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'Cobre seu governador': qual a responsabilidade do governo federal no combate à pandemia?

Presidente tem repetido que caberia a Estados e municípios a tarefa de responder à ameaça da covid-19 - Andressa Anholete/Getty Images
Presidente tem repetido que caberia a Estados e municípios a tarefa de responder à ameaça da covid-19 Imagem: Andressa Anholete/Getty Images

Camilla Veras Mota - Da BBC News Brasil em São Paulo

06/07/2020 13h47

No dia 10 de junho, enquanto conversava com apoiadores em frente ao Palácio da Alvorada, o presidente Jair Bolsonaro mandou uma mulher que o questionava sobre o número de brasileiros mortos pela pandemia de covid-19 "cobrar do seu governador".

Alguns dias antes, o presidente havia usado o Twitter para argumentar que a decisão do Supremo Tribunal Federal dando autonomia a Estados e municípios para que adotassem medidas de controle da disseminação doença significava que esses entes tinham "responsabilidade total" pelas ações de combate.

Na ocasião, especialistas ressaltaram que o presidente teria distorcido o teor da decisão. O ministro do Supremo Luiz Fux voltou ao assunto recentemente e, em uma live, afirmou que a ADPF 672 não eximiu o governo federal de sua responsabilidade.

Mas qual seria o papel da União no combate à pandemia?

Uma parte da resposta se encontra na própria lei, afirma Élida Graziane Pinto, professora da EAESP-FGV e procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo.

O artigo 23 da Constituição expressa que "cuidar da saúde e assistência pública (...) é competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios" - ou seja, compartilhada pelos três entes.

Mais à frente, no capítulo 30, a Carta coloca ainda que compete aos municípios "prestar, com a cooperação técnica e financeira da União e do Estado, serviços de atendimento à saúde da população".

"A leitura que Bolsonaro faz é frontalmente contrária ao que está na Constituição e na jurisprudência - e esvazia ideia de cooperação técnica e financeira", avalia ela.

Na prática, como a execução é bastante concentrada nos Estados e municípios - são eles que prestam os serviços de saúde fato na maioria dos casos -, a União acaba sendo um importante financiador, por meio dos repasses de recursos a esses entes.

Uma atribuição que, na avaliação da especialista, não está sendo desempenhada como deveria. É o que sinalizam os números sobre os gastos da União com o combate pandemia na área de saúde.

Os dados sobre a execução das despesas no âmbito do Fundo Nacional de Saúde com a Ação 21CO, relacionada à crise sanitária, mostram que as liberações de recursos a Estados e municípios têm sido feitas a conta gotas.

Entre os quase R$ 10 bilhões previstos para os Estados, em quatro meses de pandemia nem metade foi empenhado (o primeiro estágio da execução), apenas R$ 4 bilhões. No caso dos municípios, dos R$ 16,8 bilhões previstos, R$ 5,8 bilhões foram empenhados.

Houve uma queda forte nos repasses a partir de meados de abril, logo após a saída do ex-ministro Luiz Henrique Mandetta do cargo.

Olhando para o orçamento da saúde como um todo, de R$ 39,3 milhões somente R$ 13 milhões foram empenhados até o momento.

A morosidade contrasta com a resposta regulatória e legislativa rápida observada ainda antes de a pandemia chegar ao Brasil, opina Graziane. No início de fevereiro foi declarada emergência nacional e, poucos dias depois, foi promulgada a lei que coordena as medidas sanitárias, a 13.979.

Em 20 de março, por sua vez, o Congresso Nacional reconheceu a calamidade para acionar o regime de exceções previsto na Lei de Responsabilidade Fiscal e liberar recursos para o combate à pandemia.

A partir daí, entretanto, começaram os conflitos entre Bolsonaro e Mandetta. No dia 15 de março, Bolsonaro quebrou pela primeira vez o isolamento para comparecer a uma manifestação.

"Agir pouco e lentamente tem custo alto", Graziane completa.

