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Sob liderança de Bolsonaro, Brasil recebe cúpula do Brics reduzida e ofuscada por instabilidade no continente

Jair Bolsonaro (PSL), presidente da República - Isac Nobrega/PR
Jair Bolsonaro (PSL), presidente da República Imagem: Isac Nobrega/PR

Mariana Schreiber

Da BBC News Brasil em Brasília

12/11/2019 08h40

Sob o comando do presidente Jair Bolsonaro, um crítico do multilateralismo e fiel aliado do governo americano de Donald Trump, o Brasil sedia em Brasília a partir de quarta-feira (13) uma versão menor da cúpula do Brics — grupo que reúne Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul.

Rompendo com uma tradição iniciada em 2013, em que o país anfitrião da cúpula passou a convidar outras nações para um encontro extra ampliado, o governo brasileiro decidiu manter a reunião deste ano restrita aos cinco integrantes.

No ano passado, por exemplo, a África do Sul promoveu, após a reunião exclusiva do Brics, encontros expandidos envolvendo 19 nações africanas, além de Argentina, Turquia e Jamaica. Já na última cúpula realizada no Brasil, em Fortaleza, em 2014, todos os líderes sul-americanos estiveram presentes.

Mirando o encolhimento da cúpula do Brics em sua 11ª edição, analistas de relações internacionais ouvidos pela BBC News Brasil destacam a forte guinada promovida por Bolsonaro na política externa brasileira, com alinhamento aos Estados Unidos e críticas frequentes a instituições multilaterais como a ONU (Organização das Nações Unidas) — retratada inclusive como "hiena" em um vídeo recentemente compartilhado pelo presidente.

Além disso, notam, o encontro ocorre em meio a uma forte onda de protestos e instabilidade política no continente sul-americano, cujo episódio mais recente foi a derrubada do presidente da Bolívia, Evo Morales, após um ultimato das Forças Armadas do país, na sequência de denúncias de fraudes nas eleições.

Nesse contexto, a mera realização do encontro e continuidade do bloco pode ser vista como um "sucesso", acredita Paulo Esteves, supervisor geral do Brics Policy Center, instituição da PUC-Rio.

"Considerando toda a instabilidade da região (sul-americana) e as próprias transformações da política externa brasileira, essa é uma cúpula que, no final das contas, faz uma ponte entre a África do Sul (sede da cúpula anterior) e a Rússia (sede do encontro de 2020). O mais importante provavelmente para os integrantes do Brics, para além do Brasil, é a manutenção do próprio grupo", afirma.

Encontros bilaterais e anúncios de investimentos

A previsão é que Vladimir Putin (presidente da Rússia), Narendra Modi (primeiro-ministro da Índia), Xi Jinping (presidente da China) e Cyril Ramaphosa (presidente da África do Sul) cheguem nesta terça-feira em Brasília.

Na quarta, ao longo do dia, os quatro participam de encontros bilaterais com Bolsonaro e provavelmente terão também encontros privados entre si. Depois, comparecerão à cerimônia de encerramento do Fórum Empresarial do Brics, que reunirá 500 empresários das cinco nações, segundo o Itamaraty.

No dia seguinte, os cinco líderes discutirão temas definidos como prioritários pelo Brasil (atual presidente do grupo), entre eles ciência, tecnologia e inovação; combate a ilícitos internacionais e o terrorismo; e cooperação em saúde. Nessa última área, haverá anúncio de novo comprometimento com pesquisas para tratamento da tuberculose, doença que atinge de forma relevante os cinco países, além da criação da Rede Brics de Leite Humano, com objetivo de replicar nos outros países do grupo o modelo de coleta e distribuição de leite materno do Brasil.

Durante a cúpula, também está previsto o anúncio de novos investimentos do New Development Bank (NDB, o banco do Brics) no Brasil, em projetos de desenvolvimento sustentável.

O embaixador aposentado Roberto Abdenur, que já chefiou as embaixadas brasileiras na China e nos Estados Unidos, além de ter sido secretário-geral do Ministério das Relações Exteriores, acredita que o Brasil "não será um ator glorioso" nesta cúpula, mas também "não vai dar um vexame".

Abdenur tem acompanhado parte dos documentos produzidos pelo bloco nos encontros prévios à cúpula (mais de 100, segundo o Itamaraty, envolvendo ministros de Estado, diplomatas e outras autoridades) e avalia que, de modo geral, tem prevalecido um certo pragmatismo por parte do Brasil na relação com o Brics, em vez de uma postura mais ideológica que se nota, por exemplo, na relação com a Argentina hoje.

O comunicado produzido após encontro dos ministros de Relações Exteriores do Brics em setembro, durante a assembleia da ONU em Nova York, por exemplo, valoriza o papel das Nações Unidas e reforça o compromisso do bloco com "a plena implementação do Acordo de Paris" para redução das mudanças climáticas.

"Os Brics estão aí para ficar e o Brasil estaria cometendo um gravíssimo erro implodindo os Brics, inclusive porque isso ofenderia profundamente nossa principal parceira na área econômica-comercial, a China, uma grande potência internacional, e incomodaria os outros parceiros também. O Brasil tem, por exemplo, interesse grande em um acordo de livre-comércio com a Índia", destaca Abdenur.

Divergências sobre Venezuela afetaram cúpula, afirma professor

De acordo com o Itamaraty, a decisão de não convidar outros países para participar da cúpula do Brics decorreu de uma escolha por priorizar o fortalecimento da cooperação dentro do bloco. Já nos bastidores da diplomacia, há uma compreensão de que as diferenças entre os integrantes do Brics na questão venezuelana acabou impedindo a inclusão dos vizinhos sul-americanos no encontro.

