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'Meus pais diziam a todo mundo que eu tinha morrido': como jovem descobriu a razão de sua adoção

Sara-Jayne decidiu ir à África do Sul para montar o "quebra-cabeças" da própria vida - BBC
Sara-Jayne decidiu ir à África do Sul para montar o 'quebra-cabeças' da própria vida Imagem: BBC

Miriam Annenberg - BBC Stories

13/12/2019 20h27

Em 1980, uma bebê foi dada para adoção por ter a 'cor errada': era mestiça, seus pais eram brancos e a África do Sul vivia sob o regime do apartheid. Ter sido criada por um casal de brancos no Reino Unido permitiu que procurasse seu lugar no mundo, mas ela só o encontrou quando voltou ao país natal.

Em 1980, uma bebê foi dada para adoção por ter a "cor errada": era mestiça, seus pais eram brancos e a África do Sul vivia sob o regime do apartheid. Ter sido criada por um casal de brancos no Reino Unido permitiu que procurasse seu lugar no mundo, mas ela só o encontrou quando voltou ao país natal.

Quando o avião pousou em Joanesburgo, Sara-Jayne King prendeu a respiração. Mais de 25 anos haviam se passado desde que deixara a África do Sul.

A jovem não se recorda do período no país, de onde saiu com sete semanas de vida levada pela mãe até a Inglaterra.

Sara-Jayne não conseguia lidar bem com o fato de ter sido abandonada pela mãe biológica, e sofria como uma criança mestiça na classe média do Condado de Surrey.

Após desembarcar do avião na África do Sul, saiu em busca do carro que a levaria a um centro de reabilitação, onde buscaria cuidar de seu comportamento autodestrutivo enquanto juntava as peças do quebra-cabeças da sua vida. "Eu já estive aqui antes e é aqui a que pertenço."

Sara-Jayne sabia que parecia diferente de seus pais, mas não pensava em uma identidade negra até ser provocada. Seus colegas de classe frequentemente tocavam em seu cabelo, a que chamavam de esponja de aço. "Nós absorvemos os pontos de vista dos outros sobre nós."

Por muito tempo, ela era a única criança negra que conhecia.

Informações que a garota tinha sobre seu processo de adoção eram vagas - BBC - BBC
Informações que a garota tinha sobre seu processo de adoção eram vagas
Imagem: BBC

Pouco a pouco, Sara-Jayne passou a achar que havia algo errado em ser negra.

Sentia-se alienada e sozinha.

Os detalhes disponíveis sobre sua adoção eram vagos. Ela ouviu que sua mãe adotiva não conseguia engravidar, e ela que havia vindo da África do Sul. E mais nada.

Sem referência

Sara-Jayne tinha um irmão mais velho, também negro e adotado. Outras referências de pessoas com sua cor de pele estavam na TV britânica dos anos 1980, mas não eram realistas ou respeitosas. Ou seja, ela não tinha em quem se espelhar.

"Eu acordava todas as manhãs, olhava os campos e via galinhas e cordeiros. Era realmente uma espécie de existência branca de classe-média."

Por muito tempo, Sara-Jayne não conviveu com nenhuma outra criança negra - BBC - BBC
Por muito tempo, Sara-Jayne não conviveu com nenhuma outra criança negra
Imagem: BBC

Na sua região, Crowhurst, os africanos eram vistos como pobres. Sua escola arrecadou alimentos para crianças famintas na Etiópia. Sara-Jayne lembra de ter visto crianças cobertas de moscas em paisagens poeirentas e assumiu que essas imagens também a definiam.

"Era um lugar para se sentir pena", diz ela. "Era um lugar do qual se deveria agradecer por ter sido resgatado."

Embora Sara-Jayne acreditasse que ser negra era ruim, ela logo aprendeu que negritude e mestiçagem ocorriam em graus variados. Enquanto uma era "indesejável", a outra podia ser atraente.

Quando ela tinha oito anos, três meninas das Ilhas Maurício se mudaram para a cidade. Eram bonitas, com cabelos ondulados macios e pele brilhante. Eram o "tipo certo" de pessoas pardas.