No início de junho, o Ministério Público abriu um inquérito civil público para apurar a execução do orçamento e destaca que os números podem sinalizar uma possível ineficiência da União para enfrentar os desdobramentos da covid-19 na área da saúde em pelo menos três aspectos: a pouca utilização dos recursos previstos para despesas, a demora na liberação de recursos aos demais entes federativos e a pequena participação da União no custeio da saúde em relação ao financiamento total assumido pelos entes federativos.

Sem recursos - com a receita de arrecadação tributária em queda e proibidos por lei de contrair dívidas sem anuência do governo federal -, muitos Estados e municípios têm tido dificuldade financeira para implementar as políticas de combate à doença.

Testes, respiradores e EPIs

Dentro do princípio da competência compartilhada, outro importante papel que caberia ao governo federal seria o de centralizar parte das compras - seja de testes para diagnóstico da covid, de equipamentos hospitalares ou de proteção individual (EPI).

Assim, não só haveria uma redução dos gastos (já que os preços em geral são menores para compras em grande quantidade), mas também uma otimização da distribuição pelo território, levando em consideração os locais que mais necessitam.

"O FNDE (Fundo Nacional para o Desenvolvimento da Educação, autarquia ligada ao Ministério da Educação) faz isso - centraliza as compras de livros didáticos com um ganho de escala belíssimo", diz Graziane.

Na falta de uma centralização das compras, muitos Estados têm, entretanto, importado testes, máscaras e respiradores por conta própria da China e de outros países. Na tentativa de reduzir custos e melhorar a logística, alguns Estados do Nordeste têm feito compras coletivas por meio do Consórcio do Nordeste, grupo regional criado no ano passado.

"A logística foi toda fragmentada - cada Estado teve que tomar suas providências", ressalta a pneumologista e pesquisadora da Fiocruz Margareth Dalcolmo.

Coordenação vs conflito

Ela destaca ainda uma atribuição mais subjetiva, mas não menos importante, que deveria ter sido capitaneada pelo governo federal:

"Desde o início já estava claro que era necessária uma coordenação muito harmônica entre os diversos níveis de governo - central, estadual e local. E não houve."

A médica, uma das primeiras a tratar pacientes com covid-19 no país, fez parte do grupo de especialistas consultados pelo Ministério da Saúde na gestão do ex-ministro Mandetta para justamente organizar as medidas de enfrentamento e diz que, desde a saída dele do cargo, a interlocução com a pasta deixou de de existir.

As medidas de isolamento social são, por si só, de difícil implementação - como ficou evidente nos países em que a doença chegou antes. Assim, o ideal seria que os entes federativos tivessem alguma sintonia.

O que aconteceu, entretanto, foi o contrário.

"Houve uma tensão permanente e um comportamento deletério da parte de autoridades federais. Várias pessoas foram pra rua, participaram de manifestações", ela acrescenta.

"E hoje nós vemos uma situação tensa, por conta dessa desarmonia, desse conflito entre administração local e do governo federal. Tudo isso é muito deletério para um controle sanitário de qualquer natureza."

Nesse sentido, Ricardo Gazzinelli, presidente da Sociedade Brasileira de Imunologia, pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz e coordenador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia de Vacinas, destaca o impacto negativo do discurso muitas vezes negacionista do presidente, que vai no sentido contrário às orientações dadas pelos gestores estaduais e municipais.

Ainda que a comunidade científica reforce que as medidas de proteção e distanciamento são fundamentais, as posições de Bolsonaro acabam ecoando entre parte da população e enfraquecendo a estratégia para o combate da pandemia como um todo.

Mesmo comparando com os Estados Unidos, pontua o pesquisador, onde o presidente Donald Trump também tentou interferir no trabalho a equipe técnica da saúde, o Brasil é um ponto fora da curva. Lá, uma das principais referências no combate à pandemia, o diretor do Instituto Nacional de Alergias e Doenças Infecciosas dos Estados Unidos, Anthony Fauci, segue sendo a principal referência e uma peça-chave na formulação das políticas de enfrentamento.

Aqui, o presidente se desentendeu com Mandetta e, pouco mais de um mês depois, perdeu um segundo ministro. Desde então, a pasta tem sido comandada por um interino, o general Eduardo Pazuello, sem previsão de quando voltará a ter um titular.