Enquanto o governo Bolsonaro reconhece Juan Guaidó, presidente da Assembleia Nacional venezuelana, como mandatário do país, todos os demais países do Brics continuam dando suporte ao governo de Nicolás Maduro.

Segundo Oliver Stuenkel, professor de relações internacionais na Fundação Getúlio Vargas (FGV) que acompanha de perto os Brics e mantém contato com diplomatas de Brasil e China, o governo brasileiro queria convidar Guaidó como representante venezuelano para a cúpula em Brasília, em mais um aceno para o governo americano de Donald Trump. No entanto, a proposta não foi aceita pelos demais, o que acabou frustrando uma ampliação da reunião.

"A visita do Xi Jiping (presidente chinês) à América Latina é a viagem mais longa que ele pode fazer no mundo. Ele viaja 20 horas de avião. Havia a expectativa de que ele pudesse nessa cúpula encontrar também mandatários da região, os presidentes colombiano, peruano, argentino etc., mas o Brasil insistiu no Guaidó", afirma Stuenkel.

"Eu estive com assessores do (presidente argentino Maurício) Macri dois meses atrás e eles estavam falando da viagem do Macri para a cúpula Brics, com a possibilidade de levar junto o (presidente eleito da Argentina) Alberto Fernández, caso ele vencesse a eleição, mas o convite acabou não ocorrendo", conta ainda.

Antagonismo

No caso da Argentina, o governo Bolsonaro adotou uma postura de forte antagonismo com Fernández, eleito no final de outubro tendo como vice em sua chapa a ex-presidente Cristina Kirchner. Embora a Argentina seja tradicionalmente o parceiro mais importante do Brasil no continente, o presidente decidiu não ir à posse dos dois.

Questionado pela BBC News Brasil sobre a ausência de mais países no encontro, o Ministério das Relações Exteriores disse que "a notícia de que a cúpula do Brics estaria esvaziada carece de fundamento", destacando a participação dos líderes "de todos os países-membros".

"A Presidência brasileira do Brics considerou importante fomentar as relações entre os países do grupo, razão pela qual se optou pelo convite a países-membros apenas", disse ainda o Itamaraty, sem responder sobre o desentendimento na questão venezuelana.

Para Stuenkel, Bolsonaro perdeu a oportunidade de se colocar como "líder internacional, com poder convocatório".

"Nesse sentido, a cúpula vai ser menor, mas o chinês pensa a longo prazo e (seu líder) não deixaria de vir", ressalta Stuenkel, lembrando que desde a primeira cúpula, em 2009, jamais algum mandatário dos países membros deixou de comparecer.

Já Paulo Esteves, do Brics Policy Center, considera estranho que o Brasil insista em pautar o tema da Venezuela, já que claramente não é um assunto que gera convergência no bloco.

Em um dos encontros prévios da cúpula de líderes, realizado em julho no Rio de Janeiro entre os ministros das Relações Exteriores dos cinco países, o chanceler brasileiro, Ernesto Araújo, fez um apelo para que seus pares ouvissem o "grito por liberdade" do povo venezuelano. Recebeu uma resposta direta do chanceler russo, Sergei Lavrov, sobre a necessidade de se "utilizar a lei internacional como base e dar apoio aos venezuelanos sem interferência externa, e sempre dentro da Constituição".

Apesar do momento delicado, Brics continua importante

O bloco Brics nasceu inicialmente como Bric, reunindo apenas Brasil, Rússia, Índia e China. Quem pela primeira vez enxergou os quatro como um grupo foi o economista britânico Jim O'Neill, ao criar o termo Bric para se referir aos quatro países, que ele considerava com grande potencial de crescimento econômico, em um relatório do banco Goldman Sachs de 2001.

A partir de 2006, os quatro países começaram a se articular, até que, depois de crise global de 2008, o grupo ganhou fôlego e passou a realizar cúpulas anuais com os chefes de Estado e de governo no ano seguinte. Depois, em 2011, a África do Sul entrou para o bloco, que passou a se chamar Brics.

Inicialmente, havia um foco em aumentar a importância dos países emergentes em organismos internacionais, como ONU e FMI. Depois, o bloco passou a criar suas próprias instituições, como o banco do Brics, e estreitar a cooperação em outras áreas.

Em entrevista à BBC News Brasil sobre a cúpula que acontecerá em Brasília, Jim O'Neill questionou o resultado dessas reuniões. "Eles geralmente parecem desfrutar apenas do simbolismo da reunião, em vez de realmente adotar políticas. Eu disse a um amigo na semana passada: 'alguém notaria se não houvesse reunião do Brics?'", afirmou.

Para os analistas brasileiros ouvidos nesta reportagem, porém, o grupo tem grande importância, ao reunir grandes nações fora da esfera de influência dos Estados Unidos e União Europeia.

Segundo Oliver Stuenkel, da FGV, muitas das críticas ao grupo partem de uma visão ocidentalizada, inclusive dentro do Brasil.

"O G7 (que reúne Alemanha, Canadá, Estados Unidos, França, Itália, Japão e Reino Unido) tem muita discordância interna e não conseguiu sequer produzir uma declaração final no encontro do ano passado", lembra ele.

"Há uma naturalidade com a qual a gente vê países ocidentais liderando o mundo. Achamos normal sete países se encontrarem, incluindo países que mandam em nada, como Itália e Canadá, para discutir grandes questões. E no Brics, em que se encontram países com peso econômico e demográfico muito superior, vem um monte de gente dizer que não importa. É muito estranho", crítica.