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Como o Vietnã conseguiu vencer o coronavírus, apesar do sistema de saúde precário

Crianças usam máscara de proteção enquanto brincam em Hanoi, no Vietnã. Elas moram na casa de uma pessoa diagnosticada com o novo coronavírus - Reuters
Crianças usam máscara de proteção enquanto brincam em Hanoi, no Vietnã. Elas moram na casa de uma pessoa diagnosticada com o novo coronavírus Imagem: Reuters

Da agência BBC News Mundo

09/05/2020 19h25

Nenhuma morte oficialmente registrada por coronavírus.

Essa é a realidade do Vietnã, país do Sudeste Asiático onde, até agora, menos de 300 casos de covid-19 foram confirmados, segundo dados da Universidade Johns Hopkins, nos EUA.

Mas como um país com 95 milhões de habitantes, alta densidade populacional, menos de um terço da renda per capita do Brasil, um sistema de saúde precário e 1,4 mil quilômetros de fronteira com a China, origem do surto, está conseguindo vencer o vírus?

A resposta está em uma combinação de fatores, entre os quais testagem agressiva, quarentena rigorosa e rastreamento de contatos de doentes.

Além disso, o país recorreu a uma ampla campanha de conscientização com a ajuda da tecnologia e de artistas famosos. Também priorizou uma comunicação aberta e transparente com a população, surpreendendo até mesmo observadores internacionais.

E, claro, agiu rápido.

No último dia 23 de abril, sem apresentar transmissão comunitária do vírus por duas semanas consecutivas, o Vietnã começou a flexibilizar o confinamento que havia imposto a seus habitantes.

Início do surto

Os dois primeiros casos confirmados de covid-19 no Vietnã foram registrados no fim de janeiro. Em 1º de fevereiro, a Vietnam Airlines interrompeu todos os voos para China, Taiwan e Hong Kong. A fronteira com a China foi fechada dias depois.

Nas semanas seguintes, o país impôs uma série de restrições, implementando medidas antes e às vezes até contra as recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS), como o cancelamento de voos internacionais e o uso obrigatório de máscaras faciais.

Também impediu aglomerações com mais de 30 pessoas, assim como festivais, cerimônias religiosas e eventos esportivos.

Finalmente, em 1º de abril, o país iniciou o confinamento de sua população, antes de outros países, muitos dos quais desenvolvidos.

Testes em massa e rastreamento de contatos

Devido à limitada infraestrutura de saúde pública, o governo vietnamita concentrou seus esforços na realização de testes em massa e rastreamento agressivo de contatos de doentes - uma tática já empregada para combater a epidemia da SARs (Síndrome Aguda Respiratória Grave), que atingira o país há 17 anos.

Mas dessa vez tudo foi feito em escala muito maior. Até o dia 30 de abril, o Vietnã havia realizado 261 mil testes e isolado dezenas de milhares de pessoas.

Isso significa que o país testou quase 900 pessoas para cada novo confirmado da doença, a maior taxa de testes por caso confirmado do mundo. Chegou, inclusive, a fabricar seus próprios kits de testes e até exportou parte deles para a Europa e os Estados Unidos. Eles custam menos de US$ 25 e produzem resultados em 90 minutos.

O teste e o rastreamento de contatos são baseados em um princípio de quatro níveis anunciado pelo Ministério da Saúde vietnamita: pacientes de covid-19 confirmados e seus contatos diretos (nível 1: isolamento e tratamento em hospitais); contatos próximos com o nível 1 (nível 2: isolamento em estruturas montadas pelo governo); contatos próximos com o nível 2 (nível 3: autoisolamento em casa); e lockdown do bairro/vilarejo/ cidade onde o paciente mora (nível 4).

Localização e isolamento

Mas de nada adiantaria testar maciçamente a população se os novos casos não pudessem ser localizados - e isolados.

Para isso, o país lançou mão de métodos que seriam considerados discutíveis em países com leis de direitos de privacidade mais rígidas.

Funciona assim: um histórico detalhado das movimentações de cada novo paciente de covid-19 é divulgado nas redes sociais e nos jornais locais, de modo a buscar pessoas que tenham estado em contato próximo com ele. Para aumentar a vigilância, também foi lançado um aplicativo para que as pessoas alertem as autoridades locais sobre suspeitas de infecções em sua área. Todas as pessoas que entram no país são obrigadas a apresentar um atestado de saúde. Declarações falsas são passíveis de multa e prisão.

Especialistas questionam, no entanto, se tais medidas poderiam ser implementadas em regimes democráticos. O Vietnã é um Estado de partido único com décadas de experiência em mobilizar sua população por meio de guerras e surtos de doença.

Como lembra o jornalista Trang Bui em artigo no jornal britânico The Guardian, nos primeiros dias da epidemia, o governo definiu o surto "como uma guerra".