Enquanto isso, os cabelos de Sara-Jayne continuavam rebeldes. Todo domingo de manhã, seu pai lutava para escová-los enquanto a garota se contorcia de dor. Ela se sentiu culpada até a adolescência.

Revelação por acaso

Apesar das melhores intenções, sua família acentuou seu sentimento de isolamento. Sara-Jayne lembra de uma vez assistindo aos Jogos Olímpicos com a avó.

Quando a competição começou, ela se virou para Sara-Jayne dizendo que torceria pela Grã-Bretanha e sua neta poderia torcer "pela África".

Aos 14 anos, a garota fez uma descoberta inesperada. Enquanto bisbilhotava o quarto de sua mãe, ela descobriu uma carta de sua mãe biológica, escrita quase um ano após seu nascimento.

A carta foi endereçada a ela. Ela abriu e começou a ler. A história de sua adoção, em detalhes chocantes, surgiu diante dela.

Ela descobriu que sua mãe biológica, uma britânica branca que estava em um relacionamento com um homem branco, teve um caso com um homem negro.

Quando engravidou, não tinha certeza de qual deles era o pai. A criança parecia branca ao nascer e sua mãe deu o nome de Karoline. Mas algumas semanas depois, sua mãe percebeu que a bebê não era, de fato, branca.

Karoline era filha de um pai negro, e sua existência tornou-se não uma fonte de alegria dos pais, mas um problema a ser tratado.

Na época do nascimento de Karoline, a Lei de Imoralidade da África do Sul proibia as relações sexuais inter-raciais, e a criança era a prova de um caso ilegal. Então, sua mãe biológica e seu marido, juntamente com o médico, planejaram algo.

Eles alegaram que Karoline sofria de uma doença renal rara e exigia tratamento médico em Londres. Chegando lá, eles a abandonaram para adoção. Voltando à África do Sul de mãos vazias, o casal disse a todos que Karoline havia morrido.

Sara-Jayne lutou contra a informação de que sua mãe a abandonara e até fingiu que estava morta. "A cor da minha pele era tão repugnante, e o que meus pais biológicos haviam feito era tão nojento, que eu teria de ser tirada da minha terra natal e criada em outro lugar", diz ela.

"Eu tive esse sentimento terrível de que a única pessoa na Terra que deveria amar e cuidar de mim, independentemente de qualquer coisa, foi capaz de fazer o que minha mãe biológica tinha feito, que foi me doar."

Sara-Jayne nasceu de um relacionamento que era ilegal na África do Sul do apartheid - BBC - BBC
Sara-Jayne nasceu de um relacionamento que era ilegal na África do Sul do apartheid
Imagem: BBC

Esse amargo sentimento de rejeição começou a se manifestar antes mesmo de Sara-Jayne ler a carta. Ela havia tomado intencionalmente uma overdose de paracetamol aos 13 anos. Mais tarde, começou a se cortar.

Alguns anos depois de ler a carta, em seu primeiro ano estudando direito na Universidade de Greenwich, entrou em contato com sua mãe biológica por meio da agência de adoção. Ela retornou dizendo que responderia às perguntas de Sara-Jayne, mas não desejava manter contato. Nunca expressou remorso ou pediu desculpas.

Por volta dessa época, Sara-Jayne desenvolveu um distúrbio alimentar e começou a se automedicar com álcool e codeína. Formou-se e obteve um mestrado em jornalismo pela Universidade de Canterbury. Conseguiu bons empregos, passando da Inglaterra para Dubai, ao longo de uma carreira de rádio bem-sucedida.

Mas sentia não poder escapar do passado. Seu pai adotivo não estava mais em sua vida, seu irmão havia se matado e sua mãe biológica a havia rejeitado pela segunda vez.

Ainda lutando com distúrbios alimentares e o álcool, foi demitida de seu emprego em Dubai. E atingiu um ponto de ruptura.

