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O drama dos estrangeiros adotados por americanos que descobrem não ter cidadania

Liam com seu pais adotivos, Stephanie Griffin e Ben Dubinsky. Ele nasceu no Brasil em 1983 e foi levado aos EUA com poucas semanas de vida - Arquivo Pessoal
Liam com seu pais adotivos, Stephanie Griffin e Ben Dubinsky. Ele nasceu no Brasil em 1983 e foi levado aos EUA com poucas semanas de vida Imagem: Arquivo Pessoal

Alessandra Corrêa - De Winston-Salem (EUA) para a BBC News Brasil

22/08/2020 08h02

Liam Dubinsky tinha mais de 30 anos de idade quando descobriu, por acaso, que não era um cidadão americano.

Criado em San Francisco, na Califórnia, ele sempre soube que havia nascido no Brasil e sido adotado, ainda bebê, pela psicóloga Stephanie Griffin e pelo arquiteto Ben Dubinsky, um casal de americanos.

Mas o fato de ter nascido em outro país nunca o fez suspeitar que sua situação pudesse ser diferente da de outros filhos adotivos de pais americanos. "Meus pais sempre me disseram que eu havia sido adotado. Isso nunca foi segredo", diz Liam à BBC News Brasil.

Nascido em março de 1983, ele foi levado aos Estados Unidos com poucas semanas de vida e nunca conheceu sua família biológica, nunca teve qualquer conexão com o Brasil e nem aprendeu a falar português. Sua infância e adolescência foram típicas de qualquer criança americana, frequentando a escola e praticando esportes.

"Eu frequentei escolas públicas e privadas. Tenho número de seguridade social. Tenho carteira de motorista. Durante minha vida inteira, minha nacionalidade americana nunca foi colocada em questão. Nunca ninguém disse que havia alguma discrepância (nos documentos) ou algo errado", afirma.

Isso mudou três anos atrás, quando ele precisou obter habilitação de segurança para poder acessar determinadas áreas restritas em seu local de trabalho. Nesse processo, há uma detalhada verificação de antecedentes. "Eles disseram que precisavam de mais informações. Foi então que tudo começou", relembra.

Liam descobriu que, apesar de seus pais adotivos serem americanos e de ele ter passado a vida inteira nos Estados Unidos, seu processo de naturalização nunca foi oficializado.

Além de não ter cidadania americana, como pensava, ele também descobriu que sua condição pode, inclusive, deixá-lo vulnerável ao risco de deportação no futuro, caso não consiga regularizar sua situação no país.

Mais de 25 mil adotados sem cidadania

Na jornada em busca de documentos antigos que possam esclarecer sua situação, Liam e sua mulher, a americana Dani Dubinsky, com quem é casado desde 2013 e com quem tem uma filha de 5 anos, descobriram que ele não é o único a enfrentar esse tipo de problema.

A Campanha pelos Direitos dos Adotados (ARC, na sigla em inglês), organização sem fins lucrativos que defende o direito à cidadania de todos os que foram adotados de outros países por famílias americanas, calcula que entre 25 mil e 49 mil pessoas estejam em situação semelhante à de Liam. Até 2033, a ARC estima que esse número poderá chegar a 64 mil adultos.

São pessoas adotadas por americanos no exterior e levadas aos Estados Unidos quando crianças, mas que completaram a maioridade sem obter cidadania americana e, em grande parte dos casos, sem nem ao mesmo desconfiar de que não são cidadãos do país onde sempre viveram.

Assim como Liam, eles cresceram sem ter ideia de que havia algum problema em sua documentação. Frequentaram escolas, se formaram, conseguiram emprego, casaram, criaram famílias, pagaram impostos. Muitos ainda não sabem que não são cidadãos americanos.

A revelação geralmente ocorre quando procuram um emprego público ou passam por algum processo de habilitação de segurança, como no caso de Liam. Alguns são surpreendidos ao fazer seu primeiro passaporte para viajar ao exterior. Há casos em que só descobrem quando têm algum problema com a lei.

Seja como for, de uma hora para outra os direitos que pensavam ter como cidadãos americanos desaparecem. Tratados como imigrantes, e não como filhos de americanos, mergulham em um emaranhado burocrático para tentar regularizar sua situação.

Segundo a ARC e outras organizações que defendem adotados nessa situação, alguns são deportados, separados de suas famílias americanas e enviados a um país que nunca conheceram.

Outros, dependendo da documentação de que dispõem, conseguem permanecer nos Estados Unidos como residentes permanentes, em situação legal, mas sem os mesmos direitos garantidos a cidadãos do país. Há ainda os que vivem escondidos, em um limbo legal.

Lacunas na lei

Diferentemente de outros países, os Estados Unidos não concediam até o ano 2000 cidadania automática a crianças adotadas no exterior por famílias americanas. Apesar de, pela lei americana, filhos adotivos terem os mesmos direitos de filhos biológicos, isso não se aplicava àqueles nascidos em outros países.

Cabia aos pais, após ingressar com a criança em território americano, entrar com um processo de naturalização para o filho adotivo nascido no exterior antes que este completasse 18 anos. Mas muitos pais adotivos não completavam esse processo, por negligência ou desconhecimento das regras.

Em 2000, o Congresso americano aprovou uma lei chamada Childhood Citizenship Act (CCA), que passou a garantir cidadania automática para crianças adotadas de outros países. Mas o benefício só se aplicava aos que tinham menos de 18 anos em 27 de fevereiro de 2001, quando a lei entrou em vigor.