"Médicos e enfermeiros eram chamados de "soldados", e o recém-criado Comitê Diretor Nacional de Prevenção e Controle de Covid-19 foi apelidado de "Quartel General" - uma referência a um corpo militar existente até 1975", diz ele.

"Não apenas a linguagem da guerra foi revivida, mas os militares tiveram papel fundamental para combater o surto. As Forças Armadas foram encarregadas de coordenar a alimentação, o transporte e as acomodações necessárias para colocar em quarentena milhares de pessoas que retornavam ao Vietnã de países com o surto da doença", acrescenta.

Como em tempos de guerra, quase todos os setores, incluindo aviação, saúde e produção de alimentos, foram mobilizados e encarregados de conter a pandemia. Enquanto isso, os cidadãos eram encorajados por meio de redes sociais, mensagens de texto e transmissões de TV para doar para os fundos de prevenção de doenças do país.

Surpreendentemente, no entanto, as mensagens não foram comunicadas no estilo militar tradicional e rígido.

Em vez disso, o governo decidiu ser criativo: passou a atualizar os cidadãos por meio de mensagens de texto frequentes, uniu-se a dois cantores pop famosos para produzir uma música educativa sobre o vírus, contratou artistas para criar pôsteres e usou figuras jovens e influentes para levantar os ânimos daqueles que tiveram que se isolar.

Assim, o governo conseguiu não só proteger sua imagem, mas reconstruiu a confiança com a população.

Nos últimos anos, o país vinha sendo pressionando pela falta de transparência com que lidou com desastres ambientais, como o envenenamento em massa de peixes em 2016, disputas de terras e, mais recentemente, um polêmico projeto de lei de zonas econômicas especiais.

"Resta saber, no entanto, se o Vietnã vai manter esse nível de transparência após a crise do coronavírus", ressalva Bui.

Desafio econômico

Também há outro desafio em jogo: a economia. Isso talvez tenha sido o motivo para que o país decidisse suspender o confinamento no último dia 23 de abril.

Muitos serviços não essenciais, como bares e salões de karaokê, ainda estão fechados. Alguns possivelmente nunca se recuperarão. Foram suspensas as restrições para lojas, hotéis e restaurantes, mas em um país onde o turismo representa 6% do PIB, o futuro parece cada vez mais incerto - não se sabe quando as fronteiras serão reabertas.

Um relatório divulgado pela Organização Internacional do Trabalho (OIT) no mês passado indicou que pelo menos 10 milhões de vietnamitas podem perder o emprego ou enfrentar uma redução de sua renda no segundo trimestre de 2020. O Fundo Monetário Internacional (FMI) prevê uma taxa de crescimento de 2,7% para o Vietnã em 2020, uma queda de cerca de 7% no ano passado.

No início de abril, o governo anunciou um pacote de estímulo de US$ 2,5 bilhões para os mais pobres. Pessoas em situação de maior vulnerabilidade vão receber US$ 76 por semana.

"ATMs (caixas eletrônicos) de arroz" e "lojas zero dong (moeda vietnamita)" foram criados nas principais cidades para ajudar os mais afetados pela pandemia, mas isso não foi suficiente para garantir o básico, mesmo com o auxílio financeiro distribuído pelo governo.

Em entrevista ao jornal britânico The Guardian, a economista vietnamita Nguyen Van Trang diz que o caminho adiante parece ameaçador.

"Decisões incrivelmente difíceis se apresentam sobre como e quando reabrir o país", diz ela.

Van Trang ressalva que, apesar dos riscos externos, os setores de manufatura, serviços e varejo iniciam uma retomada.

"A resiliência interna é enorme. Uma grande parte da população sobreviveu a dificuldades durante a guerra, portanto eles podem se recuperar rapidamente", diz ela.

Mas para alguns dos mais pobres no Vietnã, a situação não parece nada promissora.

Com a atenção desviada para a pandemia, as ONGs foram duramente atingidas. A Fundação Blue Dragon Children's , uma organização que trabalha com crianças de rua em Hanói e resgata vítimas do tráfico de seres humanos da China, viu as doações despencarem.

Skye Maconachie, diretor executivo conjunto da organização, diz que a crise já levou a um aumento na falta de moradia e na fome.

"Muitas crianças e famílias com quem trabalhamos já estavam em situação de pobreza ou crise, e agora estão chegando a um ponto de ruptura", diz Maconachie ao The Guardian.

"Os traficantes atacam pessoas vulneráveis, então esperamos ver um aumento no tráfico de seres humanos e na exploração do trabalho nos próximos meses", acrescentou.

Ainda assim, quando comparados a seus vizinhos, o Vietnã parece ter derrotado o coronavírus. Em Cingapura, foram mais de 20 mil casos e 20 mortos. Na Indonésia, 12,7 mil casos e quase 1 mil mortos.