Voltando em busca de cura

Era 2007 e ela precisava de ajuda. Descobriu que a reabilitação era mais barata na África do Sul. Sair de Joanesburgo a colocou num caminho em direção a turbulências emocionais e abusos de drogas e remédios. Ela esperava que o retorno curasse essas feridas.

Ao descer em Joanesburgo, pensou estar em casa. Quando o carro a levou para o centro de reabilitação, sentiu que já estivera nas mesmas estradas antes - e, como descobriu depois, isso era verdade. O hospital onde sua mãe deu à luz fica a apenas três ruas de distância dali.

Sara-Jayne passou cerca de um ano em tratamento na África do Sul, entre Joanesburgo e Cidade do Cabo. Enquanto estava lá, conheceu seu meio-irmão - o outro filho de sua mãe biológica - e por um tempo ficaram bem próximos.

Ela voltou ao Reino Unido, mas, depois de vários anos de idas e vindas entre Londres e Cidade do Cabo, decidiu se mudar para a África do Sul. "Parecia um lar."

Enquanto estava em seu quarto fazendo as malas na noite anterior à mudança em 2013, soube que Nelson Mandela havia morrido. "A África do Sul para que voltei, para chamar de lar permanente, era uma África do Sul de luto, mas também de comemoração", diz ela. "Foi o melhor da África do Sul, e não vemos isso com muita frequência."

Quando Sara-Jayne aterrissou na África do Sul, sabia que desta vez seria para sempre. Ela estava pronta para sua identidade como uma mulher negra sul-africana.

Um passo que ela precisava dar era mudar formalmente seu nome. "Karoline King" era o nome em sua certidão de nascimento sul-africana. Para tornar-se completamente, Sara-Jayne precisava se aproximar de Karoline.

Mesmo no Reino Unido, o nome dela tecnicamente era Sarah Jane; seus pais adotivos a chamavam de Sarah, com Jane como nome do meio. Para se destacar das outras Sarahs na escola, ela abandonou o H, acrescentou um Y a Jane e os hifenizou.

Essa tinha sido uma maneira de afirmar sua própria identidade enquanto crescia. Tornar oficial foi o próximo passo. "Nunca esquecerei o dia em que finalmente entrei e retirei minha identidade", diz ela. "Meu nome era Sara-Jayne King. E eu pensei 'é isso. Isso se encaixa. Essa sou eu'."

Há dois anos, ela lançou um livro descrevendo as circunstâncias de sua adoção e a trajetória de sua vida em seguida. Contratou um investigador particular para ajudá-la a encontrar seu pai biológico, mas não teve sucesso.

Ao promover seu livro no rádio, ela mencionou o nome dele. Foi quando o Twitter entrou em ação. Dentro de 36 horas após a exibição do programa de rádio, ela tinha o número de telefone do pai. Ela discou e, pela primeira vez, ouviu a voz dele no telefone. Eles conversaram por 30 minutos.

A dupla falou todos os dias durante uma semana antes de Sara-Jayne pegar um avião para Joanesburgo a fim de conhecê-lo pessoalmente. Eles combinaram um encontro em uma cafeteria em um shopping.

Para ela, foi o melhor dia da vida. "Eu nunca vou esquecer dele se aproximando, nós dois em lágrimas, e ele me abraçou e disse: 'Minha filha, minha filha'. E percebi que eu era a filha de alguém."

Dois anos depois, ela avalia mudar novamente seu nome, acrescentando o sobrenome de seu pai. Tornaria-se Makwala King.

Hoje ela vive na Cidade do Cabo, onde trabalha em uma rádio, e viaja às vezes para Joannesburgo para visitar seu pai e três meio-irmãos. Ainda mantém uma relação próxima com sua mãe adotiva, mas está feliz de ter encontrado sua família sul-africana.

Agora ela se sente confiante em assumir sua identidade. Ela nunca se sentiu britânica. Mesmo que os outros tentem colocá-la em uma caixinha, Sara-Jayne diz não se importar mais com isso. "Não gasto mais energia em como outras pessoas acham que eu devo me identificar."

Todas as fotos são cortesia de Sara-Jayne King, autora do livro Killing Karoline (Matando Karoline, em tradução livre)