Osid). No ano seguinte, já estava erguido o Albergue Santo Antônio ? que anos depois daria lugar ao hospital de mesmo nome.
Franzina, mas cheia de energia, a freira batia em todas as portas — do pequeno comerciante ao grande empresário. Assim, criou relações nos mais diversos espectros sociais e políticos.
"Não entro na área política, não tenho tempo para me inteirar das implicações partidárias. Meu partido é a pobreza", disse em certa ocasião.
Assim, conseguia manter entre os doadores das Osid nomes como o do empresário Mamede Paes Mendonça, do banqueiro Ângelo Calmon e dos ex-governadores da Bahia Lomanto Júnior, Juracy Magalhães e Antônio Carlos Magalhães. O ex-presidente José Sarney também era seu fiel doador e, em 1988, chegou a indicar Irmã Dulce para o Prêmio Nobel da Paz.
A freira morreu no dia 13 de março de 1992, aos 77 anos, no mesmo quarto do Convento Santo Antônio em que dormiu por mais de cinco décadas.
Hoje, a entidade criada por ela é um dos maiores organismos de saúde do Brasil e oferece atendimento 100% gratuito, mantendo-se por meio de repasses do Sistema Único de Saúde (SUS), convênios estatais, venda de produtos e doações de empresas e pessoas físicas.
Há, no entanto, uma discrepância entre a receita que chega pelos repasses do SUS e as despesas geradas pelos atendimentos. Por isso, somente em 2018, o balanço das Osid foi fechado com um prejuízo de aproximadamente R$ 11 milhões.
"O ano passado foi bem difícil. As doações são o que nos socorre e ameniza um pouco a situação", diz Sérgio Lopes, assessor corporativo da entidade. Segundo ele, as doações correspondem a 5% da receita.
De janeiro a agosto deste ano, apontam os relatórios das Osid, o prejuízo da operação ficou em R$ 5,2 milhões, com estimativa de chegar perto de R$ 8 milhões até dezembro.
"Nossa expectativa é ir diminuindo gradativamente esse prejuízo com o aumento de repasses e doações, especialmente com a canonização. Já percebemos esse movimento após o anúncio do Vaticano. Tem gente que não pode doar dinheiro, mas oferece trabalho voluntário, prestação de serviços. Dizemos sempre que o maior milagre de Irmã Dulce é este complexo, que só fez crescer mesmo após sua morte."
Anualmente, as Osid realizam cerca de 3,5 milhões de atendimentos ambulatoriais na Bahia, somando o complexo em Salvador e unidades públicas de saúde geridas pela organização no interior do Estado.
No local onde havia o antigo galinheiro, hoje fica uma praça de convivência do Hospital Santo Antônio, que realiza mais de 2 mil atendimentos por dia e 12 mil cirurgias anuais. Ali, as estruturas erguidas por Irmã Dulce seguem ativas ao lado de unidades recentes, como a de Alta Complexidade em Oncologia.
Neste mesmo complexo, trabalham 3 mil pessoas, incluindo 300 médicos, além de cerca de 300 voluntários.
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