Assim, os que haviam nascido antes de 27 de fevereiro de 1983 —quem tinha mais de 18 anos em 2001— foram excluídos. Também foram excluídas crianças nascidas após essa data, mas cujo processo de adoção não havia sido completado no país de nascimento ou que ingressaram nos Estados Unidos com um tipo de visto errado, de não imigrante. Isso excluiu dezenas de milhares de adotados dos benefícios concedidos pela lei.

"O Departamento de Estado sabe que, historicamente, alguns adotados não adquiriram cidadania americana após sua adoção no exterior por pais que são cidadãos dos Estados Unidos", diz à BBC News Brasil um porta-voz do departamento.

"Muitos desses indivíduos agora são adultos e não podem se beneficiar da CCA de 2000", afirma o porta-voz, ressaltando que o Departamento de Estado não sabe o número exato de pessoas nessa situação.

Liam não sabe muitos detalhes sobre seu processo de adoção. Quando descobriu que não era cidadão americano, seus pais já haviam morrido. "Nunca pensei em perguntar sobre esses detalhes enquanto eles estavam vivos", afirma.

"Ouvi falar que tinham um amigo que conhecia meus pais biológicos ou entrou em contato com alguém que conhecia meus pais biológicos e ficou sabendo que eles iriam me ter e me colocar para adoção."

Ele diz saber que nasceu em Santa Catarina e que seus pais viajaram ao Brasil para esperar que ele nascesse e levá-lo de volta aos Estados Unidos. No início de 1984, quase um ano após seu nascimento e sua chegada a San Francisco, advogados contratados por seus pais adotivos entraram com pedido de adoção em um tribunal americano.

O juiz que analisou o processo chamou a atenção para o fato de que os pais biológicos não haviam assinado os documentos de adoção. Os advogados informaram o juiz sobre dificuldades para localizar os pais biológicos. Em 1985, a adoção foi aprovada pelo tribunal americano e oficializada.

"O que sei é que tenho uma certidão de adoção, emitida pelo governo de San Francisco, que declara que sou filho (legal) de meus pais americanos e que tenho todos os direitos e responsabilidades de um filho biológico", ressalta.

Mas Liam e Dani dizem que não conseguiram encontrar os documentos comprovando que ele foi admitido legalmente ao ingressar em território americano. Um dos requisitos para que adotados nascidos após 27 de fevereiro de 1983 possam se beneficiar da CCA é terem entrado no país com um visto de imigrante.

"Infelizmente, essa documentação está faltando", diz Dani à BBC News Brasil. "É isso que têm dificultado tanto a obtenção de cidadania quanto de um green card (o documento de residente permanente) para Liam."

Situação vulnerável

Liam diz que conseguiu obter das autoridades de imigração um documento especial, permitindo que estrangeiros que ingressaram em território americano sem autorização oficial possam permanecer no país por um determinado período de tempo e buscar regularizar sua situação.

Isso permitiu que ele entrasse com pedido de green card, com base no fato de ser casado com uma americana. Mas seu processo está sendo analisado como o de qualquer imigrante comum, e o fato de Liam ter sido adotado quando bebê e passado a vida inteira no país não é levado em conta.

Com a pandemia de coronavírus, há atraso em vários processos de imigração nos Estados Unidos, e ele não tem ideia de quando terá uma resposta. Apesar de nunca ter sido ameaçado oficialmente de deportação, ele ainda está em uma situação vulnerável, porque não conta com as garantias de um cidadão americano.

Mas, para muitos outros adotados sem cidadania, o risco de deportação é imediato. A diretora da ARC, Joy Alessi, diz à BBC News Brasil que é difícil saber o número preciso de adotados que já foram deportados dos Estados Unidos, mas estima que sejam dezenas ao longo dos últimos anos, entre eles alguns nascidos no Brasil.

"Os Estados Unidos não anunciam quando deportam alguém", afirma Alessi, ressaltando que sua organização nem sempre fica sabendo de todo os casos. "Quando uma deportação ocorre, é extremamente devastadora."

Alessi salienta que esses adotados não deveriam ser tratados como imigrantes nem ser penalizados por erros cometidos por seus pais adotivos, mas sim ter os mesmos direitos dos filhos biológicos de cidadãos americanos nascidos no exterior.

Um novo projeto de lei, que tenta corrigir as lacunas da lei de 2000, já foi apresentado várias vezes no Congresso americano. A proposta garante cidadania automática aos adotados no exterior que foram deixados de fora da CCA. Mas, apesar de ter apoio de políticos de ambos os partidos, até hoje não avançou.

"Isso não é uma prioridade (para os congressistas). E, neste momento, com covid-19, etc, não há muito espaço (para a aprovação da proposta)", lamenta Alessi.

Enquanto aguarda uma definição sobre seu pedido de green card, Liam tenta se acostumar à vida sem os direitos de cidadania que considerava garantidos. "Nos últimos tempos, tenho me sentido inseguro, em dúvida sobre quem sou", afirma.

"Sei que sou um bom pai e marido. Sei que sou um assistente médico. Mas, acho que pela primeira vez, tenho uma sensação de desespero, de perda."

Dani também lamenta o impacto emocional em sua família e nas de outros adotados na mesma situação. "Muitos só descobrem quando vão se aposentar, ao começar em um novo emprego ou ao pedir um dos benefícios que lhes foram prometidos como cidadãos", ressalta.

"E, então, sabem que não apenas não são cidadãos, mas que podem ser enviados de volta a um lugar que nem conhecem. Para as pessoas que estão passando por isso, é terrível."